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quinta-feira, maio 16, 2024

Série 'Matéria Escura': por que o século XXI está tão obcecado pelo multiverso?


A vida é feita de escolhas que fazemos em momentos cruciais que irão nos definir para sempre. Desde que os paradoxos da mecânica quântica, o experimento imaginário do gato de Schrödinger e a sua interpretação de Hugh Everett que abriu a possibilidade da existência de muitos mundos com diferentes versões de nós mesmos, parece que a angústia do “para sempre” ficou ainda maior, na literatura e no cinema: será que fiz a escolha certa? E se fosse possível ver a escolha da minha outra versão? Poderia ter uma segunda chance? A série Apple TV “Matéria Escura” (Dark Matter, 2024-) é mais uma produção na onda atual de filmes sobre multiverso. Embora o impacto cultural dos enigmas quânticos esteja no século XX, é nesse século que a angústia da escolha é ampliada, no estranho zeitgeist que domina a atualidade. Um gênio da física bem-sucedido cria uma maneira de viajar pelo multiverso para trocar de lugar com o sua outra versão menos bem-sucedida, invertendo a premissa tradicional do gênero.

Essa não é minha linda casa/Essa não é minha linda esposa
Meu Deus! O que eu fiz?
(“Once a Lifetime”, Talking Heads)

 

Desde a vitória do Brexit em 2015 e eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA no ano seguinte, parece que o mundo foi jogado para algum universo alternativo. 

Um mundo de catástrofes climáticas e que ideias intangíveis da qual dependíamos e considerávamos como óbvias e claras passaram a não funcionar mais: Democracia, Estado de Direito, Verdade, Consenso etc.

No caso brasileiro, desde a vitória eleitoral de Bolsonaro e a escalada da pós-verdade nas estratégias de comunicação política da extrema direita.

A realidade parece que se tornou desorientadora o suficiente para a indústria do entretenimento nos oferecer uma enxurrada de histórias sobre universos alternativos, realidades paralelas e emaranhados quânticos: dos multiversos dos mundos cinematográficos da Marvel ao vencedor do Oscar Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, passando por séries como Constelação da Apple TV. 

E, por que não, também a série O Problema dos 3 Corpos no qual passado, presente e futuro ocorrem simultaneamente num mesmo enredo. Um terreno fértil não só para a criatividade dos roteiristas (p.ex., você pode matar diversas vezes um personagem, mas sempre aparecerá uma nova versão alternativa) como também para o lucro dos estúdios.

Se esse universo misterioso quântico se tornou tão lucrativo, é porque está sintonizado a esse estranho zeitgeist do século XXI.



Este Cinegnose já discutiu em postagens anteriores como a física quântica impactou a cultura moderna, principalmente em dois temas: a viagem no tempo e o multiverso. Primeiro, o abandono da concepção clássica do tempo (entrópica) pela possibilidade de alterar o passado, criando linhas de tempo exponenciais; e com o multiverso, a existência de realidades não só paralelas, mas alternativas – como em “O Homem do Castelo Alto”, livro de Philip K. Dick e a série recente, no qual visitamos um mundo em que Alemanha e Japão ganharam a Segunda Guerra Mundial.

Certamente, o principal impacto íntimo foi o mito da segunda chance: será que el algum lugar existe uma versão bem-sucedida de mim mesmo ou mesmo pior? Que fez outras escolhas e traçou novos caminhos? Eu poderia pelo menos visualizá-los no passado ou no futuro para consertar erros e ganhar uma nova chance?

Todo esse impacto foi desenvolvido tanto no cinema quanto na literatura no século passado – e na Filosofia, mereceu as reflexões existenciais em torno da angústia feitas por Sartre.

Mas nesse século, parece que essa angústia da segunda chance ganhou uma nova dimensão, mais coletiva. Principalmente com o fenômeno do efeito bolha nas redes sociais e Internet e a relativização de noções dadas como óbvias como Verdade, Realidade e Ciência que trouxe talvez essa sensação social de entrarmos em alguma realidade alternativa – o crescimento de teorias em torno do chamado Efeito Mandela e a tese da Internet morta.

Como reflexo direto dessa zeitgeist que traçamos acima, temos agora a série da Apple TV Matéria Escura (Dark Matter, 2024), uma adaptação em nove episódios do livro homônimo de Blake Crouch de 2016. 

Sua premissa é interessante: um gênio da física poderoso e bem-sucedido cria uma maneira de ir para um universo paralelo para trocar de lugar com o sua outra versão menos bem-sucedida. Interessante porque, em primeiro lugar, parece inverter a premissa tradicional do gênero: invejamos sempre a versão melhor de nós mesmos vivendo em algum lugar do multiverso.



Em segundo lugar, a série revisita a experiência imaginária que deu origem a tudo: o experimento do gato de Schrödinger, de 1935. Só que, dessa vez, em uma escala maior: uma enorme caixa com uma liga metálica inédita capaz de vedar completamente o contato do interior com o mundo exterior, contendo humanos que viverão na prática o momento da sobreposição quântica – verificada apenas no paradoxal mundo das micropartículas.

A Série

 O professor de física Jason Dessen (Joel Edgerton - doravante conhecido como Jason 1) está levando uma vida tranquila como professor numa universidade de Chicago para alunos sonolentos e desatentos. Volta para casa todas as noites para sua amada esposa, Daniela (Jennifer Connelly), e o envolvente filho adolescente Charlie (Oakes Fegley). 

Alunos tão sonolentos que são incapazes de ter a curiosidade despertada para a aula sobre o experimento imaginário do gato de Schrödinger (a chave de compreensão de toda a série).

Para aqueles que não conhecem o experimento, podemos descrevê-lo da seguinte maneira: um gato está preso numa caixa que contém um recipiente com material radioativo e um contador Geiger. Se o material soltar partículas radioativas e o contador detectar, acionará um martelo que, por sua vez, quebrará um frasco com veneno, matando o bichano. De acordo com as leis da física quântica, a radioatividade pode se manifestar tanto como onda quanto partícula. Ou seja, na mesma fração de segundo, o frasco de veneno quebra e não quebra, produzindo duas realidades probabilísticas simultâneas – sobreposição quântica. 



Segundo o raciocínio, as duas realidades aconteceriam simultaneamente dentro da caixa, até que fosse aberta – a presença de um observador e a entrada da luz intervindo nas partículas acabariam com a dualidade no fenômeno do decaimento quântico.

O cotidiano do professor de meia idade é monótono, mas feliz, confortável e previsível, como requer a vida familiar. 

Mas seus olhos cintilam quando seu amigo dos tempos de faculdade, Ryan (Jimmi Simpson), ganha um prestigiado prêmio de física e um milhão de dólares, criando a tensão: ele fez a opção da vida familiar, enquanto seu amigo o sucesso do reconhecimento da pesquisa científica, optando pela vida de solteiro e vivendo em frios laboratórios de pesquisa. Será que Jason fez a melhor escolha? Todos nós tivemos momentos de dúvida sobre o caminho não tomado.

Jason 1 caminha de volta para casa tarde da noite após uma festa de comemoração pelo prêmio de Ryan. Mas ele é sequestrado e drogado pelo Jason 2 - a versão de si mesmo que dedicou sua vida à ciência, se tornou rico e famoso, e secretamente desenvolveu uma maneira de pular através dos universos para substituir por Jason 1 e pudesse desfrutar de todas as bênçãos da vida familiar e deixar seu outro eu aparentemente amnésico no mundo de Jason 2.

Se Jason 1 teve um lampejo de inveja pelo sucesso de Ryan, sua outra versão bem-sucedida por algum motivo inveja a vida pacata e familiar de Jason 1.

A partir daí, duas histórias se desenrolam. Um é um thriller doméstico, já que Jason 2 tenta evitar ser desmascarado como um impostor, procurando os convidados do jantar que ele deveria conhecer há anos. Daniela sente que algo mudou, principalmente na cama – Jason 2 é um incansável sedutor.


 

A outra história é a pura ficção científica, enquanto Jason 1 gradualmente vai deduzindo o que aconteceu no mundo alternativo que Jason 2 abandonou (os meios de comunicação abordam o seu desaparecimento, criando um grande circo midiático) e para depois fugir como um Odisseu da alta tecnologia para viajar através dos corredores do multiverso. Tentando reencontrar a sua vida familiar perdida.

Jason 1 está acompanhado pela parceira de Jason 2, Amanda (Alice Braga), uma psiquiatra que preparou psiquicamente os viajantes do multiverso anteriores (não sabemos o quão bem eles se saíram, pois não conseguiram voltar). Ela mostra disposição para fugir e entrar no cubo de sobreposição quântica que Jason 1 abandonou em seus estágios iniciais, mas que Jason 2 passou a aperfeiçoar, ingerindo os compostos psicoativos experimentais necessários para ver e escolher todos os universos disponíveis.

Jason 1 e Amanda partem para uma viagem para partes variadas do multiverso em busca de seu verdadeiro lar. Versões alternativas de Chicago, de brilhantes e espetaculares a apocalípticas e devastadoras, são apresentadas. 

Jason 1 vai encontrar as diversas versões da esposa Daniela e de seus amigos nas diversas realidades paralelas, seguindo a chamada “Interpretação dos Muitos Mundos” de 1957 feita por Hugh Everett na Universidade de Princeton.



A pós-modenidade dos Muitos Mundos

Na interpretação de Everett, esses dois gatos (morto e vivo) passam a ser considerados dois mundos independentes e sobrepostos sobre o mesmo tempo/espaço. Não são mais considerados uma “decoerência quântica” fruto da intervenção do observador que romperia com a função de onda. Everett considerava uma existência ontológica para cada um desses mundos, ou “subsistemas”, como afirmava.

Ou seja, cada momento de escolha em nossas vidas abriria diversas versões de decisões que não tomamos – universos alternativos sobrepostos no cosmos.

Não precisa dizer que à medida que os episódios avançam (estão sendo liberados semanalmente pela Apple TV) as histórias e as linhas do tempo se tornam cada vez mais complicadas, com Jason 1 e 2 confrontando suas escolhas e arrependimentos.

A mecânica quântica, o gato de Schrödinger e a interpretação de Everett incendiaram tanto a imaginação literária quanto cinematográfica. Mas também despertaram no século XX essa questão que o princípio da desconstrução pós-moderna da realidade: será que fiz a escolha certa? E se eu tivesse optado pelo outro caminho?

Aquela sensação pós-moderna de alienação expressada pela música dos Talking Heads de 1980 “Once a Lifetime”: 

E você pode dizer a si mesmo/Essa não é minha linda casa/Essa não é minha linda esposa/O que é a casa bonita?/Onde a estrada vai?/Estou certo?/Estou errado?/Meu Deus! O que eu fiz?

O século XXI potencializa essa angústia sartreana da liberdade da escolha. Porque para cada lado que olhamos, com a crise daquelas ideias intangíveis que davam alguma solidez em nossas escolhas (Verdade, Ciência, Democracia, Consenso etc.), parece que sempre faremos a escolha errada.


 

Ficha Técnica

 

Título: Matéria Escura (série)

Diretor:  Logan George, Celine Held

Roteiro:  Blake Crouch

Elenco: Joel Edgerton, Jennifer Connelly, Alice Braga, Jimmi Simpson, Dayo Okeniyi, Oakes Flegley

Produção: Sonny Pictures TelevisionMatt Tolmach Productions

Distribuição: Apple TV +

Ano: 2024-

País: EUA

 

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Filme 'State of Consciousness' e o zeitgeist neurocientífico do século XXI


State of Consciousness” (2022) é uma curiosa produção B italiana, uma espécie de mistura de “Amnésia” de Christopher Nolan e “Westworld”. Um homem se vê injustamente condenado por assassinato. Para escapar da pena de morte, aceita ser diagnosticado como “esquizofrênico paranoico” e é enviado para um manicômio judiciário. Acorda 18 meses depois sem se lembrar de nada, mas pronto para ser reintegrado à sociedade. Mas algo está errado quando se vê prisioneiro num pesadelo PsicoGnóstico. “State of Consciousness” retorna ao tema da “Técnica Ludovico” do clássico “Laranja Mecânica”. Porém, com uma abordagem diferente que representa o atual zeitgeist neurocientífico que domina as abordagens cognitivas humanas no século XXI.

sexta-feira, março 29, 2024

Viagem no tempo vira ferramenta para consertar a vida ordinária em 'Questão de Tempo'


Richard Curtis é um especialista em filmes levemente românticos e supostamente cômicos como “Notting Hill”, “Quatro Casamentos e um Funeral” e “O Diário de Bridget Jones”. Quando o tema da viagem no tempo cai nas suas mãos, o desfecho não poderia ser outro. Um tema potencialmente tão disruptivo acaba se diluindo naquilo que exatamente o tema desafia: a realidade institucional. No filme de Curtis “Questão de Tempo” (About Time, 2013) a viagem no tempo se transforma numa ferramenta para consertar as desordens da vida ordinária do presente, incorrendo no velho clichê da “quebra-da-ordem-retorno-à-ordem”. Tão conservador que a mecânica temporal do filme ainda funciona dentro da causalidade newtoniana, ignorando os paradoxos quânticos que caracterizam a abordagem fílmica e literária contemporâneas do tema. Tim descobre que os homens da sua família têm o exclusivo poder de viajar para o passado. Então, decide transformar o mundo num lugar melhor. Para começar arranjando uma namorada.

quinta-feira, março 14, 2024

'O Astronauta': por que a humanidade quer ir para o espaço se todas as respostas estão na Terra?


Com a reativação do imaginário da conquista espacial no século XXI com projetos privados como os da SpaceX ou Virgin Galactic ressurge a questão: o que a humanidade tanto procura lá fora se tudo o que encontramos é o vazio, desolação, desertos ou infernos vulcânicos e mares ácidos? Quando tudo o que precisamos conquistar ou salvar está aqui no nosso planeta. Essa é a questão de fundo na produção disponível na Netflix “O Astronauta” (Spaceman, 2024). Um abatido e solitário cosmonauta da república comunista da Techecoslováquia ruma solitário para as cercanias de Júpiter para capturar amostras de uma misteriosa nuvem cósmica que passou a tomar conta dos céus terrestres. Mas descobre que não está só: uma aranha gigante alienígena curiosa quer mergulhar nas memórias do astronauta. Quer entender o que o faz se submeter a uma solidão auto infligida. “O Astronauta” é uma perfeita esquisitice espacial que trabalha com a simbologia esotérica dos chamados “registros akáshicos” e com a mitologia indo-europeia das aranhas.

sexta-feira, março 08, 2024

Do "gato de Schrödinger" à parapolítica no filme 'Infinitum: Subject Unkown'


O famoso experimento imaginário do “Gato de Schrödinger” proposto pelo físico quântico em 1935 incendiou a imaginação tanto literária quanto cinematográfica: mundos paralelos coexistindo no mesmo tempo-espaço. O filme experimental “Infinitum: Subject Unkown” (2021, disponível na AmazonPrime Video), feito em pleno lockdown da Covid em Londres com um Iphone por uma equipe remota, é mais um exemplo. Conecta Schrödinger com especulações de como todas as grandes potências mundiais têm trabalhado em universos paralelos e telecinesia por décadas - operações geopolíticas através da parapolítica. Uma mulher acorda em um sótão estranho, amarrada a uma cadeira, ela não tem ideia de onde está ou quem é. Está presa também em um loop temporal. Escapa e embarca em uma jornada por um mundo paralelo vazio, levando-a a um laboratório de pesquisa de ciência quântica no meio do nada. Um quebra-cabeças que terá que resolver para encontrar a verdade. Seja em que mundo for.

quinta-feira, março 07, 2024

A imortalidade de uma divindade hedonista enlouquecida em 'Divinity'


O que aconteceria com uma sociedade cuja tecnociência descobrisse a droga da imortalidade? Do corpo, não da mente, que continuaria em seu natural processo de envelhecimento. Resultado: o ser humano se tornaria uma divindade hedonista e enlouquecida através do poder fálico  eterno proporcionado por uma droga vendida como produto para poucos em comerciais na TV. “Divinity” (2023) é uma estranha ficção científica em p&b, uma alegoria enigmática de horror corporal com uma estética que faz homenagem ao expressionismo alemão de Fritz Lang. Sobre a descoberta da imortalidade que, de alguma forma, prejudicará o equilíbrio cósmico. Que fará o acerto de contas contra o cientista inventor do elixir. Um filme estranho para cinéfilos aventureiros.

sexta-feira, fevereiro 09, 2024

A filosofia e geopolítica da inteligência artificial em 'Resistência'


Narrativas sobre inteligência artificial, robôs e replicantes nunca terminam bem no cinema. Principalmente com o discurso do Capitalismo High Tech Distópico de Elon Musk que inspira nove em cada dez roteiros sci-fi atuais. Mas “Resistência” (The Creator, 2023) é essa exceção, indo para além do maniqueísmo homem X máquina. O olhar do filme é tanto filosófico quanto geopolítico. Um soldado é recrutado para localizar e matar o Criador - misterioso arquiteto responsável por desenvolver uma arma capaz de acabar com um confronto mundial em que o Ocidente declarou guerra a toda forma de IA. Principalmente a IA da “Nova Ásia”: diferente do pensamento dualista ocidental, a nova IA oriental quer ser livre ao lado dos humanos. Entrando num embate militar com os EUA, um império decadente em 2070. “Resistência” ecoa o atual conflito EUA vs. China.

domingo, dezembro 24, 2023

Em 'Paisagem com Mão Invisível' o Capitalismo é extraterrestre



O filme “Paisagem com Mão Invisível” (Landscape with Invisible Hand, 2023, disponível na Amazon Prime Video), adaptação do livro homônimo de M.T. Anderson, é um curioso mix de Economia Política e ficção científica. Fazendo alusões a duas coisas bem atuais: exclusão e precarização do trabalho no novo salto tecnológico do capitalismo; e as teses de estudiosos do fenômeno Ovni de que governos e elites econômicas não só sabem da presença alien nesse planeta, como também o salto tecnológico das últimas décadas veio da colaboração dessas elites com extraterrestres. Uma conspiração entre a elite e aliens contra a maioria dos seres humanos tornados obsoletos por hologramas e Inteligência Artificial. O filme é uma sátira sombria de um contexto que o Fórum Econômico Mundial define como “Grande Reset Global do Capitalismo”.

quinta-feira, novembro 16, 2023

'Na Ponta dos Dedos': amor e dor no mercado da escassez afetiva


Um mundo alternativo no qual o dedo com um curativo é uma marca pública ambígua: de um lado pode ser a marca de um sucesso – o certificado de uma vida amorosa feliz. Ou a cicatriz de um fracasso. “A produção Apple TV + "Na Ponta dos Dedos” (Fingernails, 2023), do diretor grego Christos Nikou, é uma comédia dramática com toque sci-fi em que divórcios e frustrações amorosas foram resolvidos com um bizarro teste que envolve amor e dor: arrancar uma unha de cada parceiro para um dispositivo atestar a compatibilidade. Afinal, o primeiro sinal de problemas cardíacos é frequentemente notado nas unhas... Nesse mundo, a taxa de divórcios despencou. Mas paradoxalmente a felicidade parece ter despencado junto. Um filme que ecoa criticamente a atual cultura dos aplicativos de relacionamentos. E também, como a felicidade virou um nicho de mercado mediante a produção da escassez afetiva.

quinta-feira, outubro 26, 2023

Palhaços, jornalistas e niilismo gnóstico em 'Apocalypse Clown'


Uma explosão solar desencadeia um apocalipse geomagnético na Terra, inutilizando dispositivos móveis e a Internet. Quem se beneficiaria com o caos? Palhaços e jornalistas: sem a concorrência do Tik Tok, a “comedia dell’arte” voltaria à ribalta e num mundo analógico os jornalistas retomariam o faro investigativo perdido. Esse é a comédia irlandesa “Apocalypse Clown” (2023) que traz mais uma vez o niilismo gnóstico ao estilo Terry Gilliam da trupe de humor Monty Python: o riso é a única resposta sensata a uma existência sem sentido. Lembrando a célebre “punch line” do Coringa de Heath Ledger: “Porque está tão sério?”. Um trio de palhaços fracassados se torna anti-heróis em um mundo desconcertante onde nada é o que parece.

quinta-feira, outubro 19, 2023

'Cronos - A Relíquia do Tempo': escravos de Cronos, não percebemos o tempo oportuno



O mito da segunda chance domina o tema da viagem do tempo no cinema. Principalmente por ser um sintoma daquilo que o filósofo Giacomo Marramao chama de “hipertrofia de expectativas”: vivemos angustiados pelas chances perdidas no passado e pela aparente falta de tempo para chegar no futuro. Para os estoicos da Grécia antiga, nos tornamos escravos de Cronos e incapazes de perceber o “tempo oportuno” (kairós), aquilo que no presente nos conecta com o eterno. “Cronos – A Relíquia do Tempo” (2020) é um filme brasileiro que foge do clichê da “segunda chance”. Sobre um protagonista que, da pior maneira, descobre a ilusão de Cronos para encontrar Kairós: um cuidador de idosos recebe um relógio capaz de retroceder o tempo em até 24 horas, mas essa dádiva logo se torna uma maldição quando ele é obrigado a enfrentar as consequências pelo mau uso do dispositivo.

quinta-feira, outubro 12, 2023

'Clonaram Tyrone!': sexo, drogas, junk food e controle social



O que estava apenas nas entrelinhas em “Corra”, de Jordan Peele, e “Sorry to Bother You, de Boots Riley, é  explícito e direto em “Clonaram Tyrone!” (They Cloned Tyrone, 2023), de Juel Taylor, . “Assimilação é melhor que aniquilação”, nos informa a certa altura uma linha de diálogo: como considerar os EUA um país “pós-racial”, como querem os novos democratas do governo Biden, se ainda o país é guiado por uma supremacia branca? Nessa comédia de ficção científica, três improváveis protagonistas negros (um cafetão, um traficante e uma prostituta) desconfiam de algum tipo de sombrio experimento de controle social em uma comunidade através das drogas, sexo e junk food. Se em “Corra” os vilões eram educados brancos liberais e democratas, em “Clonaram Tyrone!” estão novamente brancos. Mas, desta vez, os “falcões da guerra” neocons.

quinta-feira, setembro 28, 2023

'Ninguém Vai Te Salvar': por que queremos acreditar em discos voadores?


Para Jung o fenômeno OVNI era arquetípico: se no passado procurávamos a salvação nos céus através do mito e da religião, agora, numa sociedade tecnológica e ateia, procuramos a mesma coisa através dos discos voadores. O filme “Ninguém Vai Te Salvar” (No One Will Save You, 2023) lembra essa tese junguiana o fazer um mix de duas visões que sempre foram opostas nas representações dos extraterrestres no cinema: ou são objetos fóbicos, ou pacifistas que tentam salvar a humanidade de si mesma. Um filme que é uma experiência cinematográfica: com apenas duas linhas de diálogo, apresenta uma história impulsionada exclusivamente pela ação e narrativa visual – uma jovem solitária que mora num casarão tenta resistir a uma invasão alienígena.

sábado, setembro 16, 2023

O mistério CosmoGnóstico da série 'Origem' faz microcosmo da condição humana


As narrativas CosmoGnósticas (protagonistas que se encontram prisioneiros em realidades artificialmente construídas ou acidentalmente criadas) estão deixando as telonas para ocupar as séries de TV. Um exemplo dessa tendência é “Origem” (From, 2022-), um candidato a pelo menos se equiparar a “Lost”, a série Cosmognóstica mais bem-sucedida – aplicando algumas fórmulas de “Lost”, “Origem” dá continuidade ao drama gnóstico de protagonistas presos em mundos que funcionam como microcosmos da condição humana. Um xerife caminhando por uma rua e tocando um sino que carrega em uma das mãos, avisando a todos para entrar nas suas casas antes de anoitecer, é a imagem indelével que abre a série – os mistérios de uma cidade em ruínas, aparentemente fora do tempo e espaço.

sexta-feira, setembro 08, 2023

Uma invasão alienígena ambígua e fora do tempo no filme 'Sob a Pele'


O filme “Sob a Pele” foi lançado em 2013, mas tem o sabor dos filmes sci-fi cult dos anos 1970: intensidade visual subjetiva, montagens dissociativas e estranhos efeitos sonoros. Estamos aqui no velho tema da invasão alienígena. Porém, narrado de uma forma ambígua: um alien travestido de mulher sexy e misteriosa vaga pelas ruas de Glasgow, Escócia, dirigindo uma van e atraindo homens para o que parece ser uma dança de acasalamento fatal. O que está acontecendo? Qual é o plano? A vanguarda de um plano de invasão alienígena? Ou algum tipo de turismo sexual intergaláctico? Como nos informa o título, o filme explora a dualidade entre o interior e o exterior do ser. E, como superfície, a pele é a grande metáfora.

sexta-feira, setembro 01, 2023

Descida ao inferno tragicômico da precarização em 'Tempos Super Modernos'


As engrenagens de uma máquina industrial engolindo Chaplin em “Tempos Modernos” foi o ícone do velho capitalismo industrial. E qual seria o melhor ícone que representaria o atual capitalismo de plataforma que “liberta” o trabalhador da linha de montagem para ser precarizado? Uma boa contribuição é dada pelo personagem Arturo, com sua bike, mochila e smartphone na comédia dramática italiana “Tempos Super Modernos” (“E noi come stronzi rimanemmo a guardare”, 2021). Acompanhamos a tragicômica saga do protagonista pelo inferno da precarização, depois de ter sido demitido pelo próprio algoritmo que criou. 

quinta-feira, agosto 10, 2023

Em 'Paraíso' a agenda tecnognóstica se encontra com a luta de classes


Tempo é dinheiro. Essa frase deixou de ser um mero provérbio motivacional para contos sobre empreendedorismo. Realizou-se na própria literalidade na financeirização: tempo é monetizado através dos juros e especulações no mercado financeiro. Mas e se o próprio tempo de vida de todos nós for monetizado e se transformar em bem para garantia em transações financeiras? Esse é o ponto de partida da produção Netflix alemã “Paraíso” (2023), trazendo a agenda tecnognóstica (a imortalidade através da tecnociência) para o campo da luta de classes. uma gigante farmacêutica descobriu uma maneira de reverter o processo de envelhecimento - alguém precisa sacrificar anos da sua própria vida para doá-la” ao receptor. Em troca de dinheiro, excluídos, refugiados e migrantes ilegais “doam” décadas das suas vidas, enquanto os super ricos têm a eventual imortalidade.

Dois temas interligados atravessam a produção original Netflix alemã Paraíso (2023): a busca da imortalidade pela elite da sociedade e a monetização do tempo.

Escrito por Simon Amberger, Peter Koclya e Boris Kunz (que também dirigiu), Paraíso gira em torno de uma gigante farmacêutica chamada Aeon (a referência gnóstica às entidades divinas não é casual, como veremos) que descobriu uma maneira de reverter o processo de envelhecimento. Porém, como acompanhamos na cinematografia recente, desde Parasita, nada condescendente com os super ricos, no filme a nova descoberta em manipulação genética não vem sem o elemento da luta de classes: alguém precisa sacrificar anos da sua própria vida para doá-la ao receptor – doadores e receptores precisam ter DNA correspondente.

Por exemplo, um indivíduo na casa dos 80 anos pode querer viver mais, e por uma quantia incrivelmente grande de dinheiro, poderia pedir a uma pessoa de 18 anos com um padrão genético semelhante que tivesse de 50 a 60 anos tirados de sua vida, permitindo que a pessoa de 80 anos retornasse aos 30 anos e a de 18 anos envelhecesse dramaticamente até os 70 anos dentro de alguns dias.

Mas quem se disponibilizaria a entregar para alguém os anos da própria vida? Claro, alguém que esteja desesperado, necessitando de uma soma de dinheiro que ajude a vida de seus familiares – refugiados, migrantes ilegais e excluídos da própria sociedade.

O marketing promocional da empresa fala em liberdade de escolha e livre-arbítrio: dispor parcela da própria vida em troca de dinheiro para dispor da liberdade de aproveitar o restante da existência como quiser. 



Em Paraíso, ageísmo e classismo se encontram – os ricos podem essencialmente viver para sempre se continuarem com o processo, mas são as classes subalternas que mais devem pagar o preço, sacrificando décadas das suas vidas por uma soma de dinheiro suficiente para resolver seus problemas financeiros.

Em muitos aspectos, Paradise lembra o filme de 2011, O Preço do Amanhã (In Time), no qual a imortalidade de poucos significava a mortalidade de muitos ao transformar o Tempo em moeda acumulável e estocável – o Tempo como moeda de especulação, reprodução da desigualdade e controle do crescimento populacional. 

Que a elite sempre almejou a imortalidade para perpetuar o poder, isso não é novidade. Veja o exemplo das pirâmides, nas quais faraós eram mumificados junto com seus bens e riquezas almejando a vida eterna. 

A diferença é que se no passado a imortalidade era buscada pelas vias metafísicas ou religiosas, hoje, através da tecnociência (manipulação genética, neociências, nanotecnologias e ciências computacionais), vislumbra-se a possibilidade da imortalidade ainda nesse mundo. Como, por exemplo, a agenda tecnognóstica do Vale do Silício: digitalizar a consciência e fazer um upload final para o céu da informação, superando as limitações da corporalidade – finitude, temporalidade e senso de fragilidade corporal.

Mas tudo isso confirma a máxima do Capitalismo: Tempo é dinheiro. Principalmente nesse momento da financeirização do Capitalismo – o controle do tempo através da velocidade em tempo real da manipulação de títulos, ações, fundos de investimentos, pregões das bolsas de valores conectadas em tempo real através do planeta. A produções de riqueza especulativa através da manipulação do tempo em si mesmo.



Como didaticamente o filme Os Imorais (The Grifters, 1990) nos explica como uma transferência rápida de informações entre o fechamento da Bolsa de Tóquio e a abertura da Bolsa de Nova York pode render fortunas: receber informações de Tóquio antes da Bolsa americana abrir, com uma vantagem de sete segundos, significaria ganhos milionários. 

Portanto o tema da monetização do tempo em filmes como O Preço do Amanhã e Paraíso, combinado com a utópica (ou distópica, dependendo do ponto de vista de classe social) imortalidade da classe dominante é um reflexo do atual espírito do tempo. 

O Tempo como dinheiro deixou de ser um mero provérbio motivacional para contos sobre empreendedorismo. Realizou-se na própria literalidade.

O Filme

Em Paraíso acompanhamos Max Toma, um corretor de vendas da Aeon altamente bem-sucedido, cujo trabalho é conversar com jovens pobres para que aceitem dinheiro em troca dos anos de suas vidas. 

Nas primeiras sequências encontramos Max convencendo um imigrante de 18 anos a “doar” 15 de seus anos por uma quantia fixa de 700.000 euros. Isso é dinheiro suficiente para tirar seus pais da pobreza e contratar um advogado de imigração para ajudar a garantir o visto de seu pai. Tudo isso em um miserável cenário decadente de um bairro repleto de refugiados e migrantes ilegais.

O marketing da farmacêutica Aeon é, como sempre, otimista e repleto de nobres intenções: imagine doar mais anos para gênios ganhadores de prêmios Nobel. A morte não mais interromperá suas pesquisas, revertendo suas descobertas para o benefício de toda sociedade – certamente não para os “doadores” de tempo de vida.



Apesar da aparência publicitária, o sistema criado pela Aeon é controverso e repleto de possibilidades de corrupção e potenciais abusos – há inclusive um crescente mercado negro de doação de tempo, obviamente através de máfias do Leste europeu. 

Há também um grupo terrorista chamado Adam Organisation que denuncia a imoralidade dessa reprodução da desigualdade mediante a limitação do tempo de vida dos pobres – seus militantes invadem clínicas da Aeon para matar os milionários receptores das “doações”.

No centro de tudo está Max, uma estrela em ascensão na empresa e com uma boa vida. Max não só recebeu um reconhecimento de funcionário do ano e um tapinha nas costas da CEO da AEON, Sophie Theissen, mas ele e sua esposa, Elena, acabaram de financiar um apartamento de luxo e estão tentando ter um bebê. Mas tudo desmorona quando o apartamento do casal sofre um não totalmente elucidado incêndio. O seguro deles não pagará um centavo e o banco cobrará deles a única garantia dada ao empréstimo residencial: 40 anos de vida de Elena – lembre-se, o tempo de vida tornou-se não só uma moeda como um bem que pode ser colocado como garantia em qualquer transação financeira.

Elena é levada por coerção policial e judicial à Aeon para entregar à força suas décadas de vida. Max está furioso, exigindo justiça. E a vida de sua esposa de volta. Isso imediatamente o coloca em rota de colisão com a CEO da Aeon, Sophie Theissen. Principalmente quando ele planeja sequestrá-la para reverter o processo de doação, ao descobrir que ela foi a receptora dos 40 anos de vida Elena.  Reverter o processo, obviamente, através da ajuda do mercado negro no Leste europeu.

É quando Paraíso se transforma: vira num thriller genérico de perseguição, abandonando a inteligente premissa inicial – espere tiros, explosões e loucas perseguições motorizadas na terra e asfalto.



Agenda tecnognóstica

A agenda tecnognóstica da imortalidade marcou bastante os filmes das primeiras décadas deste século, desde Vanilla Sky (2003), o pós-humano em The Machine (2013), a fábula de tecnologia e poder em Transcendence (2014) ou o pesadelo tecnognóstico na série Altered Carbon (2018).

Mas agora essa agenda parece transformada com a tendência recente do cinema infernizar a vida daquele 1% da população obscenamente rica: Parasita, O Cardápio, Glass Onion ou Triângulo da Tristeza. Das reflexões metafísicas e gnósticas sobre o pós-humano, passamos para o tema da imortalidade tecnognóstica ser colocada no campo da luta de classes.

O tema do tecnognosticismo está lá, no próprio nome da gigante farmacêutica: “Aeon”. Na tradição gnóstica simboliza simultaneamente o aspecto feminino de Deus e a alma humana, emanação divina proveniente do Pleroma para manter a conexão entre a Luz interior e esse plano fora do cosmos no qual vivemos aprisionados.

Foi um Aeon (Sophia) que foi responsável pela transição do imaterial para o material, do numenal ao sensível, causado por uma falha – uma paixão que produziu um filho (o Demiurgo, Yaldabaoth, o “filho do caos”). Sophia decai no mundo material conseguindo infundir alguma fagulha espiritual no cosmos físico produzido pelo Demiurgo. Tanto Sophia quanto a humanidade tornam-se prisioneiros desse cosmos. Embora tenha conseguido retornar ao Pleroma (o plano da plenitude espiritual e cósmica), ela observa a humanidade, tentando ajudá-la a alcançar a gnose e retornar à antiga morada, o Pleroma.

Como farsa, a empresa chama-se “Aeon”. Numa sociedade fraturada em classes, a reinterpretação dessa mitologia gnóstica pelo Capital somente pode ser através da imortalidade da elite, cuja missão é manter em funcionamento esse cosmos que aprisiona a todos.


 

Ficha Técnica

 

Título: Paradise

Diretor: Boris Kunz, Tomas Jonsgården, Indre Juskute

Roteiro:  Simon Amberger Peter Kocyla Boris Kunz

Elenco:  Lisa-Marie Koroll, Kostija Ullman, Marlene Tanzcik

Produção: Neuesuper

Distribuição: Netflix

Ano: 2023

País: Alemanha

   

 

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