Richard Curtis é um especialista em filmes levemente românticos e supostamente cômicos como “Notting Hill”, “Quatro Casamentos e um Funeral” e “O Diário de Bridget Jones”. Quando o tema da viagem no tempo cai nas suas mãos, o desfecho não poderia ser outro. Um tema potencialmente tão disruptivo acaba se diluindo naquilo que exatamente o tema desafia: a realidade institucional. No filme de Curtis “Questão de Tempo” (About Time, 2013) a viagem no tempo se transforma numa ferramenta para consertar as desordens da vida ordinária do presente, incorrendo no velho clichê da “quebra-da-ordem-retorno-à-ordem”. Tão conservador que a mecânica temporal do filme ainda funciona dentro da causalidade newtoniana, ignorando os paradoxos quânticos que caracterizam a abordagem fílmica e literária contemporâneas do tema. Tim descobre que os homens da sua família têm o exclusivo poder de viajar para o passado. Então, decide transformar o mundo num lugar melhor. Para começar arranjando uma namorada.
Desde que H.G. Wells publicou em 1895 “A Máquina do Tempo”, ele apontou para o futuro (e para o gênero ficção científica) com um tema potencialmente disruptivo: a viagem no tempo. Wells imaginou um futuro bem distante das ideias dominantes de progresso e razão – imaginou futuros distópicos em que das imponentes cidades vitorianas só tinham sobrado escombros.
Viajar no tempo como oportunidade de colocar em dúvida as verdades dominantes do presente. O que só se potencializou com as revoluções na Física, consubstanciado na Relatividade de Einstein e na Mecânica Quântica – na qual conceitos fantasmagóricos como sobreposição, decaimento, entrelaçamento quânticos e partículas que voltam para trás no tempo incitaram a interpretação de muitos mundos e linhas de tempo alternativas. Como sugeriu a célebre experiência do “Gato de Schrödinger” de 1935.
Como este Cinegnose que apontou em outras oportunidades, esses paradoxos da Física incendiaram a imaginação literária e cinematográfica – desde o olhar crítico e paranoico de Philip K. Dick na literatura aos filmes que exploram os limites dos paradoxos quânticos como Efeito Borboleta (2004), Crimes Temporais (2007) Coherence(2013) ou Infinitum: Subject Unkown (2023).
O ponto em comum em todas essas explorações das anomalias e paradoxos temporais está na potencial quebra da ordem, seja política, social, familiar, ontológica – a descoberta de que o tempo é um constructo coloca em xeque toda realidade institucional.
Mas quando o tema cai nas mãos de um diretor como Richard Curtis, especialista em produções britânicas levemente românticas e supostamente cômicas como Notting Hill, Quatro Casamentos e um Funeral e O Diário de Bridget Jones, tudo se dilui naquilo que exatamente o tema da viagem no tempo desafia: a realidade institucional.
Questão de Tempo (About Time, 2013) consegue diluir tanto um tema tão disruptivo que após assistir ao filme no cinema ou em alguma plataforma de streaming, temos a sensação de que nada aconteceu. Ou a sensação mais comum ao assistir às comédias românticas de Curtis: a de endorfinas cinematográficas sendo liberadas no cérebro gerando uma sensação de euforia e felicidade absoluta.
Filmes tão inofensivos que conseguiram, inclusive, destruir a variedade da masculinidade britânica – cujo século passado criou uma variedade de personagens como Laurence Olivier, “007” Sean Connery, Mick Jagger e Morrissey. Através do ator Rugh Grant, criou personagens que mais parecem coelhos gaguejantes passivos-agressivos.
Em Questão de Tempo não temos mais Hugh Grant como protagonista, mas Domhnall Gleeson, fiel aos maneirismos e inflexões vocais do veterano ator que, nas mãos de Curtis, criou um modelo de protagonista masculino compassivo, tímido, passivo-agressivo, quase como se quisesse se camuflar no entorno para conseguir algum tipo de recompensa.
Se as viagens do tempo sempre suscitam quebras de ordem, crises e irrupções, em Questão de Tempo temos exatamente o inverso: a viagem no tempo vira uma ferramenta útil para restabelecer a ordem, contornar crises ou até ensinar lições morais úteis que nos ajude a agradecer a vida ordinária que temos.
Os filmes de Curtis criam protagonistas decentes, gentis e até materialmente privilegiados. O protagonista Tim (Domhnall Gleeson) é um advogado que trabalha num escritório de advocacia de Londres com pais de classe média alta que moram numa linda casa romântica com vista para a costa da Cornualha, com muitos amigos, boas perspectivas de futuro. Praticamente um baluarte das facilidades de um jovem de classe média com amigos certos em Londres.
Por que diabos esse jovem privilegiado precisa ser um viajante do tempo?
O Filme
Tim nos apresenta à sua família, uma coleção meticulosamente montada de excêntricos que vivem em uma mansão da Cornualha apenas gasta o suficiente para não ser ostensiva – os pais (Nighy e Lindsay Duncan) o adoram. Ele, um professor aposentado que passa os dias lendo clássicos da literatura britânica como Dickens. E a mãe, sempre atenciosa com seus filhos Tim e a irmã com potenciais tendências anárquicas que todos apelidam de “Kit-Kat” (Lydia Wilson), notabilizada pelos abraços afetuosos capazes de te derrubar e a predominância da cor violeta em tudo, das roupas até o próprio carro.
Além de um tio, o “Uncle D” (Richard Cordery), notabilizado pelas roupas formais elegantes em qualquer situação e capacidade de fazer perguntas involuntariamente engraçadas e constrangedoras fora de contexto.
Ao completar 21 anos, seu pai o convida para uma conversa privada em seu escritório. E revela que os homens de sua rica família compartilham um poder que deve ser mantido em segredo: o poder de voltar no tempo. O segredo sempre é contado pelo pai quando o filho completa 21 anos. Não há máquina ou algum ritual esotérico. Apenas se esconder num local escuro, como um armário, apertar os punhos e visualizar para qual local pretende voltar.
Algo tão hereditário quanto o sague azul da nobreza... deve ser algo do imaginário monarquista britânico. Mas há limitações: você só pode visitar partes de sua própria vida – o que impede tentativas de mudar a História, como querer matar Hitler ou alertar o capitão do Titanic.
Algo eminentemente caseiro que está a anos-luz atrás de Star Trek ou até mesmo de H.G. Wells.
Uma vez superado o choque da notícia, Tim decide se concentrar em usar sua recém-descoberta capacidade para melhorar sua vida amorosa – seu pai usa o poder apenas para poder ler mais livros.
Depois de voltar no tempo e consertar uma situação desastrosa de beijo na festa de Ano Novo, mas não conseguir convencer uma visitante de verão (Margot Robbie) a dar-lhe uma chance, ele leva a sério suas atividades de se estabelecer profissionalmente depois de se mudar para Londres.
Lá ele encontra uma americana chamada Mary (Rachel McAdams ) que é louca por Kate Moss, tagarela sobre sua franja muito curta e tem um bom gosto em roupas elegantes.
Num interlúdio romântico tipicamente atípico de Curtis, ele faz com que a dupla se encontre pela primeira vez durante o que equivale a um encontro às cegas literalmente em um restaurante real chamado “Dans Le Noir”, onde os clientes jantam em completa escuridão e são servidos por garçons cegos.
Uma vez fora do restaurante, Mary rapidamente dá a ele o número dela. A partir daí, acontecem os momentos típicos de relacionamento - o primeiro encontro real, o primeiro encontro sexual, o compartilhamento do espaço de vida, o encontro dos pais, a proposta, a sequência excepcional de casamento no dia chuvoso e assim por diante.
Mas com um detalhe: tudo repetido, remodelado e melhorado ligeiramente pela viagem no tempo. Tim repete as situações até elas ficarem perfeitas, lembrando o argumento de Feitiço do Tempo, com Bill Murray.
Aqui começa o extremo conservadorismo de Questão de Tempo. Primeiro a viajem no tempo é uma inexplicável exclusividade masculina naquela família. E tudo deve ser mantido em segredo – os homens formam uma espécie de clube exclusivo do tempo.
Arbitrariamente, podem mudar o passado de todos ao seu bel prazer. Mas, claro, Tim é gentil, um bom moço que jamais usaria tais poderes para, por exemplo, manipular todos e ganhar muito dinheiro – seu pai informa que o seu avô até tentou fazer isso, mas... “se deu muito mal”.
O conservadorismo de Curtis é tão grande que percebemos que o mecanismo temporal trabalhado em Questão de Tempo não é quântico, mas ainda dentro da causalidade newtoniana da seta do tempo: Tim vai e volta, mudando pequenos detalhes do passado, sem criar efeitos borboletas ou involuntárias linhas alternativas do tempo.
Tudo bem!... o leitor pode argumentar que estamos numa comédia romântica e cutucar anomalias e perturbações temporais seriam muito “mind blowing” para o gênero de produções como as de Richard Curtis.
Porém, seja de um ponto de vista newtoniano, relativístico ou quântico, o tema da viagem no tempo, em si, é potencialmente disruptivo.
Mas não em Questão de Tempo: voltar ao passado é uma ferramenta para consertar quebras de ordem no presente.
Para começar, consertar a anômala (mesmo numa família excêntrica) Kit-Kat, descrita a certa altura do filme como alguém com “um olhar de elfo, camisetas roxas e pés sempre descalços”.
Sua liberdade é punida pela escolha de homens errados, alcoolismo e um acidente de carro quase fatal que faz Tim retornar no tempo para evitar que escolha o homem errado. Kit-Kat se “regenera”, escolhe o “homem certo” do círculo de amizades de Tim e vira uma feliz mãe da classe média britânica.
Outra mulher também é punida pelo excesso de liberdade: a mulher fatal Charlotte (Margot Robbie) – aquela que esnobou Tim, negando a ele a iniciação sexual de verão, é depois esnobada cruelmente por Tim. Jogando para fora do filme a única mulher que desafiou o clube exclusivo masculino do tempo.
Um grande retorno à ordem – Alerta de Spoilers à frente
O filme termina com uma mensagem ao mesmo tempo insossa e ideológica. Tim anuncia que foi além do seu pai. Enquanto seu pai costumava viajar de volta no tempo para reviver cada dia (e ler mais), Tim revela que deu um passo além: “Agora eu não viajo de volta, nem mesmo por um dia. Eu só tento viver todos os dias como se tivesse deliberadamente voltado a este dia. Para apreciá-lo. Como se fosse o último dia inteiro da minha vida extraordinária e comum.”
Questão de Tempo termina num grande retorno à ordem: a importância de encontrar a beleza em uma existência comum, apesar das muitas lutas, como forma de amor pela vida.
Ao final, compreende-se essa escolha retro de Richard Curtis abordar o tempo numa superada perspectiva newtoniana: é tão conservador e reacionário como todo o resto.
Questão de Tempo é uma completa insanidade tranquilizante.
Ficha Técnica |
Título: Questão de Tempo |
Diretor: Richard Curtis |
Roteiro: Richard Curtis |
Elenco: Domhnall Gleeson, Rachael McAdams, Bill Nighy, Lydia Wilson, Margot Robbie |
Produção: Translux, Working Title Films |
Distribuição: Amazon Prime Video |
Ano: 2013 |
País: Reino Unido |