Após cinco temporadas, a premiada série televisiva de dramas, crimes e thriller “Breaking Bad” (2008-2013) ingressou na lista de filmes de diversos gêneros que
exploram simbologias alquímicas de transformação como “Blue Velvet” de David
Lynch ou “Beleza Americana” de Sam Mendes. Narrativas que exploram as
possibilidades de transformações íntimas em nossas vidas através de elementos
que tradicionalmente tomamos como negativos: caos, trevas e morte. Um professor
de Química confronta a morte, o câncer e um vida fracassada por meio de uma
jornada radical de redenção no submundo do narcotráfico. A metanfetamina azul
se transforma na série em simbologia alquímica ao mesmo tempo de redenção
espiritual e destruição de um mundo de aparências. Por isso, “Breaking Bad”
também foi um “experimento sociológico”, segundo seu criador Vince Gilligan.
Dostoiévsky
num deserto do Oeste dos EUA. Dessa maneira muitos críticos sintetizaram as
cinco temporadas da série Breaking Bad:
um professor de Química do ensino médio (Walt White) em um canto empoeirado dos
EUA (Albuquerque, Novo México), labuta em seu desespero silencioso por saber
que já é um condenado pelo câncer no pulmão. Com um filho deficiente físico e a
esposa grávida, sabe que um possível tratamento o levará à banca rota. Junta-se
a um ex-aluno rebelde (Jesse) para, com seus conhecimentos de química, fazer a
metanfetamina mais pura do mercado do submundo das drogas, para ganhar muito
dinheiro rapidamente e, assim, garantir a segurança financeira da sua família
após a sua morte.
Tudo
levava a crer que teríamos uma história tragicômica de um protagonista que
pateticamente tentava salvar uma vida que falhara, mostrando que a existência é
desprovida de qualquer sentido ou propósito. Mas as cinco temporadas mostraram
que não era isso: a jornada de Walt White converteu-se numa épica batalha
de transformação íntima onde um velho modo de vida baseado em aparências e
farsas é levado ao caos para que o novo renasça, mesmo com o custo da própria
morte.
As
pistas já eram dadas pelo criador da série, Vince Gilligan, onde nos créditos
iniciais vemos a tabela periódica estilizada e em movimento: mais do que Química, Gilligan mostrou simbolismos da Alquimia – Breaking
Bad tratou das possibilidades de dissoluções e transmutações em nossas
vidas, encorajando meditações sobre como o poder das trevas, caos e morte,
elementos tradicionalmente pensados de forma negativa, podem se converter em elementos
positivos: agentes catalizadores de iluminações, novas ordens e vidas.
A simbologia alquímica
Gilligan
explorou a imagerie do cinema
alquímico presente em uma tradição de filmes como Blue Velvet (1986) de David Lynch, Beleza Americana (1999) de Sam Mendes e Sinédoque, Nova York (2008) de Charlie Kaufman.
Prática
antiga que combina elementos da Química, Metalurgia, Matemática, Cabala,
Gnosticismo, Magia e Astrologia, a Alquimia busca, através de sucessivas
operações (Nigredo, Albedo e Rubedo),
reproduzir as etapas de criação do cosmos físico pelo Demiurgo para redimir a
matéria – elevá-la do estado da “ignorância” (como a pedra, por exemplo) para
estágios superiores de “consciência” (como o ouro).
Portanto,
toda Alquimia seria um complexo conjunto de práticas experimentais e místicas
que simbolizariam os estados de transmutação da consciência: diferente de
muitas linhas neo-platônicas ou cabalistas, a matéria não pode ser simplesmente
transcendida ou desprezada. Ela deve ser redimida, transmutada por meio do caos
e da morte.
Nas
entrevistas onde procura esclarecer o processo de criação da série Breaking Bad, Vince Gilligan afirma que
nunca levou Química e Matemática à sério na escola e se arrependia desse
desprezo. Isso teria sido o principal motivador para o argumento da série, que
o fez devorar revistas Popular Science
e contar com uma especialista da Universidade de Oklahoma - leia "Breaking Bad creator Vince Gilligan answers fan questions".
Esse mix de
fascínio, ciência popular e consultoria técnica parece confirmar como a cultura
de massa com a sua subliteratura de HQs, magazines, filmes B, sci fi, horror e
fantasia, acabou criando uma espécie de “sub-zeitgeist” esotérico-religioso que
faz renascer arquétipos que dão uma leitura mística de fenômenos científicos.
Por que a metanfetamina é azul?
O
primeiro exemplo é a cor azul da metanfetamina de Walt: Gilligan procurava uma
cor para o produto que representasse o grau de pureza do produto que conotasse
também a própria busca de redenção de Walt.
A consultoria técnica ponderou que se aplicamos uma cor ao produto, quimicamente
ele se tornaria menos puro. Gilligan ignorou a evidência científica (para
Gilligan a cor amarela que seria a quimicamente correta lembraria urina e
vergonha) e optou pelo azul que simbolizaria pureza. Para reforçar, sua esposa
chama-se Skyler numa referencia ao céu azul e a suas roupas da mesma cor.
Outro
ponto interessante da imagerie
alquímica da série é o câncer pulmonar de Walt. A palavra pulmão vem de pleumon (fluir, fluturar) provavelmente
porque, ao contrário das outras vísceras, lançado à água o órgão flutua. Na
tradição o esotérica, o pulmão está associado ao ar e a espiritualidade, o
pneuma (a alma racional). Mais um simbolismo da redenção e transformaçãoo
buscada pelo protagonista.
Além disso,
temos o codinome escolhido por Walt para ser reconhecido no submundo do
narcotráfico: “Heisenberg”. Sabemos que o físico Werner Heisenberg foi o
formulador do conhecido Princípio da Incerteza na física quântica: quando se tenta estudar uma
partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de
uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode
observar uma coisa sem influenciá-la.
Esse codinome não seria mais
perfeito para um protagonista alquímico como Walt White. Diferente do cinema
tradicional onde o protagonista é “extrovertido” (tenta intervir e alterar o
mundo) ou “introvertido” (contemplativo), no cinema alquímico o protagonista
pratica a “centroversão”: a sua transformação íntima acaba afetando
involuntariamente a todos ao redor (na série, em uma sucessão de mortes,
tragédias e dramas familiares em cascata), num processo holístico semelhante ao
sugerido por Heisenberg onde o observador não consegue ficar à parte do objeto.
As etapas alquímicas de
transformação - spoilers à frente
A
narrativa e as sucessivas temporadas de Breaking
Bad parecem acompanhar os três estágios de transformação alquímica:
(a) Nigredo (enegrecimento): o caos primário
da indiferenciação. Sob a influência de Saturno, Walt é melancólico em seu
desespero silencioso. Nas duas primeiras temporadas, tal como os filmes noir
dos anos 1940-50 não má mocinhos e bandidos, ninguém é o que aparenta ser:
Rank, o cunhado de Walt e investigador da Departamento de Narcóticos da
Polícia, por trás da sua aparência de superxerife, é inseguro e busca
reconhecimento e promoção encobrindo seus problemas conjugais; um cidadão
benemérito da polícia local na verdade é um narcotraficante implacável e cruel
(Gus Fring); Skyler trai Walt com um antigo amante etc.
A
melancolia de Walt só poderia ser atraída para o submundo e para um personagem loser como Jesse: no cinema alquímico,
personagens como o do Estrangeiro (aquele que possui uma relação de
estranhamento com sua família e cidade) sempre é atraído para o submundo – o
protagonista vê que a única forma de redenção é mergulhando no caos para
redimir a matéria.
(b) Albedo (embranquecimento): Sr. White (branco) encontra um estado ideal de
estabilização, abstrato e ideal. Sob a assistência do impagável advogado
porta-de-cadeia Saul Goodman, cria canais de lavagem de dinheiro da
metanfetamina. Ele quase consegue conciliar a vida familiar com o submundo do
narcotráfico. Na alquimia o estágio do Albedo é regido pela Lua: nesse estágio
sonhos e fantasias de um mundo ideal torna-se perigoso, podendo tornar o
protagonista “lunático”. Walt começa a tomar gosto pelo seu personagem
Heisenberg (careca com um chapéu estiloso preto). Essa idealização e a aparente
regressão do câncer pode criar um ilusório estado de estabilização.
(c) Rubedo (erubescimento): a esse estado
ideal que acompanhamos na temporada 3 e 4, é necessário injetar o Sol, a Vida e
o Sangue na última temporada. Como Vince Gilligan afirmou, era necessário
encontrar uma forma de Walt pagar pelo seus pecados e, ao mesmo tempo,
encontrar sua redenção. Paradoxalmente, o protagonista renascerá do caos das
relações humanas por meio da morte.
O banho
de sangue final (que faz lembrar outra narrativa alquímica de transformações no
filme Taxi Driver de 1976 com Robert
De Niro) e a emblemática imagem final de Walt mortalmente ferido passando sua
mão ensanguentada em um dos recipientes do laboratório de produção de
metanfetamina marcam imageticamente a transmutação do rubedo: num laboratório
em meio do deserto (elemento Sol) o laboratório é marcado pelo vermelho do
sangue – tanto em filmes com Blue Velvet como em Beleza Americana, sangue e
flores vermelhas são as imagens desse momento culminante de redenção do
protagonista.
Um experimento sociológico
Na entrevistas Gilligan
afirmou diversas vezes que Breaking Bad era um verdadeiro experimento
sociológico pela forma como os espectadores interagiram com Walt White ao longo
da série ao acompanhar suas transformações.
Mas esse experimento foi
além: ao mostrar como as transformações íntimas de Walt foram revelando a
realidade por trás do teatro das aparências sociais, passamos a colocar sob
suspeita alguns acontecimentos que muitas vezes figuram na mídia:
(a) Quando você ver notícias
de pessoas que misteriosamente desapareceram sem deixar vestígios (abduzidas
por ETs?) desconfie: como na série, deve ter sido algumas daquelas pessoas
azaradas que apareceram no lugar errado e na hora errada. Assassinadas por
serem testemunhas, são dissolvidas em caldos químicos em laboratórios de
narcotraficantes;
(b) Correntes de donativos
na Internet para causas humanitárias e para o tratamento de pessoas com doenças
exóticas, também desconfie: pode ser uma forma cibernética de lavagem de
dinheiro sujo através de algum laranja;
(c) Se ouvir falar de uma
empresa ou negócio praticamente falido que foi vendido e, repentinamente,
prospera e em pouco tempo começa a abrir filiais, pode ter certeza: é um
instrumento de lavagem de dinheiro. Afinal, como dizia Balzac, por trás de toda
fortuna se esconde um grande crime.
Ficha
Técnica
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Título: Breaking
Bad (série de TV)
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Criação: Vince Gilligan
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Roteiro:
Vince Gilligan, Sam Catlin, George Mastras
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Elenco:
Bryan Cranston, Anna Gunn, Aaron Paul, Dean Norris, Betsy Brandt
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Produção: Gran Via Productions, Sony Pictures Television, High Bridge
Productions
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Distribuição:
Sony Pictures Home Entertainment
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Ano:
2008-2013
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País:
EUA
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