domingo, outubro 28, 2012

"Deus é meu inimigo!"

Crianças são imprevisíveis, principalmente no que pensam e falam. Suas impressões e tiradas são muitas vezes surpreendentemente cortantes pela sinceridade e concisão. Ideias que para os adultos já são tão evidentes em si mesmas que passam batidas e sem exigência de reflexão, para uma criança que as conhece pela primeira vez muitas vezes são motivos de estranhamento. Uma delas é a ideia de “Deus”. Outro dia, meu filho Gael demonstrou toda sua estranheza: “O Deus é meu inimigo!”, disparou. O que está por trás dessa afirmação de uma criança de quatro anos em um universo lúdico povoado de super-heróis como Homem Aranha e Ben 10, seus preferidos?

Um dia Gael virou para minha esposa e falou com convicção: “O Deus é meu inimigo!”. “Mas o que Ele te fez?”, perguntou Tatiane pega de surpresa com uma afirmação tão dura. “Todos têm medo do Deus. Eu só tenho medo dos meus inimigos e vilões. Então, o Deus é meu inimigo”, concluiu em um evidente silogismo aristotélico. A aproximação dos termos “inimigos” e “vilões” torna claro que Gael não se referia a inimigos pessoais, mas os vilões dos super-heróis com os quais ele se identifica. Um herói teme seus inimigos (o início da sabedoria dos super-heróis) para depois encontrar o ponto fraco e vencê-los.

O que me surpreendeu foi a sua concepção de Deus como uma entidade punitiva e grave que impõem respeito através do medo. Gael não estuda em uma escola religiosa, mas pedagogicamente crítica, construtivista e laica. Certamente tal concepção não foi passada diretamente em aulas de religião, catecismo ou mesmo Filosofia. Se ele não recebeu essa concepção de Deus de forma doutrinária ou religiosa, só pode ter apreendido indiretamente dentro do contínuo cultural no qual estamos imersos.

quarta-feira, outubro 24, 2012

A sedução pelas imagens em "Saneamento Básico, O Filme"

A burocracia da administração das verbas públicas municipais coloca moradores de uma pequena cidade em uma situação inusitada: a única solução para obter dinheiro para construir uma fossa séptica e resolver o problema do esgoto a céu aberto é a produção de um vídeo ficcional sobre esse próprio problema real.  A questão é que os moradores não têm a menor noção sobre produção de um vídeo e nem o significado da palavra “ficcional”. “Saneamento Básico, O Filme” (2007) de Jorge Furtado não só faz uma didática e divertida metalinguagem sobre os princípios da linguagem audiovisual, mas nos oferece uma oportunidade de reflexão sobre como a imagem tornou-se o centro da sociedade atual, como fetiche, sedução e contaminação do real ao produzir “não-acontecimentos”.

Que vivemos na sociedade das imagens, isso é um consenso desde Guy Debord com o seu livro “Sociedade do Espetáculo” que descreve o espetáculo difuso como um modo capitalista de organização social que resulta em alienação e a transformação dos homens em simples coisas por meio das mercadorias. Desde Debord, a imagem é sempre vista através do viés do parasitismo, isto é, como uma imensa fantasmagoria que não nos deixaria compreender as verdadeiras necessidades humanas e espirituais.

Imagem seria ideologia, falsa-consciência, fetiche, mentira ou manipulação.

Mas, e se distinção que subjaz neste enfoque tradicional (imagem/referente, verdade/mentira, real/ilusório) desaparecesse na sociedade do espetáculo contemporânea? Explicando melhor: e se graças à onipresença das linguagens midiáticas e da criação de um “contínuo midiático atmosférico” a imagem se confundir com a própria realidade a tal ponto que o primado das imagens deixasse de ser apenas uma fantasmagoria, mas a própria estrutura constitutiva da realidade? Ou seja, para o indivíduo as antigas distinções entre ilusão e realidade pouco importariam, já que a imagem produz efeitos tão reais quanto as demandas ontológicas do mundo real.

Complicado? Pois o filme brasileiro “Saneamento Básico, O Filme” apresenta uma narrativa ao mesmo tempo hilária e didática sobre essa perversa evolução da sociedade do espetáculo.

Produção da Casa de Cinema de Porto Alegre e dirigido por Jorge Furtado, o filme nos apresenta uma narrativa que se passa numa simplória e bucólica comunidade de imigrantes italianos no interior do Rio Grande do Sul. Marina (Fernanda Torres) e Joaquim (Wagner Moura) lideram uma mobilização de moradores em defesa da construção de uma fossa para abrigar o esgoto local que corre a céu aberto. 

domingo, outubro 21, 2012

O Mal pune desobedientes em "Um Olhar do Paraíso"

Centrada na estória de uma menina que foi assassinada e observa sua família e seu assassino do “céu” (não propriamente, mas de um limbo entre a terra e o céu), a adaptação do romance “Lovely Bones” de Alice Sebold esquece a inteligência e a intrincada estória do livro e confina a experiência do sagrado na célebre fantasia-clichê hollywoodiana da “quebra-da-ordem-e- retorno-a-ordem”: quem transgride a Ordem deve ser punido! Assim é Um Olhar do Paraíso” (Lovely Bones, 2009)
Como já abordamos em postagens anteriores (veja links abaixo), a chamada experiência do Sagrado tal qual compreendida pelo mainstream midiático da atualidade consiste numa espécie de teologia secularizada: uma experiência que seria originada na percepção ou descoberta intuitiva súbita que o indivíduo teria de uma conexão com uma “ordem maior”, com uma totalidade cósmica ou divina.
Descontínuo e marcado para morrer, para o homem a Verdade não estaria na experiência individual, mas na liquidação de qualquer perspectiva particular em nome de uma Totalidade (“Somos todos Um”, o totalitário slogan New Age).

Nessa perspectiva, esse Sagrado enquanto teologia secularizada, teria duas “funções”: adaptar de forma violenta o indivíduo às totalidades sociais (ordem corporativa, política, moral etc.) e trazer racionalização e conforto à dor e sofrimento individuais decorrentes dessa adaptação forçada (mostrar ao indivíduo que ele é insignificante diante dos desígnios maiores do Cosmos).
Como no filme Juventude Transviada (Rebel Without a Cause, 1955) onde o personagem de James Dean (Jim Stark) olha para as estrelas do Planetário e diz que vem sempre para lá para, ao contemplar a imensidão do universo, perceber como seus problemas são insignificantes.

Da mesma forma, Um Olhar do Paraíso confina a experiência do sagrado a sucessivas experiências de punições dos personagens por transgressões da Ordem. E o filme segue essa fantasia-clichê de forma surpreendentemente rígida e esquemática no melhor estilo dos filmes que envolvem adolescentes nos gêneros terror ou thriller. Se não, vejamos.

sexta-feira, outubro 19, 2012

O futuro do cinema e do real em "S1m0ne"

“Uma estrela digitalizada! Sabe o que isso significa? Vamos entrar em uma nova dimensão: nossa capacidade de criar uma fraude ultrapassou nossa capacidade de detectá-la” Depois de escrever o roteiro de “Show de Truman” Andrew Niccol escreveu, dirigiu e produziu “S1m0ne” (2002) para aprofundar ainda mais a questão lançada no filme anterior. Se em “Show de Truman” tínhamos um mundo falso criado para aprisionar uma pessoa, em “S1m0ne” Niccol fez o inverso: a criação de uma pessoa falsa para enganar e seduzir todo o mundo.

Andrew Niccol demonstra uma afinidade com temáticas relacionadas aos impactos sociais das mídias e novas tecnologias. Antes, escreveu os roteiros de “Gattaca” (1997) e “Show de Truman” (1998), filmes que, respectivamente, discutiam a ética e o impacto humano na manipulação genética e a hipertrofia do gênero televisivo reality show. Uma olhar para o impacto da tecnologia através de simbolismos cabalísticos, alquímicos e gnósticos. Dessa forma, Niccol pertence a uma geração de roteiristas e diretores que, a partir da década de 1990, participam de uma espécie de guinada metafísica de Hollywood já discutida em postagem anterior (veja links abaixo): Darren Aronofsky (“Pi” – 1998 e “Fonte da Vida” – 2006), Charlie Kaufman – “Quero Ser John Malkovich” – 1999 e “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” – 2003) entre outros.

Em “S1m0ne” Niccol faz uma irônica projeção do futuro do cinema com as tecnologias digitais onde a virtualização poderia chegar às raias da fraude e também uma forma mística de transcendência espiritual para escapar da “irracional fidelidade à carne”, como declara o protagonista em uma das linhas de diálogo do filme.

domingo, outubro 14, 2012

Físicos tentam provar que vivemos na "Matrix"

Cientistas da Universidade de Bonn, Alemanha, estão levando a sério a hipótese de que o nosso universo poderia ser uma gigantesca simulação de computador ao melhor estilo “Matrix”. Liderados pelo físico Silas Beane, tentam encontrar a “assinatura cósmica” dessa simulação e a natureza da nossa “visão restrita” que nos impediria de percebermos essa virtualidade do real. Para superar essa “visão restrita” tentam criar uma simulação de nosso universo simulado (uma espécie de meta-simulação), o que faria lembrar não só filmes como “O Décimo Terceiro Andar” (1999) e “Matrix” (1999), mas também a cosmologia gnóstica e o Princípio da Correspondência do Hermetismo e Alquimia da antiguidade em Alexandria.

Alguma outra civilização teria alcançado a capacidade de produzir computadores tão poderosos que teria desenvolvido simulações do próprio universo em que habita. E nós poderíamos estar vivendo em uma dessas simulações, reproduzindo a mesma trajetória que os nossos “criadores” trilharam. Se na atualidade vemos um número crescente de usuários imersos em mundos virtuais como “Second Life”, “SimCity” e “World of Warcraft”, isso representaria o início dessa trajetória que nos conduziria à mesma capacidade de projetar simulações.

Essas ideias não saíram de um roteirista de sci fi, mas do filósofo e matemático professor da Universidade de Oxford Nick Bostrom, sugerido em um artigo em 2003 e sustentado apenas por uma fórmula probabilística que seria essa:     
Onde:  

  • fp  é a fração de todas as civilizações humanas que alcançaram a capacidade tecnológica de produzir programas simuladores de realidade;
  • “N” é a média de simuladores ancestrais funcionando pelas civilizações mencionadas em fp;
  • “H” é a média do número de indivíduos que viveriam em uma civilização antes dela estar hábil a criar simuladores de realidade;
  • “fsim” é a fração de todos os humanos que vivem em realidades virtuais.

Pois “H” terá um valor tão grande que, pelo menos, uma das três aproximações será verdadeira:

fp 0
N 0
fsim   0

Apesar da fórmula que dá um aspecto de cientificidade, a hipótese de Bostrom era principalmente filosófica e poucos ousariam a dar continuidade a uma ideia como essa. Até ser noticiado que uma equipe de físicos teria afirmado que seria possível confirmar ou não essa hipótese, bastando encontrar uma “assinatura cósmica” (clique aqui para ler a notícia). E os pesquisadores já teriam uma descrição do que seria essa “assinatura”. 

sexta-feira, outubro 12, 2012

Os Cátaros, Paulo Coelho e o turismo esotérico

Escalar uma "montanha mágica" nos Pirineus para encontrar a fortaleza dos heréticos Cátaros do século XII. O problema é que, para eles, toda a suposta beleza dos céus e da Terra era “obra de um demônio”. Mas para um turista esotérico isso não importa: a jornada descrita pelo famoso escritor de best sellers esotéricos Paulo Coelho confirma os principais mitos dessa agenda “new age” cujo imaginário criou um subgênero na indústria do turismo. Os mitos dessa jornada: Os “Sinais”, O “Todo”, Os “Lugares Especiais” e O “Antigo”.

Em uma das minhas visitas à cidade de Santos (meus pais moram lá) me detive diante de uma banca de jornal e parei na primeira página do jornal “A Tribuna de Santos”. Era domingo, dia em que o jornal vem com o suplemento “ATrevista”, uma revista de variedades culturais, culinárias e dicas de compras. Temas bem amenos para um típico domingo santista ensolarado e quente. Folheando a revista, perdido entre receitas culinárias e páginas publicitárias, encontro uma coluna do famoso escritor de best sellers esotéricos Paulo Coelho intitulado “Montanha Mágica” (clique aqui para ler).

O texto começa com uma típica descrição turística sobre “uma das as mais belas regiões do mundo”, Languedoc nos Pirineus e Sudoeste da França. “Mas foi nesse lugar magnífico que nasceu a primeira grande “heresia” europeia: o catarismo. Muitos livros foram escritos sobre o tema, entretanto, é possível resumir a filosofia cátara numa simples frase: o universo foi criado pelo demônio. Toda esta beleza aparente é uma obra diabólica.” Uauuu! Que tema para um domingo de sol e praia!

Para quem não sabe, os Cátaros foram os responsáveis pelo reaparecimento do Gnosticismo na Europa no século XII, esparramados pelo Sul da França, Languedoc, Catalunha e norte da Itália. Foi um movimento cristão considerado herético pela Igreja, com forte paralelo com os gnósticos do princípio da era cristã, mais precisamente com o dualismo de Mani (viveu no Irã no século III) que sustentava que o cosmos seria dividido por dois poderes opostos: o Bem e o Mal, o verdadeiro Deus e o Demiurgo, uma divindade decaída e enlouquecida com o próprio poder que nos aprisiona em um universo físico corrompido.

sábado, outubro 06, 2012

O mundo que nos expulsa no filme "Lugares Comuns"

O filósofo alemão Hegel dizia que “a coruja de Minerva somente levanta voo ao entardecer” numa alusão à esperança de que a Razão ganhe força em momentos de crise e obscurantismo. E se a Razão falhar? Então, seremos expulsos desse mundo. Esse é o tema filosófico dentro do cenário da crise econômica no filme argentino “Lugares Comuns” (Lugares Comunes, 2002). Um professor de Literatura é compulsoriamente aposentado em um reflexo da crise econômica do país e vê seus valores iluministas e humanistas desmoronarem, sentindo-se um estrangeiro em um mundo cujo lógica não trabalha com soma, mas com subtração.

“Eu sei que existe a desordem, a decepção e a desarmonia. Existe um país nos destruindo, um mundo que nos expulsa, um assassino impreciso que nos mata dia após dia, sem que percebamos. Não tenho uma resposta. Escrevo do caos, da mais completa escuridão”. Essas são as primeiras frases em off do protagonista enquanto escreve apontamentos ou pequenas crônicas para o seu diário. Fernando (Frederico Luppi) é um professor de Literatura em uma universidade em Buenos Aires sob a catastrófica crise econômica argentina do início dos anos 2000 pós-política neoliberais do presidente Carlos Menen.  

Como podemos perceber nessa fala inicial, o filme “Lugares Comuns” fará um paralelo entre a crise em uma dimensão material (a econômica) é a outra crise em um plano metafísico ou filosófico (as velhas questões da Filosofia que, de tão repetidas, tornaram-se “lugares comuns” – caos e ordem, necessidade e liberdade, livre arbítrio e destino).

Fernando é casado com Lili (Mercedes Sampietro) uma assistente social que acompanha de perto as consequências da crise no país. Apegado ao pensamento crítico, ao Iluminismo e Humanismo tenta exercer a crítica literária e, ao mesmo tempo, ensina seus alunos a pensarem e manterem-se longe dos dogmas políticos e religiosos. Tenta transformar a Razão em bússola em um momento de crise e caos social. A frase de Hegel de que “a coruja de Minerva levanta voo somente no entardecer” (a Razão torna-se mais forte em momentos de obscurantismo) seria a convicção salvadora de Fernando.

quinta-feira, outubro 04, 2012

Em busca do Cinema Acontecimento

Uma época em que o cinema não era apenas entretenimento, mas um acontecimento capaz de transformar vidas. Do início do cinema lembramos principalmente dos Irmãos Lumière e de Meliés. Mas poucos pesquisadores dão espaço para relatos sobre uma produção cinematográfica norte-americana do começo do século XX que tematizava os conflitos capital-trabalho, o sindicalismo e a dura vida de imigrantes e trabalhadores em fábricas e minas. O maravilhamento do primeiro público do cinema formado pelos estratos inferiores da sociedade ao se ver representado na tela transformava as primeiras salas de cinema em eletrizantes acontecimentos de participação e interatividade. Logo esses verdadeiros filmes-acontecimentos foram reprimidos e enquadrados por Hollywood e, a partir de 1924, considerados "anti-americanos" (comunistas) pelo Bureau of Investigation de Edgar Hoover. Desses primeiros tempos ficou o desejo da ruptura da ordem e da rotina que nos acompanha a cada ida ao cinema, o anseio pelo Acontecimento. 

Para a maioria dos espectadores, ir ao cinema não é uma atividade que esteja associada ao perigo e comportamentos transgressivos. Tido como um local onde fantasias podem ser vividas e tudo pode acontecer em um universo ficional, está mais comumente associado ao entretenimento ou, no mínimo, a uma fuga dos problemas ou do esquecimento momentâneo dos aborrecimentos do dia-a-dia.

Mas nem sempre foi assim ou, talvez, nunca tenha sido. De um lado há uma história descrita por pesquisadores que localiza no chamado primeiro cinema um tipo de experiência estética que não se resumia unicamente a uma forma de entretenimento: pelo contrário, era uma forma de experiência que poderia transformar vidas; de outro, pesquisas críticas que descrevem o cinema e a própria experiência estética como uma arena de tumulto e contenção, quebras e retornos à ordem, crítica e reação. Para esses pesquisadores, desde o primeiro cinema e a posterior industrialização, enquadramento e controle, o cinema traria ainda dentro de si a potencialidade em transcender a si mesmo, mudar vidas de espectadores, transformar a experiência estética em um acontecimento.

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