quinta-feira, outubro 26, 2023

Palhaços, jornalistas e niilismo gnóstico em 'Apocalypse Clown'


Uma explosão solar desencadeia um apocalipse geomagnético na Terra, inutilizando dispositivos móveis e a Internet. Quem se beneficiaria com o caos? Palhaços e jornalistas: sem a concorrência do Tik Tok, a “comedia dell’arte” voltaria à ribalta e num mundo analógico os jornalistas retomariam o faro investigativo perdido. Esse é a comédia irlandesa “Apocalypse Clown” (2023) que traz mais uma vez o niilismo gnóstico ao estilo Terry Gilliam da trupe de humor Monty Python: o riso é a única resposta sensata a uma existência sem sentido. Lembrando a célebre “punch line” do Coringa de Heath Ledger: “Porque está tão sério?”. Um trio de palhaços fracassados se torna anti-heróis em um mundo desconcertante onde nada é o que parece.

 

A maioria dos filmes catástrofes seguem a fórmula consagrada dos filmes de Roland Emmerich (Independence Day, Godzilla, 2012, Moonfall) – explosões espetaculares de marcos nacionais de tantas maneiras quanto possível. 

Mas um filme catástrofe como filme irlandês de George Kane, Apocalypse Clown (2023) é um ponto totalmente fora da curva. E não se perca pelo fato de ser uma comédia, e ter como protagonistas principalmente... palhaços! Na superfície, é um mix de humor corporal slapstick com screwball comedy, numa inusitada combinação entre palhaços e... jornalistas.

O planeta é atingido pelo pulso geomagnético de uma gigantesca explosão solar, que derruba em escala global todas as redes elétricas e eletrônicas de energia e comunicação: repentinamente, as pessoas perdem as inestimáveis companhas dos dispositivos móveis, Internet e redes sociais. 

Mas por que essa combinação de catástrofe, palhaços e jornalistas? Porque a civilização construída sobre a eletricidade e eletrônica tornou as figuras de palhaços e jornalistas ultrapassados. Palhaços (ou mais precisamente “clowns”, aqueles herdeiros da tradição teatral, circense, da commedia dell’arte e da arte da pantomima) e jornalistas (aqueles da velha escola da reportagem investigativa) foram ultrapassados pelas dancinhas do Tik Tok, lendas urbanas na Internet e o jornalismo de clikbait.

 Mas, e se um apocalipse geomagnético acabasse com esse mundo eletrônico e nos jogasse de um dia para o outro num novo mundo novamente analógico? Será que palhaços e jornalistas reconquistariam a relevância perdida?

A série HBO Max Station Eleven (2021-) já havia tangenciado esse tema, ao nos mostrar uma trupe itinerante de atores e músicos shakespearianos que circula por um mundo pós-apocalipse levando o que restou da velha civilização – clique aqui.



Mas nada parecido do Apocalypse Clown, principalmente pelo humor niilista gnóstico que é o seu pressuposto filosófico – o niilismo como a única força que nos proporciona liberdade: quando a vida e o Universo deixam de possuir algum desígnio, propósito ou sentido, é quando nos sentimos mais leves e livres.

“O riso é a única resposta sensata a uma existência sem sentido”, diz a certa altura Jean DuCoque, um professor palhaço da velha guarda que tenta incutir algum sentido à profissão para seus alunos – a algumas horas antes do apocalipse solar.

A explosão solar é o caos eletrônico planetário é a metáfora de base da qual o filme parte: “devemos lutar pelos nossos sonhos”, diz um narrador na abertura. Porém, e se os nossos sonhos forem grandes demais? Isso porque somos pequenos e insignificante habitante de uma partícula de carbono flutuando num universo cruel e implacável. E absolutamente indiferente à nossa existência.

Se o universo e a existência não se importam com os nossos sonhos e, num flash ou piscar de olhos, tudo pode se acabar, talvez rir de Deus (ao invés de amaldiçoá-lo) seria a melhor opção: rir do absurdo da existência seria a maior força impulsionadora da liberdade... ou a chance de se tornar um palhaço decente.

O Filme

Dirigido por George Kane e escrito por Shane O'Brien, James Walmsley e Demian Fox da trupe irlandesa de comédia “Dead Cat Bounce”, Apocalypse Clown segue um trio de palhaços fracassados, e uma jornalista, que acham que têm a chance de voltar aos holofotes quando um evento solar leva a apagões elétricos e eletrônicos em massa pelo planeta.

O filme abre com uma humilhante cena para o palhaço Bobo (David Earl) que tenta (sem sucesso) entreter crianças internadas num hospital – uma geração cínica demais, viciada em Tik Tok e vídeos lacradores nas redes sociais. Cansado de tanta humilhação, ele decide abandonar a profissão. Não sem antes de ir ao funeral de Jean DuCoque, considerado o último grande palhaço.



Lá Bobo se encontrará com o seu rival do passado, o Grande Alphonso, Ivan Kaye, (um palhaço ressentido e que tenta retornar à glória, depois de ter um programa de TV cancelado nos anos 1990), sua ex-amante, uma jornalista chamada Jeny, Amy De Bhrún, (frustrada, trabalhando numa agência de notícias digitais caça-cliques), além de conhecer o falido mímico Pepe (Fionn Foley) e o aterrorizante palhacinho de rua ao estilo Pennywise chamado Funzo (Natalie Palamides).

Quando a erupção solar atinge o planeta, os palhaços veem a oportunidade de voltarem à ribalta em um mundo novamente analógico. E a jornalista Jeny, a oportunidade de fazer jornalismo sério: uma reportagem investigativa sobre as causas do fim do mundo.

Mas o grupo terá no seu encalço uma dupla de vilões que persegue o palhaço Funzo: uma briga de rua entre Funzo e duas estátuas humanas em uma praça atraiu a fúria de vingança – as estátuas deixam seus pedestais e saem de moto em fúria. Lembrando o clichê pós-apocalíptico das gangues ao estilo Mad Max.

Mas, do outro lado, terão que lidar com a síndrome de grandeza do Grande Alphonso, um palhaço arrogante e pomposo: numa referência ao “Senhor das Moscas”, monta uma gangue de crianças que o apoiarão na montagem de um circo com shows de requintes sádicos. Um exemplo negativo de um palhaço que traiu seus próprios valores por um momento fugaz de fama. 



Em primeiro lugar, os palhaços são frequentemente retratados no cinema como entidades assustadoras (não procure mais do que o mega famoso It), ambíguos e depressivos: personagens perfeitos para dramas e histórias de terror. Com o Apocalypse Clown, Kane procura inverter essa tendência, convidando-nos a observar o mundo dos palhaços com benevolência e empatia. Através de seu senso de humor bizarro e irreverente, os palhaços de Kane se tornam (anti)heróis em um mundo à beira da implosão, um mundo desconcertante onde nada é o que parece, um lugar assustador, mas catártico, no qual procurar significa também encontrar a si mesmo.

Esse é o segundo ponto importante do filme. Os protagonistas embarcam em uma jornada caótica, mas libertadora, em busca de uma forma de humanidade que eles achavam perdida para sempre. 

Entre batalhas sangrentas com estátuas humanas vingativas, crianças sedentas de sangue, festas em raves cheias de drogas alucinógenas e histórias de amor tragicômicas, o trio de palhaços protagonistas de Apocalypse Clown (Bobo, Fonzo e Pepe) se reúne para o ápice final digno de um Armagedon incandescente e lixo que estão experimentando por todo o filme, com implicações ao mesmo tempo cômicas e gnósticas.




A narrativa inventiva e a energia louca dos atores (principalmente de Natalie Palamides, com um desempenho totalmente comprometido com o personagem Funzo) cria uma comicidade reflexiva, entre o tradicional tom depressivo e ambíguo dos palhaços e o cáustico comentário social sobre as novas tecnologias.

Parece que Apocalypse Clown quer ressuscitar a famosa punch line do Coringa de Heath Ledger, no filme Batman: O Cavaleiro das Trevas (2008): “Por que está tão sério?”. Se em um piscar de olhos do Universo (a explosão solar) todos os nossos sonhos podem acabar, para quê levarmos tão à sério uma existência sem sentido? Rir, portanto, é o próprio niilismo gnóstico – a última força propulsora da liberdade, como explorada no filme de humor reflexivo Lucky (2017) – clique aqui.

Mas a grande sacada do filme é colocar o personagem do jornalista no mesmo nível de obsolescência dos palhaços: se o Tik Tok acabou com a relevância da commedia dell’arte, o click bait acabou com o jornalismo, transformando-o em puro “infotenimento”. Mas, pelo menos, ainda o jornalismo entretém, ao contrário dos velhos clowns. 

Portanto, essa é a conclusão final do silogismo niilista de Apocalypse Clown: os jornalistas são os novos palhaços do século XXI.


 

 

Ficha Técnica

 

Título: Apocalypse Clown

Diretor: George Kane

Roteiro:  Demian Fox, George Kane, Shane O’Brien

Elenco:   David Earl, Natalie Palamides, Amy De Bhrún, Fionn Foley, Ivan Kaye

Produção: Fastnet Films, BCP Asset Management

Distribuição: Charades

Ano: 2023

País: Irlanda

 

   

Postagens Relacionadas

 

Cigarros e niilismo gnóstico no filme "Lucky"

 

 

Em "O Teorema Zero" Terry Gilliam revela seu niilismo gnóstico

 

 

O Olhar Gnóstico de Kubrick

 

 

 

"Limbo": o Universo tem um plano ou é uma grande piada cósmica?

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review