domingo, setembro 30, 2012
O olhar surrealista sobre o consumismo em "Little Otik"
domingo, setembro 30, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Se nos contos de fadas
tradicionais ogros, lobos e bruxas ameaçam devorar crianças, em “Otesánek”
(Little Otik, 2000) do animador e diretor checo Jan Svankmajer vemos o inverso:
uma criança ameaça devorar seus próprios pais. Ligado ao movimento surrealista
desde a década de 1970, Svankmajer oferece um olhar carregado de humor negro
sobre uma cultura de consumo baseado na regressão infantil à compulsão e voracidade
oral onde objetos assumem dimensões fetichistas e mágicas ganhando vida
própria, e nos prometendo a redenção das frustrações. O olhar surrealista de
Svankmajer questiona: estaria nessa verdadeira cultura da devoração do outro a origem das guerras,
desigualdades e terrorismo do mundo contemporâneo?
Membro do movimento de artistas surrealistas checos desde os
anos 1970, Jan Svankmajer possui em seu currículo uma série de curtas e filmes longa
metragem onde animações em stop motion, fantoches e animações 2D interagem com
atores. Como cineasta, tenta livrar seu trabalho de tendências decorativas,
maneiristas ou “artísticas” (palavra que Svankmajer rejeita em favor da “criação”)
para buscar em suas narrativas realidades disfarçadas por trás do utilitário e
do convencional.
Dessa maneira, Svankmajer neste filme “Otesánek” (Little Otik, 2000) transforma o prosaico ato de comer associado a um conto de fadas checo
e referências explícitas a Luis Buñuel (como na sequência onde um homem pega
bebês e os envolve em jornais para serem vendidos com peixes para a ceia de
Natal) como metáforas do inconsciente por trás da cultura do consumo.
“Little Otik” é baseado em um antigo conto de fadas tcheco
sobre um casal que descobre que não pode ter filhos, mas adquire um bebê de
forma incomum: o Sr. Horák, um pacato burocrata que trabalha em uma repartição,
ao cavar a terra no fundo do jardim para arrancar uma árvore, encontra uma raiz
com forma curiosa que lembra vagamente uma criança. Horák esculpe a raiz dando
formas definitivas e apresenta à esposa que, de imediato, adota como um bebê
imaginário: secretamente lhe dá banho e o “alimenta”.
quarta-feira, setembro 26, 2012
Espiritismo e iconolatria no filme "Chico Xavier"
quarta-feira, setembro 26, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Mais do que um filme que evita tratar o tema Espiritismo para um nicho de público especializado, "Chico Xavier" de Daniel Filho apresenta um sintoma do destino da religisiosidade e do sagrado na atualidade. Ao tratar o tema de forma comercial para um grande público (sejam ateus, católicos ou mesmo espíritas) acaba reduzindo o Espiritismo ao mínimo denominador comum de toda religiosidade na indústria do entretenimento: iconolatria e um, por assim dizer, ecumenismo pós-moderno que filtra a vida de Chico Xavier através do ideário pragmático da autoajuda.
Depois da comédia de costumes, os olhos do cinema de massa do chamado período de “retomada” do cinema brasileiro volta-se para o Espiritismo e religiosidade. Depois do sucesso de “Bezerra de Menezes – Diário de um Espírito” de Glauber Filho e José Pimentel, o diretor Daniel Filho (no esteio de sucessos de bilheterias à época como “Se Eu Fosse Você”) explorou esse novo filão temático do cinema brasileiro.
A primeira coisa que chama a atenção no filme “Chico Xavier” é o apuro técnico com muitos travellings e movimentos de grua com câmera, a decupagem “clipada” e inquieta, a narrativa marcada por sucessivos flash backs (o eixo da narrativa – o “tempo presente” – é a noite da histórica participação do protagonista no Programa “Pinga Fogo” da TV Tupi em 1971 que, programado para uma hora, acabou se estendendo para três).
domingo, setembro 23, 2012
Desconstruindo o yuppie em "Depois de Horas"
domingo, setembro 23, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Depois da experiência
da direção do filme “O Rei da Comédia” com um amargo Jerry Lewis e um
esquizofrênico Robert De Niro, Martin Scorsese mergulhou de cabeça na paranoia
e ansiedade em “Depois de Horas” (After Hours, 1985). O filme tornou-se o
paradigma de um curioso subgênero da década de 1980, o “Desconstruindo o Yuppie”
onde um protagonista certinho e bem sucedido é vítima de uma sequência de
eventos em cadeia exponencialmente perigosos. Forma e conteúdo do filme
coincidem com a própria experiência estética do espectador que caracteriza o
cinema: o “deixar se perder” no fluxo da edição e montagem. Porém, “Depois de
Horas” não consegue transformar-se em “cinema acontecimento”, limitando-se a um
terapêutico “cinema recuperativo” que nos prepara a voltar para a realidade
quando são acesas as luzes do cinema.
A vivência da experiência estética de produtos ficcionais do
cinema ou da TV é totalmente distinta do assistir um telejornal, da leitura da
imprensa escrita ou do radiojornalismo. O jornalismo estaria no campo do
profano, dos discursos racionais, enquanto os produtos ficcionais estariam no
campo do sagrado (festas e envolvimento coletivo e emocional) onde os
participantes consentem em se “perder”.
Desde o primeiro cinema o perigo, a ansiedade, a paranoia, a
vertigem e a perseguição se constituíram na essência de uma mídia onde a
sensação de desorientação e quebra da ordem passou a ser o elemento definidor
da experiência estética – não é à toa que o primeiro gênero de sucesso popular
no cinema foi o filme de perseguição com o “The Great Train Robbery” de 1903.
Talvez um dos filmes que melhor exemplifique essa natureza
da experiência do cinema seja “Depois de Horas” de Martin Scorsese. Nele
acompanhamos um protagonista em uma situação tal e qual Alice de Lewis Carroll:
ele irá escorregar por um buraco urbano que o fará encontrar um submundo onde “após
a meia-noite as leis mudam”, como afirma um dos alucinados personagens que ele
encontrará em sua jornada.
segunda-feira, setembro 17, 2012
Hollywood e a engenharia dos sonhos dos ratos do MIT
segunda-feira, setembro 17, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Coincidência? A vida
imita a arte? Ou simplesmente o cinema hollywoodiano é um instrumento para
tornar a agenda tecno-científica atual politicamente aceitável e natural para a
sociedade? Uma dupla de pesquisadores do Departamento de neurociências do MIT
anunciou em artigo publicado na “Nature Neuroscience” online o sucesso na
manipulação do conteúdo de sonhos em ratos. Isso abriria a perspectiva de uma “engenharia
dos sonhos”: o controle amplo das memórias através de bloqueios, seleção ou
alteração. Isso faz lembrar uma série de filmes cujos roteiristas anteciparam
ou simplesmente replicaram essa agenda de início do século: “Quero Ser John
Malkovich”, “Vanilla Sky”, “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças”, “Ciência
dos Sonhos”, entre outros.
Foi publicado neste mês um artigo de Matthew Wilson e Daniel
Bendor na edição on line da “Nature
Neuroscience” intitulado “Biasing the Content of Hippocampal Reply During Sleep”
(leia aqui o artigo). Os autores são, respectivamente, professor do Departamento
de Neurociências e pesquisador do Instituto de Aprendizagem e Memória do MIT
(Massachusetts Institute of Technology – EUA). No artigo descrevem o sucesso na
manipulação dos conteúdos de sonhos de um rato. Segundo eles, a descoberta
reforçaria a nossa compreensão de como a memória se consolida durante o sono,
produzindo a perspectiva da criação de uma espécie de “engenharia do sonho”.
O cientista explorou a forma como o hipocampo do cérebro
codifica os eventos na memória. A equipe de Wilson e Bendor treinou um grupo de
ratos a percorrer um labirinto usando duas diferentes orientações sonoras, ao
mesmo tempo em que eram gravadas as atividades neurais. Mais tarde, quando os
ratos estavam dormindo, os pesquisadores registraram a mesma atividade neural
(os ratos sonhavam com as atividades no labirinto do dia anterior). Os mesmos
sinais sonoros de orientação foram tocados, quando os pesquisadores perceberam
algo interessante: os ratos sonhavam com a mesma seção do labirinto correspondente
ao sinal que era tocado.
Olhando para o futuro, os pesquisadores acreditam que este
exemplo simples de “engenharia sonho” poderia abrir a possibilidade de um
controle mais amplo do processamento da memória durante o sono - e até mesmo a
noção de que as memórias podem ser selecionadas ou reforçadas, bloqueadas ou
alteradas. Wilson e Bendor também apontaram para a possibilidade de se desenvolver
novas abordagens à aprendizagem e à terapia comportamental através de tipos
semelhantes de manipulação cognitiva.
domingo, setembro 16, 2012
O corpo é uma prisão em "Quero Ser John Malkovich"
domingo, setembro 16, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Muitos consideram o filme “bizarro”, “esquisito” e “sem sentido”.
Antes das viagens ao interior da mente em filmes como “Brilho Eterno de Uma
Mente Sem Lembranças” (2004) e “Sinedoque: Nova York” (2008), o roteirista Charlie Kaufman nos
oferece a estranha narrativa do filme “Quero Ser John Malkovich” (Being John
Malkovich, 1999). Em parceria com o diretor Spike Jonze, Kaufmann
conta uma parábola contemporânea sobre identidade, mediações, avatares e reencarnação
através de pessoas que querem encontrar a felicidade no corpo de outras pessoas. Como? Escorregando para o interior da cabeça de um famoso ator: John Malkovich.
Você já se sentiu
preso em seu próprio corpo, desejando ardentemente ir para outro lugar e ter um
novo nome, novo emprego e até mesmo uma nova personalidade? Você já teve
fantasias escapistas de ganhar na Mega Sena para fugir de uma rotina cinzenta,
ficar milionário e ter o amor e as coisas com que sempre sonhou?
Até onde você
estaria disposto a ir para ganhar dinheiro, ou seja, achar que seria uma boa
ideia invadir a privacidade de uma pessoa através de um telescópio instalado em seu escritório e cobrar taxas de pessoas que querem secretamente espionar
a vida de alguém famoso? Você sempre quis ser famoso não apenas por 15 minutos,
mas se tornar um tipo que usasse óculos de sol apenas para dar um passeio em
torno do quarteirão e não ser reconhecido e incomodado por pedidos de autógrafos?
Finalmente,
você já foi incomodado por pessoas que lhe fazem perguntas como estas?
Pois se você
respondeu “Sim” a algumas dessas perguntas ou se mesmo acha tais perguntas totalmente sem sentido está preparado para assistir a um filme estranho, bizarro e
nonsense chamado “Quero Ser John Malkovich”.
Um titereiro
fracassado chamado Craig (John Cusack) vive com sua esposa Lott (Cameron Diaz,
irreconhecível) e com um chipanzé vitimizado por um “trauma infantil”.
Desempregado, autoindulgente (se vê como um “artista torturado”) Craig consegue
um misterioso novo emprego que unicamente exige do candidato “dedos ágeis”. Lá
encontra uma porta escondida por trás de um arquivo que conduz a um escuro é
úmido túnel que o faz escorregar para dentro da mente do famoso ator John
Makovich, onde pode permanecer por 15 minutos vendo e experimentando sensações
por meio da mente hospedeira.
Passado o tempo limite, Craig é cuspido para uma
estrada na periferia da cidade. Impressionado com a descoberta, resolve montar
um negócio vendendo passagens para outras pessoas infelizes com suas próprias
vidas que desejem ser por, alguns instantes, outra pessoa.
sábado, setembro 08, 2012
Nos abismos metalinguísticos da TV Globo
sábado, setembro 08, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
No ônibus-estúdio do
programa “Globo Esporte” da TV Globo o jornalista Tiago Leifert comanda uma
espécie de “narrativa em abismo” em pleno CT do São Paulo F.C.: um programa
televisivo em um estúdio itinerante mostra através do monitor que compõe o cenário um evento (coletiva do técnico da
seleção brasileira de futebol Mano Menezes) programado para coincidir com o
próprio programa esportivo global. Qual é afinal a notícia: a novidade do
ônibus-estúdio estacionado no meio de um centro de treinamento ou a coletiva
que, no final, era um “evento-encenação” programado para acontecer dentro da
grade horária da emissora? Nesse abismo metalinguístico encontramos tanto o
resultado da evolução histórica das mídias quanto a constituição do próprio monopólio midiático
e político da TV Globo.
Vemos imagens de uma tomada aérea do Centro de Treinamento
do São Paulo FC e percebemos, em destaque, no centro do campo visual, o teto do
ônibus-estúdio do programa “Globo Esporte” da TV Globo. Corta para dentro deste
estúdio onde vemos o apresentador Tiago Leifert fazendo as tradicionais
introduções ao noticiário esportivo da seleção brasileira. Em segundo plano uma
tela onde vemos a imagem do repórter Mauro Naves, pronto para iniciar a cobertura
de uma coletiva à imprensa com o técnico da seleção brasileira Mano Menezes. “Está
iniciando nesse momento a coletiva do técnico da seleção...”, começa a falar o
repórter. Na verdade “está iniciando nesse momento” é um eufemismo para dizer “está
iniciando dentro do Globo Esporte”, isto é, a assessoria de imprensa da CBF
apenas esperava a introdução de Tiago Leifert para iniciar o evento.
A imagem do
apresentador do Globo Esporte tendo ao fundo uma tela de um evento logisticamente
programado para a grade horária da TV Globo produz uma estranha sensação
daquilo que os teóricos do cinema chamam de “narrativa em abismo”: vemos um
filme sendo produzindo e dentro dele outro filme também é produzido. Um curioso
efeito recursivo, reforçado pelo enquadramento de câmera que sugere uma “profundidade
de campo” que lembra o expressionismo alemão e o filme noir: quadros dentro de
quadros com a presença de janelas, portas e espelhos.
Porém, estamos falando de uma emissora de TV com controle
monopolístico onde tudo isso que descrevemos acima nada tem a ver com os profundos
significados que a profundidade de campo produz na narrativa cinematográfica - ligação
com outras dimensões, o medo e ilusões. Há uma espécie de saturação ou abismo
metalinguístico: os sistemas de comunicação midiáticos parecem funcionar como
se eles mesmos fossem o mundo e como se não houvesse nenhum mundo além deles.
sábado, setembro 01, 2012
A "zona cinza" do conservadorismo
sábado, setembro 01, 2012
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Em debate na Faculdade
de Ciências Sociais da USP sobre “A Ascensão Conservadora em São Paulo”, a
filósofa Marilena Chauí sugeriu em sua fala uma interessante conexão entre os “aparatos
neoliberais” oferecidos à classe média, o encolhimento da esfera pública e a
expansão da privada e o conservadorismo político. Talvez tenhamos aqui uma novidade: a
percepção de uma zona cinza ou desconhecida ainda não plenamente explorada nem
pela psicologia ou pelas ciências sociais: seriam possíveis os aspectos
sensoriais e cognitivos envolvidos nas diferentes "acoplagens" das pessoas com
esses “aparatos” (automóvel, computador, celulares, TV etc.) moldarem visões de
mundo e ideologias?
Na história da ciência a psicologia social surgiu como uma
tentativa de criar uma ponte entre as ciências sociais (sociologia,
antropologia e ciência política) e a psicologia. Na verdade, procurava dar
conta de uma urgência muito mais dramática: compreender os movimentos
ideológicos de massa do século XX (em particular o nazi-fascismo) baseados no
linchamento, racismo, homofobia e fanatismo coletivos. Entender o porquê do
surgimento de uma psicologia de massas que, muitas vezes, era diametralmente
oposta à individual: indivíduos aparentemente civilizados de repente podem
tornar-se violentos e regressivos em ambientes públicos e de interação
interpessoal.
Esforços como os estudos sobre a formação da personalidade
autoritária liderados por Theodor Adorno na década de 1950 e a criação da
chamada “Escala F” (a aplicação de um questionário para detectar traços
protofascistas na personalidade) tentavam compreender a dinâmica desse “encaixe”
entre o individual e o coletivo.
A fala da filósofa Marilena Chauí em um debate sobre “A
Ascensão Conservadora em São Paulo” na Faculdade de Ciências Sociais da USP no dia 28 (veja vídeo abaixo) sugeriu um novo enfoque nessa discussão: a conexão entre os “aparatos
neoliberais”, encolhimento da esfera pública e o conservadorismo da classe
média paulistana.
Chauí parte do fenômeno clássico objeto da psicologia
social: “a classe média paulistana é um mistério. Convidam você para ir a casa
deles, é bem recebido, fazem uma comida especial para você, te levam até a porta,
oferecem carona etc. Mas basta dirigir um carro, entrar numa fila ou num espaço
que deve ser compartilhado para se transformarem em bestas selvagens”.
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