Ver a si mesmo em uma réplica ou imagem sempre foi
considerado um evento misterioso e mágico. Em muitas culturas, ver o próprio
duplo pode ser um prenúncio da morte. Inspirado em livro do escritor português
José Saramago, o filme “O Homem Duplicado” (Enemy, 2013) do diretor canadense
Denis Villeneuve vai atualizar essa mitologia, trazendo-a para uma tradição de
filmes que tematizam o problema da identidade: o que você faria se visse em um
filme um ator que fosse uma réplica exata sua? Villeneuve vai explorar o
tema psicanalítico da busca da identidade através do espelho. Uma jornada
perigosa, pois nesse caminho podemos nos confrontar com os nossos desejos mais
íntimos, criando uma nova ordem: caos é a ordem que ainda não foi decifrada.
Em um
cultura atual de selfies e timelines das redes sociais repletas com
nossas fotografias fica difícil imaginarmos um tempo onde as pessoas podiam
ficar com medo das suas própria imagens.
Do espelho à
fotografia, a contemplação de uma réplica de si mesmo sempre foi considerado um
evento misterioso, como, por exemplo, todo o misticismo que cerca os espelhos
ou os primórdios da fotografia – as pessoas ficaram assustadas com a fidelidade
do resultado, só se tornando popular depois que descobriram que era possível
retocá-las. Ou seja, depois de que elas passaram para o campo da simulação.
Em todas as
culturas, ver o próprio duplo é uma experiência terrível e às vezes até mesmo o
prenúncio da própria morte.
Mas no
cinema, o tema do duplo passou a ter uma ressonância maior com a questão da
identidade, certamente porque a sala escura de projeção é a caverna platônica
moderna onde, isolados na escuridão, vemos na tela um espelho do nosso
psiquismo.
Desde o
filme The Man Who Haunted Yorself
(1970), passando por Coração Satânico
(1987), Gêmeos - Mórbida Semelhança
(1988), Quero Ser John Malkovich
(1999), O Grande Truque (2006), Moon (2009), Cisne Negro (2010), o tema do duplo foi anexado à busca da
identidade onde o protagonista mergulha numa situação de esquizofrenia e caos.
No filme O
Homem Duplicado o diretor canadense David Villeneuve (conhecido pelos seus
filmes de conflitos violentos como Incendies
e Prisioners) abandona o campo dos
conflitos violentos da vida real para entrar no terreno das perplexidades
subjetivas do sonho. Muito embora o diretor crie um estranhamento ao misturar
elementos do fantástico com uma narrativa realista que no início parece sugerir
ao espectador que estamos diante de um thriller.
O filme é
uma adaptação do livro do escritor português José Saramago O Homem Duplicado que discute as implicações filosóficas de uma
questão aparentemente prosaica: o que você faria se descobrisse, ao assistir a
um filme, que existe uma pessoa que é a sua cópia perfeita?
O Filme
O Homem duplicado inicia
epígrafe provocativa: “O Caos é a ordem que ainda não foi decifrada”, para em
seguida passarmos por duas sequências que, desconfiamos, nada tem a ver com o
tempo presente. Pode ser tanto um flash
back como um flash foward. Mas a
primeira pista para deciframos esse caos que é sugerido na epígrafe está logo
na segunda sequência, em um estilo bem kubrickiano que lembra o filme De Olhos Bem Fechados – que aliás, em
entrevistas, Villeneuve atribui uma das influências para esse filme.
Nessa sequência vemos homens
que parecem ser poderosos em uma espécie de clube fechado onde acompanham
performances eróticas de mulheres que se desnudam para performar fantasias
pervertidas como, por exemplo, uma envolvendo uma aranha e um sapato de salto
agulha... Intimidade e sexualidade são as pistas para decifrar o enigma que
surgirá à frente na narrativa.
Corta para a vida de um
pacato professor de História em uma Universidade na cidade de Toronto, Adam
Bell (Jake Gyllenhaal). Cada aspecto da sua vida é enfadonho, monótono e sem
novidades. Recém divorciado, vive com sua namorada Mary: o sexo selvagem na
intimidade e os silêncios gelados do casal indicam um relacionamento prestes a
implodir.
Tudo muda depois de assistir
a um DVD e perceber algo de estranho no fundo de uma cena: vê um figurante cujo
ator é exatamente como ele. Assustado, procura os nomes do cast nos créditos
finais do filme e faz uma pesquisa pela Internet, e descobre que o ator chama-se
Anthony Claire e que tem apenas três filmes na sua breve carreira em produções de
baixa qualidade. Adam descobre onde Anthony vive e tenta estabelecer contato,
mas só recebe reações suspeitas dele e da sua esposa grávida.
Nas suas vidas paralelas,
ambos não parecem ser profissionalmente realizados e enfrentam a meia idade com
uma insatisfação melancólica que talvez mascare uma raiva subjacente e um
desejo por sexo ou luxúria como forma de atacar o mundo ou alguém.
Igualmente os dois
personagens estão envolvidos com mulheres loiras e fisicamente parecidas,
inclusive nas dificuldades de relacionamento com seus parceiros.
Quando finalmente Adam e
Anthony se encontram, observamos os contrastes sutis físicos e emocionais: Adam
anda desengonçado, hesitante e emocionalmente é ressentido e recessivo.
Enquanto seu duplo é assertivo, imperioso e mais cruel.
O realismo fantástico de O Homem Duplicado
A visão espelhada e
complementar dos duplos sugere as clássicas oposições arquetípicas do psiquismo
humano: Yin e Yang, apolíneo e dionisíaco, superego e id. Mas esse encontro vai
produzir muito menos reflexão e mais hostilidade e competitividade dos
personagens: cada um vai tentar ir para a cama com a mulher do outro, e apenas
uma será deixada viva no final.
O Homem Duplicado cria uma
tensão que para um espectador acostumado a filmes com narrativa realista ou
verossímil poderá parecer absolutamente sem sentido. Villeneuve propositalmente
quer criar desconforto e perplexidade no espectador ao inserir elementos do
fantástico e do surrealismo na própria realidade.
Além do argumento central
proposto por Saramago de duplos que se encontram e não possuem nenhum grau de
parentesco, Villeneuve acrescenta um estranho simbolismo que irrompe sem aviso
em alguns momentos do filme: a aranha. No próprio pôster promocional do filme
vemos uma gigantesca aranha caminhando entre os arranha-céus de Toronto.
O simbolismo da aranha
Segundo o diretor a aranha
foi uma ideia que surgiu durante a adaptação do livro original: “para mim a
aranha é a perfeita imagem para traduzir algumas ideias do livro. Estava em
busca de uma besta que inspirasse um sentimento cuja principal ideia fosse a
inteligência. Então percebi que a aranha era a melhor imagem de uma besta que
alia uma forte inteligência com elegância”.
Villeneuve encontrou no
design da escultura chamada Maman de Louise Bourgeois o simbolismo perfeito
para o tema central do filme: "o medo da perda de controle diante da ameaça dos
poderes do inconsciente. É uma questão de saber o quanto temos controle sobre
nós mesmos. Para mim, o filme é uma reflexão dessa preocupação”, afirma o
diretor Denis Villeneuve (veja em “Interview: Denis Villeneuve” In: Filmcomment).
O simbolismo da aranha como
uma besta fera (o nosso inconsciente) paira sobre o filme, assim como a
apocalíptica imagem da gigantesca aranha andando sobre Toronto.
A aranha detém um simbolismo
paradoxal de simultaneamente ser considerada a grande mãe cósmica (a teia, a
tecelã do destino) e também o perigo, a ameaça como predador. Psicanaliticamente
remete a dualidade da mulher no psiquismo masculino: mãe e, por outro lado,
prostituta; a proteção da grande nutriz e o objeto do desejo. Em síntese,
teríamos a trama edipiana da culpa e do desejo.
Sexo e perversão
Esse simbolismo remete à
pista da segunda sequência kubrickiana do filme: além das suas aparências, sexo
e perversão será a única coisa em comum que une desses duplos.
Ansiedades, desconfortos
atmosferas claustrofóbicas são marcantes no filme, onde os personagens sempre
têm como cenário imensos condomínios de apartamentos, padronizados e
massificados, em estilo futurista ou Bauhaus do século passado. O clima é de
resignação e frustração, enquanto uma energia subterrânea da traição, luxúria e
perversão (claramente representados pela besta-fera aranha) aparece aqui e ali
como pontos falhos que causam desconforto. Mas ameaçam destruir toda a ordem.
A cor é um elemento
importante do filme. A tonalidade dominante amarelo-esverdeada da fotografia
adicionado com a poluição da cidade de Toronto no verão cria uma natural imagem
apocalíptica e um sentimento paranóico de pressão da cidade.
Assim como em Saramago,
Villeneuve busca representar nessa narrativa dos duplos um conflito ontológico
na existência humana entre História
(os fatos históricos sempre resultantes de processos lentos, demorados e
monótonos, assim como na vida de Adam, o professor de História) e a história (as narrativas rápidas e
superficiais do cinema de baixa qualidade onde trabalha o ator Anthony).
Nem a História, e nem a história. Tanto o livro quanto o filme
buscam aquilo que os gnósticos chamam de tertium
quid, uma terceira via, que não está na ontologia (o Ser), mas dentro de
cada um de nós, pulsando ameaçadoramente como uma aranha predadora: o desejo.
Ficha Técnica |
Título: O
Homem Duplicado (Enemy)
|
Diretor: Denis Villeneuve
|
Roteiro:
Javier Gullón baseado no livro de José Saramago
|
Elenco: Jake
Gyllehaal, Mélanie Laurent, Sarah Gadon
|
Produção: Rhombus Media, Roxbury Pictures, Micro_scope
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Distribuição:
Imagem Filmes
|
Ano:
2013
|
País:
Canadá, Espanha
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