sexta-feira, novembro 24, 2023

Determinismo quântico e existencialismo gnóstico na série 'Corpos'


Liberdade versus Determinismo foi um tema que sempre assombrou a Filosofia. Com a morte de Deus e da causalidade newtoniana por meio da Relatividade e da mecânica quântica, parecia que o livre-arbítrio tinha ganhado a discussão. Até surgir o paradoxo quântico do “Closed Timelike Curve” (CTC), linha do tempo fechada na qual se inspirou o clássico “Em Algum Lugar no Passado” (1980) - situações paradoxais nas quais partículas parecem ter surgidas do nada, revivendo o determinismo em um outro nível. A série Netflix “Corpos” (Bodies, 2023- ) eleva o paradoxo da CTC ao nível do existencialismo gnóstico da “Teodiceia”: é possível existir livre-arbítrio num mundo criado por um ser que tudo sabe? Quatro detetives em quatro períodos diferentes no tempo investigam um mesmo crime – um corpo que aparece numa mesma viela em Londres. Todos unidos em um loop tempo/espaço envolvido em uma conspiração em um ciclo fechado de 150 anos. 

Tão antiga quanto a história da Filosofia, é a discussão do tema do livre-arbítrio e o determinismo: será que somos livres? Ou nossas ações são determinadas e fatais por uma conjunção de causas tão vasta que a ignoramos, e, por isso, passamos a viver a ilusão da liberdade?

No passado era uma questão da Teodiceia: é possível existir um livre-arbítrio num mundo criado por um Deus que tudo sabe?

Já com o desenvolvimento da ciência moderna e a ideia das leis científicas inscritas no real (bastando ao cientista apenas saber “ler” essas leis) surge mais uma vez a dúvida sobre o livre-arbítrio num mundo governado agora por leis deterministas – ações que acreditamos ser de escolha consciente, na verdade seria um comportamento não-voluntário influenciado pelas leis da natureza e da sociedade.

A relatividade e a mecânica quântica pareciam ter resolvida essa aporia para o lado do livre-arbítrio. A Relatividade Geral de Einstein tinha posto o fim ao tempo e espaço absolutos newtoniano e a mecânica quântica o princípio da incerteza e da nuvem probabilística dos eventos das micropartículas. Mais ainda, a relatividade do tempo e a sobreposição quântica trouxeram o imaginário da viagem no tempo e de universos paralelos simultâneos resultantes das liberdades de escolhas. 

Mas as coisas complicam com aquilo que a Física chama de “Closed Timelike Curve” (CTC) – linha do tempo fechada lembrando muito a forma de um bambolê, criando situações paradoxais nas quais partículas parecem ter surgidas do nada, criatio ex nihilo.



Um bom exemplo desse paradoxo no cinema é o relógio no clássico Em Algum Lugar no Passado (1980): Elise teria o “primeiro” relógio em 1912, e em seguida entregaria para Richard em 1972, de modo que poderia dar-lhe de volta ao retornar no tempo para 1912. O relógio existiria sem nunca ter sido criado. 

O que é apenas o paradoxo de um pequeno objeto nesse filme clássico, na série Corpos (Bodies – 2023-) se torna o plot central, cada vez mais complicado na medida em que os oito episódios evoluem. 

Muitos já a consideram um “clássico instantâneo” – um thriller policial noir que explora um alto conceito de ficção científica: a CTC aplicada em investigações policiais sobre aparentemente um mesmo crime que está ocorrendo em quatro pontos distantes no tempo: em 2023 um cadáver anônimo é encontrado em uma rua de Londres; exatamente o mesmo corpo também é encontrado por policiais em 1890, 1941 e 2053. À medida que detetives de diferentes períodos de tempo investigam, segredos perturbadores logo surgem como se tudo estivesse interligado em um CTC.

A série criada por Paul Tomalin, adaptação do escritor de HQs britânicas, Si Spencer, faz um malabarismo com os plots ocorrendo simultaneamente, muitas vezes apresentando a tela com múltiplas divisões em cenas contíguas que parecem se repetir no tempo em épocas e personagens diferentes.

Os corpos em questão, encontrados pelos policiais, são de uma mesma pessoa, nu, sempre deitado no chão de uma viela em Londres, na mesma posição, sugerindo uma linha de tempo que está se desenrolando há 150 anos.

Claro que a mecânica quântica estará por trás do mistério, mais precisamente a descoberta de um físico gravitacional quântico que descobre um estranho comportamento de micropartículas: delas se dividirem e se distribuírem no passado, presente e futuro, sobrepondo-se e influenciando mutuamente, criando a CTC.



Em Corpos, todos os plots simultâneos parecem nada mais do que realizar algo que foi pré-determinado ao longo do loop tempo/espaço. Portanto, novamente temos a tensão entre livre-arbítrio e determinismo ressurge: será que ao longo da cadeia de eventos, haverá algo, uma decisão ou um ato espontâneo que quebre o loop?

Tanto no clássico Em Algum Lugar do Passado como na série Corpos, a questão do amor é central: lá em 1980, a criação “do nada” do relógio somente foi possível através do amor entre Elise e Richard. Em Corpos, na maneira como podemos superar a falta dele.

A Série

No primeiro é apresentado ao espectador todos os plots que comporão os intrincados oito episódios.

Começamos percorrendo o presente de 2023, onde a detetive Shahara Hasan (Amaka Okafor) interpreta uma mãe solteira muçulmana, cujo trabalho tira o tempo da família e que tem um jeito com jovens delinquentes. 

Em meio a uma manifestação de extrema-direita em que Hasan foi chamada para ajudar a manter a ordem, ela vê no meio da multidão uma criança com uma arma. Ela o persegue, apenas para ser deixar o jovem fugir ao se deparar com um corpo masculino nu, caído em uma viela e com um furo sangrando em uma das cavidades oculares. 



Pulamos depois para o meio de sirenes de ataque aéreo da Segunda Guerra Mundial. Fomos jogados de volta a 1941, onde um homem elegante - para não mencionar um judeu em uma Londres antissemita - o detetive Karl Whiteman (Jacob Fortune-Lloyd), está recebendo telefonemas misteriosos de uma mulher que lhe dá ordens, uma dos quais envolve resgatar o corpo de um homem nu encontrado na mesma viela, com uma marca estranha no pulso. 

Então, retornamos ainda mais no tempo, de volta à Londres vitoriana de 1890, onde o detetive Alfred Hillinghead (Kyle Soller), um homem de família com uma esposa e uma filha pianista, se junta a um jornalista do tabloide “Star” para investigar um assassinato (o mesmo corpo de um homem nu encontrado na mesma viela) que ninguém quer investigar. 

E finalmente, em 2053, conhecemos a detetive Iris Maplewood (Shira Haas) vivendo uma vida solitária em uma Londres sob um regime distópico totalitário (sob uma aparência politicamente correta de amor e comunhão) que ela acabou aderindo para poder contornar sua deficiência física – ela é paraplégica, porém com um sofisticado dispositivo externo espinhal em sua coluna vertebral que a permite voltar a andar. Cortesia do líder do governo chamado Elias Mannix (Stephen Graham), para que Iris se torne seu fiel cão de guarda da polícia. 

O que une todos esses fios? Um único corpo que aparece do nada, a cada vez, sempre na Long Harvest Lane em Londres, em três diferentes épocas.

A história tem tantas peças em movimento que é impossível não cometer spoilers ao tentar descrevê-las. É seguro apenas dizer para o leitor ficar de olho nos personagens feitos por Stephen Graham, que é o Demiurgo no centro de tudo. Às vezes ele é Harker (1890), outras vezes Mannix (na velhice e juventude), percorrendo todas as linhas do tempo como um fantasma, com seus vários avatares alternadamente sucessores e antecessores de si mesmo. Suas palavras, "saiba que você é amado", é a punch line das linhas de diálogo, que ecoa através dos episódios.



Embora possa soar como um clichê, a série faz um ótimo trabalho ao demonstrar como algo tão puro quanto o amor pode se transformar em ambição que consome tudo que possa ser amado. É aí que o mal começa.

Existencialismo gnóstico – Alerta de Spoilers à frente

Embora a série comece em 2023, é no ano de 2053 que temos o início do loop, ou da “Closed Timelike Curve” (CTC). Elias Mannix lidera um governo totalitário que se iniciou com um evento que se assemelhou aos atentados do 11 de setembros de 2001 em Nova York – um atentado terrorista envolvendo uma explosão nuclear arrasou grande parte de Londres. Emergindo depois uma nova Grã-Bretanha totalitária administrada por uma corporação tecnológica chamada KYAL (abreviatura em inglês do slogan “saiba que você é amado”), presidida pelo “Comandante Mannix” (cuja figura é projetada em prédios, como uma espécie de “Grande Irmão” orwelliano).

“Capela Sinistra” é o nome de um grupo terrorista que faz oposição ao regime, onde conhecemos o físico Gabriel Defoe (Tom Mothersdale), inventor do “A Garganta”, um dispositivo ainda experimental de viagem no tempo - mais precisamente, de criação de CTCs). Mannix precisa encontrar “A Garganta” para manter a CTC que deu origem a tudo – Manix precisa voltar a 1890 para retomar a linha do tempo predestinada. 

O tema central da série é o conflito entre livre-arbítrio e determinismo, numa perspectiva da Teodiceia. Mas, dessa vez, com a presença de um personagem bem gnóstico: o Demiurgo – Mannix conhece a sequência exata dos acontecimentos nesse loop de 150 anos, sempre renovada. Como a Capela Sinistra, e eventualmente os protagonistas de 1890, 1941 e 2023, poderá planejar e executar qualquer ação imprevisível, inesperada ou espontânea se parece que cada ato já foi anteriormente previsto pela CTC?



A grande lição da primeira temporada pode parecer piegas: através do amor. O ponto nevrálgico da CTC é a solidão e o desamor do Demiurgo. Ele criou seu próprio cosmos (e o mundo dentro dele) mas é solitário e não amado, e produto de todo esse desamor: através desse loop de 150 anos acompanhamos que em 1890 é pai de um filho não amado (aquele que no futuro será o seu avô. E na juventude, adotado, filho de uma mãe que o entregou a um serviço social. Cujo gatilho emocional da dor e solidão fez apertar o botão, criado pelo próprio Mannix na sua velhice, que detona a explosão nuclear em Londres.

Portanto, a única esperança do grupo opositor é fazer Elias Mannix entender que a CTC criada por ele é vazia e sem sentido – e que apenas reproduz a própria solidão do Demiurgo.

Há um existencialismo gnóstico que transpassa os oito episódios da primeira temporada. Converge para a própria visão da mortalidade/reencarnação como a essência da prisão em que se torna esse mundo, capturando as almas e obrigando-as à reencarnação (a Lei da Repetição) até que consigam “fugir” por meio da iluminação espiritual – escapar da chamada “Roda do Samsara” budista tibetana. A ilusão que esconde o fluxo contínuo do ciclo interminável de mortes, renascimentos e sofrimentos.


 

Ficha Técnica

 

Título: Corpos

Criação: Paul Tomalin

Roteiro:  Si Spencer, Paul Tomalin

Elenco: Amaka Okafor, Kyle Soller, Stephen Graham, Shira Haas, Jacob Fortune-Lloyd, Tom Mothersdale

Produção: Moonage Pictures

Distribuição: Netflix

Ano: 2023-

País: Reino Unido

 

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