Poucas produções fílmicas ou audiovisuais escapam da tradicional representação do pós-morte, como uma espécie de julgamento que poderá nos levar para o Céu ou Inferno, entre a punição e a gratificação. O curta de animação “Coda” (2013), de Alan Holly, nos oferece um olhar entre o esotérico e o gnóstico: embriagado após sair de uma balada, acompanhamos o protagonista distraído ser mortalmente atropelado para depois tentar fazer um acordo com a Morte, na sua tradicional representação sombria do Ceifador. Ele quer mais tempo, mas a Morte é impaciente. Para o quê? A resposta está entre o Budismo e o Gnosticismo, muito próximo ao ciclo vicioso da vida-morte-reencarnação que nos prende a esse mundo.
Passamos 1/3 das nossas vidas dormindo e sonhando, enquanto a morte nos rodeia a cada respiração, não importa o quão vigilantes sejamos – o destino é a nossa constante companhia, mas tentamos não pensar que num simples piscar de olhos a existência como a conhecemos pode desaparecer até o nada, levando-nos junto.
Por isso, é incrível como o sono e a morte sempre foram relegados na cultura ou a um segundo plano, ou simplesmente negados ou neutralizados. Sono e sonhos são racionalizados através da ciência (a “Ciência do Sono”) ou pela Psicanálise popular ou de autoajuda que promete decodificar os simbolismos dos sonhos. Enquanto a morte é ocultada por uma cultura da positividade da indústria da cosmética, da saúde e da eterna juventude cujas imagens promocionais celebrizam “idosos que nem parecem velhos”.
Quando a morte vira tema na cinematografia, ela é restrita aos cânones da moralidade religiosa, dentro da polaridade culpa/gratificação: ou encontra a punição pelos pecados ou a premiação pela boa índole e legado terrestre.
Poucas são as produções audiovisuais que escapam dessa polarização, buscando um viés mais esotérico, ou, por que não, gnóstico – o pós-morte não como a busca de punição ou redenção, mas de iluminação como caminho fuga da matrix terrestre.
O curta de animação Coda (2013, indicado ao Oscar de Melhor Curta de Animação em 2015) é um exemplo desse olhar alternativo para a morte. Dirigido por Alan Holly e produzido pelo estúdio irlandês And Maps And Plans, Coda nos mostra a tradicional representação icônica da morte como o Ceifador: uma figura esguia, envolta num manto negro aguardando o espírito se desfazer do corpo para capturá-lo e conduzi-lo, mesmo que seja a força. Para onde? Céu? Inferno? Algum Tribunal? Ou algum limbo entre a vida e a morte no qual o espírito pagará suas dívidas? Nenhuma dessas opções. Alan Holly e o co-roteirista Rory Byrne propõem uma abordagem mais esotérica, simultaneamente doce, triste e melancólica: o Ceifador quer apenas nos reconduzir de volta à esfera terrestre, nos preparando para a reencarnação.
O Curta
Coda acompanha alguém que está saindo de uma boate, bêbado e com um copo na mão. Distraído, atravessa a rua procurando em seus bolsos alguns trocados para pagar alguma coisa para comer no caminho de volta para casa. Até ser acertado em cheio por um carro, e jogado para longe até cair já sem vida.
Pessoas se reúnem em torno dele, enquanto seu espírito levanta e começa a vaguear pelas ruas às cegas, ainda sentindo os efeitos da embriagues. Sem saber que a Morte, uma figura alta, esguia e ameaçadora, já está no seu encalço.
Cansado de vagar sem destino, o protagonista entra num parque e senta-se num banco para descansar, quando a Morte também se senta ao seu lado. Assustado, as expectativas do protagonista são as piores possíveis. Ele implora por mais tempo e tenta negociar com aquela figura sombria e ameaçadora que o encara.
Com um estilo de animação minimalista, a música e até mesmo as vozes dos personagens passam uma sensação de tranquilidade ao longo dos 9 minutos de narrativa. A sensação inicial para o espectador é de felicidade e aceitação. Mas há uma melancolia e fatalismo sutis a partir do momento em que o espírito desencarnado do protagonista transforma-se em um bebê e o sombrio Ceifador em uma mãe que abraça amorosamente sua cria.
É o início de um aprendizado no qual o protagonista aceitará o seu destino: retornar à vida como um novo humano reencarnado. Ou não! O final ambíguo revela uma oposição entre as intenções do espírito convertido em bebê (ele sempre pede mais tempo para “relembrar” de sua existência terrena – por quê não conversava com seu avô, por exemplo), enquanto a Morte, impaciente, sempre fala “agora”, como se quisesse levá-lo definitivamente para a inexistência.
Numa leitura budista, o protagonista está experimentando o seu “Bardo”: estados de existência dentro do fluxo contínuo da vida, da morte e da reencarnação. Palavra tibetana que quer dizer “transição” ou “intermediário”. A apresentação mais simples no livro budista tibetano Bardo Thodói (“Libertação do Estado Intermediário”), conhecido também como “Livro Tibetano dos Mortos”, descreve quatro bardos: o da vida, o do momento da morte, o bardo da vacuidade (a consciência fundamental da luz do próprio espírito) e o do renascimento.
Mas para o Gnosticismo, o bardo da vacuidade é o mais importante – após a morte vivemos as ilusões cármicas: o conteúdo da mente é projetado, tornando-se visível como num sonho.
Criamos uma tela mental com imagens em fluxo dentro do qual a vida parece continuar em outra dimensão, e nos perdemos na confusão entre a realidade e as alucinações. Sem lucidez, o “sonhador” não consegue se abrir à realidade dos mundos para além dos sonhos e nem para a própria luz espiritual. Perde-se num padrão repetitivo, para renascer e continuar o mesmo padrão sem autoconsciência ou auto distanciamento – a “gnosis”.
“Coda” (traduzido do italiano para o português significa “cauda”) é a seção em que termina uma música, na qual o compositor utiliza ideias musicais já apresentadas durante a composição. Na animação, é a representação do senso comum de que no momento transitório entre a vida e a morte é como se assistíssemos a uma espécie de “vídeo-clip” com os momentos mais importantes da nossa vida terrena.
Mas do ponto de vista gnóstico, seria uma tela mental (ou um “air bag” emocional criado pela nossa mente) na qual imergimos inconsciente no fluxo de imagens, sem conseguir o auto distanciamento necessário para escaparmos da ilusão. Até sermos capturados pelo “Ceifador” ou a “Morte” personificada pelo ícone tradicional na animação. Na mitologia gnóstico, um Arconte (“Archon”), entidade “demoníaca” (na verdade, seres criados juntamente com o mundo material subordinada a divindade chamada Demiurgo) que bloqueia o caminho da elevação espiritual após a morte através dos diversos “céus”, mantendo-nos prisioneiros ao mundo material.
Ou mais precisamente, aos Bardos que compõem os sucessivos estados do fluxo de vida-morte-reencarnação. Submetido ao esquecimento: o protagonista tenta lembrar-se, recordar, diante da Morte impaciente que quer levá-lo o mais rapidamente possível.
Ficha Técnica |
Título: Coda (Curta de animação) |
Diretor: Alan Holly |
Roteiro: Alan Holly, Rory Byrne |
Elenco: Joseph Dermody, Orla Fitzgerald, Brian Glesson |
Produção: And Maps And Plans |
Distribuição: The Criterion Channel (digital) |
Ano: 2013 |
País: Irlanda |