quinta-feira, setembro 15, 2022

'O Preço do Amanhã': a imortalidade de poucos implica na mortalidade de muitos


Sempre ouvimos falar que Tempo é dinheiro. Com a financeirização do capital e a crescente utilização do dinheiro eletrônico e digital no lugar do papel-moeda, esse provérbio torna-se cada vez mais metafórico: não se trata mais tanto de dinheiro, mas da logística do Tempo – quanto mais rápido, maior oportunidade de lucros no cassino global em que se transformou o Capitalismo. Mas ainda temos que manipular signos do dinheiro (títulos, ações etc.). Mas, e se o próprio Tempo em si virar uma moeda acumulável e estocável? Esse é o intrigante argumento de “O Preço do Amanhã” (In Time, 2011), num futuro em que a imortalidade de poucos implica na mortalidade de muitos: uma elite consegue estocar séculos de Tempo, tornando-se virtualmente imortal, enquanto a maioria corre da morte (contada retroativamente num relógio subcutâneo), lutando para ganhar Tempo, seja através do salário, doações ou empréstimos. Nova forma de Capitalismo em que o Tempo vira moeda de especulação, reprodução da desigualdade e controle populacional.

Tempo é dinheiro. Tudo sempre foi uma questão de Tempo. O Universo tende à entropia. É a segunda lei da Termodinâmica: todos os sistemas tendem a um processo irreversível de dissolução de energia até chegar à desordem e a morte. É a seta do Tempo. 

Por isso, todos os processos econômicos foram uma questão de controle do Tempo através do domínio da logística e velocidade. Da logística das grandes navegações do século XVI que buscavam a acumulação primitiva do capital (saquear das riquezas dos povos colonizados) à velocidade da linha de montagem do taylorismo industrial da guerra de preços do capitalismo concorrencial, tudo sempre foi uma questão da maestria da manipulação do tempo.

Eram ainda eras da velocidade da acumulação de valor, capital e riqueza numa economia ainda baseada na produção de bens materiais, tangíveis. Com a globalização e a financeirização do capital, descobriu-se que o domínio do Tempo poderia se desvincular desse lastro físico: acumular dinheiro pelo dinheiro, especulando títulos, papéis e outras representações do dinheiro transformando o capitalismo num cassino financeiro global. As redes telemáticas conectando as bolsas do planeta em tempo real possibilitaram isso. 

Tudo é uma questão de Tempo. Por exemplo, no filme Os Imorais (The Grifters, 1990) há uma explicação didática de como a transferência rápida de informações entre o fechamento da Bolsa de Tóquio e a abertura da Bolsa de Nova York poderia render fortunas: receber informações de Tóquio antes da Bolsa americana abrir, com uma vantagem de sete segundos, significaria ganhos milionários. 



Porém, ainda o capitalismo é prisioneiro da máxima de que tempo é dinheiro: embora sem mais lastro físico, o Tempo ainda precisa de uma representação por meio de títulos, ações, fundos de investimentos, pregões das bolsas de valores etc. Mas... e se o próximo passo do Capitalismo for desvincular definitivamente o Tempo do dinheiro? Transformar o Tempo, em si mesmo, como um bem não tangível que possa ser acumulado em gadgets tecnológicos guardados em cofres.

Esse possível último passo distópico do Capitalismo é o tema do filme O Preço do Amanhã (In Time, 2011), dirigido e escrito por Andrew Niccol, um cineasta que costuma trazer às telonas discussões gnósticas sobre a natureza da realidade e críticas a sistemas tecnológicos de poder que ocultam a desigualdade e manipulação política e social – Gattaca (1997), Show de Truman (1998), S1mOne (2002) e O Senhor das Armas (2005).

A premissa é intrigante na qual, mais uma vez, acompanhamos pessoas cujas vidas estão dependentes e prisioneiras de um sistema tecnológico totalitário. Neste caso, protagonistas que podem comprar, vender, jogar ou especular os anos restantes das suas vidas.



Nesse futuro ou realidade alternativa, os cidadãos têm um relógio digital Day-Glo subcutâneo em seus antebraços, marcando anos, meses, dias e horas restantes de vida, em contagem regressiva ou necro-regressiva – como uma ampulheta que mostra o quão perto da morte você está. Ao segurar as mãos e fazer uma interface com os outros, podemos fazer download ou upload de tempo. O problema é que essa riqueza é distribuída de forma extremamente desigual: os mais ricos alcançaram uma virtual imortalidade, pelos séculos de tempo acumulados em seus dispositivos de estocagem – a imortalidade de poucos implica na morte de muitos.

Para a maioria, a única forma de se manter vivo é adquirindo tempo sob a forma de salário, doações, empréstimo ou simplesmente roubando. Tudo é pago com o tempo, que é debitado diretamente do seu antebraço por meio de interfaces por aproximação.

O sistema é darwinista-social: há uma política inflacionária para propositalmente matar as pessoas como política de controle populacional. E a divisão do território em uma sucessão de fusos horários (para ultrapassá-los deve-se pagar pedágio), evitando que a patuleia se aproxime do bairro da elite chamado New Greenwich.

Em O Preço do Amanhã, o Tempo não é mais dinheiro. Tempo é a riqueza em si mesma.

O Filme

Justin Timberlake estrela como Will Salas, um cidadão que inadvertidamente se verá fugindo da lei para, então, decidir destruir o sistema por dentro. 

Neste mundo, a engenharia genética foi usada para desligar o relógio biológico de todos aos 25 anos. Nesse ponto, eles têm mais um ano de vida para poder trabalhar ou fazer negócios por mais tempo – ou entrar numa facção de crime organizado que cobra tempo como moeda de proteção. O limite de 25 anos teve o curioso efeito de deixar todos mais ou menos da mesma idade, o que explica a jovem e sexy Rachel Salas (Olivia Wilde) como mãe de Will.



Um dia, Will tem uma conversa com um homem taciturno chamado Henry Hamilton (Matt Bomer), que explica que tem 100 anos e mais um século no banco. Ele está cansado de viver. A conversa deles se arrasta em profundidades filosóficas, até que ambos adormecem. Will acorda com um século extra em seu relógio e olha pela janela para ver Henry se preparando para pular de uma ponte. Ele corre para detê-lo, mas é tarde demais. Will é pego por uma câmera de segurança, tornando-o suspeito da morte do homem.

A trama vai entrelaçar Sylvia Weis (Amanda Seyfried), filha do homem mais rico do mundo, Philippe Weis (Vincent Kartheiser), que tem séculos incontáveis ​​em seu relógio no antebraço e mais estocado em seu cofre – ele é uma espécie de agiota do Tempo, com lojas de empréstimos em todos os fusos horários da cidade. Weis é essencialmente imortal.

Nesse ínterim, Will Salas trama um ataque terrorista para implodir o sistema por dentro, acompanhado de Sylvia. Enfadada pela sua vida imortal e sem riscos, ajudará Salas, formando uma dupla ao estilo Bonnie & Clyde – perseguido por um implacável “Agente do Tempo” (Cilian Murphy): um chefe policial cuja missão é manter a integridade do sistema, mantendo a distribuição desigual da riqueza temporal.

Além da distinção temporal entre as classes sociais (quem tem mais e menos tempo), há uma distinção mais visível: aqueles que têm menos tempo têm mais pressa – estão sempre correndo, ansiosos, apressados, gestos e movimentos rápidos. Afinal, lutam por mais tempo e ficar parado significa a morte.



Por isso O Preço do Amanhã parece derivar do campo da simples distopia para a hipo-utopia: o futuro nada mais é do que uma projeção hiperbólica das mazelas já existentes no presente.

Questão de Tempo

Na atualidade, a velocidade (a tentativa de dominar o Tempo) já é um fator de sobrevivência – o compartilhamento desigual da riqueza, força os mais pobres a serem “velozes” (com o reforço da ideologia de que a velocidade é moralmente boa e tudo que é lento é mau).

Por exemplo, com a crise das formas estabilizadas das relações de trabalho regidas por direitos trabalhistas passa a tomar lugar as modalidades flexíveis de trabalho desregulamentadas: atividades comissionadas, remunerações por resultados por projetos de curto prazo, ganhos por produtividade etc. O trabalho não é mais remunerado pela qualidade do produto, mas agora determinado pelo tempo do alcance de resultados por períodos curtos. Da remuneração do motoqueiro pela maior quantidade de entregas no menor tempo ao corretor de títulos e ações cuja diferença de segundos numa decisão pode ser a diferença entre a lucratividade e o prejuízo, a velocidade é o fator de sobrevivência.

Nosso salário não é baixo. A questão é de tempo: levamos 30 dias para receber aquele valor. Por isso a sobrevivência depende do domínio da velocidade. Dinheiro não é valor nominal, é um valor probabilístico dado pela circulação veloz. A logística da velocidade é o verdadeiro poder nas sociedades em que vivemos. Quanto mais lentos somos (em transporte e economicamente) menos poderosos na hierarquia.



Em O Preço do Amanhã, um subalterno poderá até eventualmente ficar rica, conseguir um século e ficar milionário – dois séculos, já será bilionário.

A diferença da classe dominante no bairro New Greenwich é que ela, por assim dizer, detém os meios de produção do Tempo: o Tempo Real. Assim como na atualidade, em que a elite financeira consegue informações em tempo real dos mercados conectados on line: para essa elite, tantos juros como a velocidades das decisões de compra e venda é uma questão de tempo: juros tem a ver com a relação risco/tempo e atualmente grande parte das negociações no mercado financeiro estão nas mãos de sistemas de algoritmos de alta frequência - (Negociações de Alta Frequência – NAF) emitem automaticamente ordens de compras e vendas de ações em frações de segundos. Exploram as pequenas oscilações de um ou vários ativos, às vezes em milisegundos.  O computador executa e toma decisões de uma maneira mais rápida do que uma pessoa faria.   

Porém, a mais maquiavélica estratégia no filme é o de permitir que as pessoas vejam mutuamente seus antebraços (a não ser que você o cubra): nesse mundo equivaleria no mundo atual a você sair pela rua mostrando ostensivamente um grosso rolo de dinheiro. Alguns críticos condenam como um erro de verossimilhança no roteiro de Andrew Niccol. Porém, é algo mais ardiloso: é a combinação entre Capitalismo, necropolítica e controle populacional. Essa transparência pública do tempo que cada um tem apenas aumenta o roubo, violência e, principalmente, assassinatos.

Lembre-se da moral de New Greenwich: a imortalidade de poucos implica na mortalidade de muitos. Isso não lembra alguma coisa na qual já estamos vivendo? 


  

 

Ficha Técnica

 

Título: O Preço do Amanhã

Diretor: Andrew Niccol

Roteiro: Andrew Niccol

Elenco:  Justin Timberlake, Amanda Seyfried, Vincent Kartheiser, Cillian Murphy, Olivia Wilde 

Produção: New Regency Productions, Strike Entertainment

Distribuição: Amazon Prime Video

Ano: 2011

País: EUA

 

 

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