“State of Consciousness” (2022) é uma curiosa produção B italiana, uma espécie de mistura de “Amnésia” de Christopher Nolan e “Westworld”. Um homem se vê injustamente condenado por assassinato. Para escapar da pena de morte, aceita ser diagnosticado como “esquizofrênico paranoico” e é enviado para um manicômio judiciário. Acorda 18 meses depois sem se lembrar de nada, mas pronto para ser reintegrado à sociedade. Mas algo está errado quando se vê prisioneiro num pesadelo PsicoGnóstico. “State of Consciousness” retorna ao tema da “Técnica Ludovico” do clássico “Laranja Mecânica”. Porém, com uma abordagem diferente que representa o atual zeitgeist neurocientífico que domina as abordagens cognitivas humanas no século XXI.
Um dos pilares teóricos desse blog é a tese do historiador francês Marc Ferro do seu livro clássico “Cinema e História”: todo filme ou produção audiovisual são importantes fontes primárias para um historiador – principalmente as obras ficcionais. São repositórios da sensibilidade ou do imaginário do zeitgeist de uma determinada época.
"O imaginário é tanto história quanto História, mas o cinema, especialmente o cinema de ficção, abre um excelente caminho em direção aos campos da história psicossocial nunca atingidos pela análise dos documentos" (FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.12).
É a primeira coisa que vem à mente desse humilde blogueiro ao assistir ao filme State of Consciousness(2022), um thriller psicológico que poderíamos resumi-lo da seguinte maneira: é uma fusão em estilo de filme B de ideias como as do filme Amnésia de Nolan e a série Westworld. E tudo misturado com a atmosfera noir de um filme como Ilha do Medo – polícia, instituições psiquiátricas judiciais e obscuros experimentos sobre a mente humana.
O curioso do argumento de State of Consciousness é que dá uma nova versão ao tema do filme clássico de Kubrick Laranja Mecânica, adaptação do livro de Anthony Burgess – a “Técnica Ludovico”, experimento psicológico behaviorista de vanguarda para o Estado conseguir esvaziar as prisões e cortar gastos públicos: submeter presidiários “maus” a uma violenta técnica de condicionamento comportamental e fisiológico para torná-los “bons”. E reintegrá-los à sociedade, mesmo que a consciência ainda permaneça “má”.
Lá em 1971, Kubrick reforçou as tintas na descrição da Técnica Ludovico. O tema do escritor Burgess já era uma extrapolação de obras como “1984” de Orwell ou uma distopia como “Admirável Mundo Novo” de Adous Huxley. As técnicas behavioristas de condicionamento e manipulação como uma amostra de até onde o Estado totalitário pode chegar para subjugar o indivíduo e a liberdade.
Digamos que Laranja Mecânica foi o filme que melhor representou o imaginário ou a sensibilidade do espírito da época naquele momento.
Mais de 50 anos depois, esse tema tornou-se datado. As formas de manipulação e controle tornaram-se mais sutis sob a fachada da iniciativa privada das Big Techs e Big Pharma. A ideia de um Estado totalitário ao estilo Big Brother ficou para trás com a ideologia neoliberal do Estado Mínimo – o controle e engenharia social foi capilarizado através da iniciativa privada.
Daí a sensibilidade gnóstica de State of Consciousness: a psicologia behaviorista pavloviana ou skinneriana do passado foi substituída pelas neurociências – dessa vez, o corte de custos do sistema prisional não passa mais por técnicas de condicionamento, mas na modelagem neurocientífica da percepção daquilo que entendemos como realidade.
Por que não confinar o indivíduo “mau” numa realidade paralela “boa” com a ajuda do perfeito mapeamento das sinapses neuronais? Por que não criar uma realidade paralela delirante onde ilusão e realidade se misturam de uma forma em que as fronteiras sejam definitivamente suspensas?
Há filmes melhores que State of Consciousness sobre pessoas mentalmente doentes confrontadas com uma variedade de cenários alucinatórios, possivelmente reais, dos quais o protagonista está determinado a escapar. Porém, é um filme exemplar sobre como cada época muda a sensibilidade em relação a um mesmo tema.
No século XXI, o tema de Burgess/Kubrick é reconfigurado como um thriller PsicoGnóstico – filmes gnósticos nos quais vemos o protagonista como prisioneiro, mas dessa vez é uma prisão interior, psíquica ou onírica. Filmes como Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, A Passagem e Vanilla Sky são exemplos clássicos de personagens que sem saberem estão presos nas próprias memórias da mente, em um limbo entre a vida e a morte ou em “sonhos lúcidos” artificialmente produzidos por alguma corporação.
O Filme
Stephen (Emile Hirsch) é um mecânico de automóveis e ex-militar com histórico de stress pós-traumático, proprietário de um pequeno posto de gasolina em algum lugar perdido no Texas. Conhecemos sua namorada Alicia (Tatjana Nardone), e os observamos na cama na cena de abertura (uma cena brega de sexo ao som de um disco clichê e uma coreografia tediosa).
Testemunhamos o incidente que dará início a tudo: a descoberta de um corpo no porta-malas de um carro no qual Stephen está pronto para começar a trabalhar, bem como o comportamento surpreendente e imediatamente suspeito dos policiais que se recusam a acreditar nele ou até mesmo investigam rudimentarmente suas declarações.
De qualquer forma, todas as evidências voltam-se contra ele: suas impressões digitais estão por todo veículo.
Sua advogada sugere usar em sua defesa o antigo laudo psiquiátrico de esquizofrenia paranoica, contra sua vontade. Mas, no final, é a única saída para Stephen: eles estão no estado do Texas e ele certamente será condenado à morte.
Stephen é ordenado a se submeter a tratamento psiquiátrico sob os cuidados de uma doutora Fielder (Kesia Elwin) cuja aparência é estranhamente familiar para ele.
Dra. Fielder o apresenta ao resto dos pacientes e outros médicos. Stephen se sente muito bem-vindo aqui até que algumas enfermeiras o seguram e injetem uma ameaçadora seringa. Quando Stephen acorda do sono, surpreendentemente, 18 meses se passaram e ele está pronto para ir para casa. Ele não se lembra de nada e a única coisa que vê são telas de pintura que ele supostamente pintou nesse tempo – a questão é que jamais pintou ou sequer desenhou algo artisticamente válido na sua vida.
Ele se encontra com Alicia, que está muito feliz em vê-lo. Stephen reabre o posto de gasolina, e uma gangue de motociclistas liderada por Lazlo (Robin Mugnaini) passa por ali. Inexplicavelmente começam a socar Stephen, pedindo uma enorme quantia de dinheiro. O líder Lazlo pergunta várias vezes que Stephen roubou seu dinheiro e ele precisa devolvê-lo. No entanto, Stephe não faz menor ideia de qual dinheiro eles estão falando. Os membros da gangue destroem toda a loja de conveniência do posto.
Mais tarde, voltando à consciência, Stephen se vê deitado dentro de casa. Ele toma a pílula Dr. Fielder deu e leva Alicia à loja. Surpreendentemente, ele descobre que o local está limpo, e não há sinal de qualquer luta e tudo está em seu devido lugar.
A partir desse ponto, Stephen vai viver várias cenas que serão reveladas como construções psicóticas, sempre após tomar as misteriosas pílulas da Dra. Fielder.
State of Consciousness é uma sucessão de confrontos violentos e apagões de Stephen, com quebras constantes da realidade linear. Stephen, afinal, matou um homem? O que uma gangue de motoqueiros tem a ver com qualquer coisa?
Somente uma coisa o protagonista tem certeza: precisa lembrar do que ocorreu nos 18 meses que ficou preso naquela instituição psiquiátrica judiciária.
E o ponto de viragem é lembrança de como conseguir escapar de uma sala de cirurgias do hospital e acabar chegando a uma sala em que estão monitores com vídeos de inúmeras passagens da sua vida.
É quando Stephen descobre por que foi tão facilmente fechado o acordo com a Justiça para enquadrá-lo como esquizofrênico paranoico: ele virou cobaia de experimento neurocientífico de vanguarda: transformá-lo em uma pessoa “boa” para rapidamente voltar ao convívio social – e esvaziar prisões e reduzir custos públicos.
Mas as mesmas questões éticas e morais de Laranja Mecânica estão presentes nesse filme: Stephen não ficou “bom”: ele apenas foi colocado num estado semi-alucinatório.
Porém, como em todo filme PsicoGnóstico, a prisão alucinatório interior é assaltada pelo inconsciente que acabará gerando o estado paranoico de desconfiança – alguém que não o ama quer mantê-lo prisioneiro numa realidade onírica de sonhos e pesadelos.
Ficha Técnica |
Título: State of Consciousness |
Diretor: Marcus Stokes |
Roteiro: Guillaume Tunsini, Dikran Ornekian, Rylend Grant |
Elenco: Emile Hirsch, Gaia Scodellaro, Tatjana Nardone, Kesia Elwin |
Produção: Paradox Studios, Iervolino & Lady Bacardi Entertainment |
Distribuição: Lionsgate Films |
Ano: 2022 |
País: Itália |