As narrativas CosmoGnósticas (protagonistas que se encontram prisioneiros em realidades artificialmente construídas ou acidentalmente criadas) estão deixando as telonas para ocupar as séries de TV. Um exemplo dessa tendência é “Origem” (From, 2022-), um candidato a pelo menos se equiparar a “Lost”, a série Cosmognóstica mais bem-sucedida – aplicando algumas fórmulas de “Lost”, “Origem” dá continuidade ao drama gnóstico de protagonistas presos em mundos que funcionam como microcosmos da condição humana. Um xerife caminhando por uma rua e tocando um sino que carrega em uma das mãos, avisando a todos para entrar nas suas casas antes de anoitecer, é a imagem indelével que abre a série – os mistérios de uma cidade em ruínas, aparentemente fora do tempo e espaço.
O cinema mainstreaming trouxe para as telonas, no final do século XX, o sabor dos filmes CosmoGnósticos: protagonistas que se encontram prisioneiros em realidades artificialmente ou acidentalmente construídas – pluralidade de universos, realidades simuladas, multiversos etc. Filmes que pareciam se inspirar na cosmologia Basilidiana (Basilides -117-138 DC - Filósofo gnóstico de Alexandria, possivelmente originário de Antioquia. Cuja cosmogonia previa trezentos e sessenta e cinco céus, um dos quais seria o nosso mundo comandado pelo Demiurgo - Yahweh, Jeová ou Javé).
Cidade das Sombras, Show de Truman, O Décimo Terceiro Andar e Matrix foram os filmes mais icônicos dessa espécie de guinada metafísica feita por Hollywood. Que na virada para o século XXI, a começar com Vanilla Sky(2001), o filme gnóstico expandir para outras categorias: PsicoGnóstico, CronoGnóstico, TecnoGnóstico e AstroGnóstico – sobre essas categorias, clique aqui.
A partir da série de sucesso Lost (2004-2010), a imaginação CosmoGnóstica começou a migrar das telonas do cinema para o audiovisual das séries de TV. Under The Dome, Colony, Bem-vindos ao Éden, I-Land etc. dão continuidade ao drama gnóstico de protagonistas presos em mundos que funcionam como microcosmos da condição humana nesse cosmos material.
Mas Lost, o thriller de uma ilha criada por JJ Abrams, continua sendo um gigante bem-sucedido que projeta sua sombra sobre todas as produções anteriores, aparentemente insuperável. Pelo menos até aqui.
O próximo candidato a pelo menos igualar o seu sucesso é a série criada por John Griffin e Javier Grillo-Marxuach é a série MGM+ Origem (From, 2022-, disponível na Globoplay). A imagem incongruente de um xerife caminhando por uma rua e tocando um sino que carrega em uma das mãos, avisando a todos para entrar nas suas casas antes de anoitecer, é a marca indelével que abre o primeiro episódio da série – apontando para um drama sobrenatural sobre criaturas ameaçadoras que vagam pela noite. E se deixar uma janela aberta, eles entram para provocar uma carnificina.
Podemos imaginar que assistimos a mais uma série sobre zumbis como a inacabável saga de Walking Dead. Mas tudo vira, ao acompanharmos uma família na estrada, guiando seu trailer, sem saber que vão acabar no interior das fronteiras inescapáveis de uma pequena cidade em ruínas.
Essa é a aposta da série Origem: uma combinação de alguns argumentos da série Lost com o imaginário dos zumbis – na verdade, seres com aparência humana e semelhantes a demônios que sussurram e rastejam da floresta quando o sol se põe. E a única proteção contra eles (além de trancar portas e janelas) são misteriosos talismãs de pedra pendurados em todas as portas. Tudo isso, com uma pitada do imaginário do Mal no universo dos vampiros: o Mal só pode entrar se for expressamente convidado – por isso sussurram, jogando e tentando seduzir as vítimas porque eles parecem conhecer os desejos e falhas de caráter de suas vítimas.
Origem pode não ter a misteriosa “Iniciativa Dharma”, enigmática organização onipresente na ilha de Lost. Mas a série faz aquilo que esperamos no argumento CosmoGnóstico: transformar o universo ficcional num microcosmo das mazelas da sociedade humana. Numa visão crítica de que a sociedade em que vivemos possa ser um constructo tão artificial quanto aquele mundo no qual os protagonistas estão prisioneiros.
Assim como na série de Abrams, Origem não é apenas sobre um lugar - é também sobre as pessoas e a bagagem existencial que elas trouxeram para aquele lugar. Flashbacks ocasionais revelam como alguns deles vieram à cidade. É quando todos os esqueletos começam a sair dos seus armários, muitas vezes causando mais problemas do que os demônios da floresta.
É quando a pequena cidade em ruínas começa a reproduzir as mesmas questões socio-políticas do mundo real que eles deixaram. Daí, o nome da série “Origem”.
A Série
Origem abre em uma pequena cidade sem nome que parece comum o suficiente à primeira vista. Em ruínas, parece aqueles vilarejos da série clássica Além da Imaginação, parados nos anos 1950.
À medida que a noite cai, os pedestres correm para casa passando por edifícios desbotados e pátios cobertos de vegetação, cumprimentando o xerife Boyd (Harold Perrineau) enquanto ele anda pelas ruas tocando seu sino.
Mas torna-se óbvio que algo está muito errado quando, antes mesmo dos créditos rolarem no primeiro episódio, uma garotinha e sua mãe são atacadas por um monstro que entra pela janela de seu quarto. A extensão total da carnificina não será aparente até a manhã seguinte, quando o pai enlutado chegar em casa para ver os corpos de sua família rasgados e escavados de seus órgãos, muito sangue nas paredes chegando quase até o teto. Origem não economiza quando se trata de sangue.
Enquanto isso, a família Matthews — mãe Tabitha (Catalina Sandino Moreno), pai Jim (Eion Bailey), filha adolescente Jessica (Hannah Cheramy) e filho Ethan (Simon Webster) — dirige seu trailer,enquanto percebemos as tensões conjugais e entre irmãos que afloram. O propósito da viagem parece ser a de algum tipo de reconciliação conjugal.
Acabam parando naquela pequena cidade depois de se perderem durante uma viagem. Eles descobrem que, não importa o quão cuidadosamente sigam as instruções de Boyd para tentar voltar à rodovia, a estrada só os faz andar em círculos, sempre de volta à cidade novamente, num inexplicável loop.
É a mesma experiência que ele e todos os outros na cidade tiveram. Todos que tiveram o azar de cair naquele lugar que parece fora do tempo e do espaço. Mais tarde, veremos que todos vieram dos pontos mais diferentes e distantes dos EUA. Mas, inexplicavelmente, pararam alí.
Quem ou o que são aqueles monstros, de onde eles vieram, e se aquelas pessoas poderão encontrar uma maneira de sair novamente, são os mistérios que impulsionam a série.
Como seu precursor espiritual Lost — com quem compartilha uma estrela (Perrineau), dois produtores executivos (Jack Bender e Jeff Pinkner) e um gosto por títulos de uma sílaba difíceis de usar no Google — Origem promete ser uma longa série. Cada nova resposta parece produzir apenas mais perguntas, as respostas eventuais para as quais certamente produzirão mais perguntas ainda.
Por exemplo, um flashback do quarto episódio conta a história de fundo sangrenta do primeiro e mais velho residente da cidade, o vagamente perturbado Victor (Scott McCord), personagem entre o enigmático e o esclarecedor – ele será aquele que trará mais questões e enigmas, dando a deixa para aproxima temporada.
Microcosmo
A primeira evidência de um microcosmo CosmoGnóstico é o impulso inicial de adaptação dos prisioneiros daquela cidadezinha: comandados pelos representantes de duas instituições de poder, o padre Khatri, Shaun Majumder (a Igreja) e o xerife Boyd (a Polícia), criam um metódico sistema de organização e reprodução social. Tão cotidiano e disciplinado, que as pessoas se esqueceram daquilo que deveria ser o propósito inicial de tudo: entender a natureza daquela realidade paralela para tentar fugir dali.
O inimigo externo (os zumbis-demônios que veem da floresta) legitima um sistema de reprodução social que se tornou invisível, tirando das pessoas a curiosidade ou qualquer questionamento metafísico sobre o que, afinal, é aquilo tudo.
Somente a chegada de dois novos habitantes, Jim (um engenheiro de parques de diversões) e Jade (David Alpay), um programador de softwares, criam uma atitude inovadora para a situação – o expertise técnico será usado para tentarem alguma forma de comunicação com o “mundo” exterior – ou será outro planeta ou realidade paralela?
Quanto mais avançamos nos episódios, mais percebemos como a ordem imposta pela “Igreja” e “Polícia” se assemelha a um microcosmo da nossa sociedade: quando novos habitantes chegam, são submetidos a um ritual de escolha: ou ficam na “Casa da Colônia” (uma espécie de república hippie, com drogas e festas) ou na “cidade”, constituída por residências nas quais os habitantes formam “famílias” – seriam, por assim dizer, os “cidadãos de bem”.
Em resumo, o cotidiano daqueles moradores torna-se tão disciplinado e naturalizado que todos acabam se esquecendo da própria surrealidade daquela prisão surgida em alguma espécie de fenda espaço-tempo que se abriu.
O medo dos demônios e as estratégias de sobrevivência parecem criar o esquecimento.
O sabor CosmoGnóstico da série Origem parece nos passar a seguinte mensagem: a ordem social só existe porque esquecemos o quão absurdo são os papéis que desempenhamos. Porque nos fazem esquecer a irracionalidade do todo.
Ficha Técnica |
Título: Origem |
Criação: John Griffin |
Roteiro: John Griffin |
Elenco: Harold Perrineau, Catalina Sandino Moreno, Eion Bailey, Hannah Cheramy, Shaun Majumder |
Produção: Epix Estudios, MGM INternational |
Distribuição: Globoplay |
Ano: 2022- |
País: EUA |