O século XXI está testemunhando o despertar da antiga e trabalhosa técnica de animação chamada “stop-motion”. De simples efeito especial no século XX, agora se torna uma expressão animada em longa-metragem. Por um lado, o páthos da stop-motion reside em dar vida àquilo que é inanimado, como no mito de Golem e Pigmaleão. Mas também se conecta com a simbologia de bonecos e fantoches como expressão da condição gnóstica nesse mundo. O filme britânico “Stopmotion” (2023) é uma espécie de terror metalinguístico que tem como atração principal a fusão de live action com a stop-motion na qual inocentes fantoches sem vida passam a ganhar propriedades sobrenaturais que começam a invadir a vida de uma animadora que fica à mercê das suas criaturas artesanais. Um filme PsicoGnóstico no qual não é o mundo onírico e alucinações que borram as fronteiras com a realidade: é a stop-motion que invade a vida cotidiana, sugerindo que todos nós poderíamos ser meros modelos de animação. Mas controlados por quem?
Na maior parte da sua existência, a arte da animação em stop-motion (técnica de animação utilizando-se modelos reais em diversos materiais fotografado quadro a quadro à razão de 24 para criar um segundo de animação) foi relegada ao campo restrito dos efeitos visuais. Enquanto a animação 2D ou em computação gráfica foi sempre o principal veículo para a expressão animada em longa-metragem.
Quando o computador eclipsou o stop-motion nos efeitos especiais, muitos acreditaram que a antiga técnica animação seria deixada no passado.
No entanto, surpreendentemente no século XXI houve mais do que um ressurgimento - houve um despertar da técnica do stop-motion com a conscientização da sua verdadeira natureza: dar vida a objetos inanimados como criaturas míticas como o Golem e Pigmaleão. Principalmente porque o stop-motion dá o distanciamento necessário para a criação do páthos – a emoção, o espanto e a compaixão. Ao contrário da identificação e empatia do cinema comercial
A Fuga das Galinhas, Coraline e o Mundo Secreto, Noiva Cadáver, Frankenweenie, Anomalisa etc. são alguns exemplos do despertar desta antiga técnica de animação.
O fato é que uma técnica de animação que dá vida ao inanimado explora uma simbologia arquetípica: dos bonecos e fantoches, isto é, a simbologia mística e sagrada dos simulacros humanos que depois terá continuidade com Replicantes, Ciborgues e personagens humanos híbridos. Uma simbologia essencialmente gnóstica na qual o homem projeta a sua própria condição gnóstica de prisioneiro na realidade física criada por um Demiurgo ou Titereiro.
Na cultura popular do século XX temos um aumento do fascínio por autômatos e bonecos com o surgimento do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus. Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gnóstico esquema simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil.
Mas é no século XXI que temos uma guinada nessa autopercepção gnóstica: do CosmoGnóstico da fase clássica dos filmes gnósticos em Hollywood (p.ex., Show de Truman e Matrix – o protagonista prisioneiro em mundos virtuais tecnológicos) para o PsicoGnóstico, a partir de Vanilla Sky (dessa vez o protagonista é prisioneiro em mundos internos oníricos, memórias e alucinações que cada vez mais se confundem com a realidade.
Stopmotion (2024), do diretor e animador Robert Morgan, é uma espécie de terror metalinguístico que tem como atração principal a fusão de live action com a stop-motion. Metalinguístico por primeiro utilizar-se daquilo que no cinema chama-se “narrativa em abismo”: um filme dentro de um filme – sobre uma animadora que está fazendo um filme com essa técnica de animação. No qual os inocentes fantoches sem vida passam a ganhar propriedades sobrenaturais que começam a invadir a vida real da protagonista que fica à mercê das suas criaturas artesanais.
Nos filmes PsicoGnósticos o protagonista nunca tem certeza da “realidade” do mundo ao seu redor. Cada vez mais as alucinações, fantasias e pesadelos confundem-se com a realidade, fazendo desaparecer as fronteiras.
A grande novidade que Stopmotion traz para esse subgênero dos filmes gnósticos é que a prisão interna é o próprio filme em animação que uma artista talentosa e obcecada tenta produzir – uma artista emocionalmente torturada e socialmente desajustada cuja busca obsessiva pelo seu ofício a empurra para uma espiral de loucura. A animação acaba aos poucos se confundindo com a própria vida e ela tornando-se também um fantoche animado por algum outro animador.
Mas quem?
O Filme
Acompanhamos a atriz Aisling Franciosi com um desempenho forte e comprometido como a protagonista chamada Ella Blake, uma jovem que está utilizando suas inegáveis habilidades no campo da animação em stop-motion para ajudar sua mãe (Stella Gonet), uma lenda no campo dessa arte cuja artrite incapacitante a deixou incapaz de manipular as estatuetas para completar o que será seu último filme.
Pelo que percebemos, a relação colaborativa entre a filha e a mãe não é exatamente feliz — a mãe é severa e preciosista e que ainda manipula emocionalmente sua filha da mesma forma que uma vez manipulou seus próprios personagens na sua carreira.
Ella anseia por se separar e fazer seus próprios projetos, ela não tem exatamente grandes ideias – principalmente porque o ímpeto da filha por independência é sempre sutilmente desvalorizado pela mãe.
Quando a mãe morre por conta de um AVC, Ella, com a ajuda do seu leal namorado Tom (Tom York), se muda para um apartamento vago para poder terminar o filme de sua mãe e depois dar vazão aos seus próprios projetos.
Isso tudo muda com a chegada de uma garotinha misteriosa (Caoilinn Springall), que considera o projeto atual de Ella chato e, em vez disso, sugere uma narrativa sobre uma jovem que está perdida na floresta sendo perseguida por uma entidade malévola conhecida apenas como o “Ashman”, o “Homem das Cinzas”. Em pouco tempo, a garota também está sugerindo que Ella repense os materiais usados para dar vida aos personagens, levando-a a usar coisas como bife cru e animais mortos para criar fantoches literalmente feitos de carne.
Inevitavelmente, as fronteiras entre a vida e a arte começa a se confundir de maneiras cada vez mais próximas a um pesadelo à medida que Ella se torna cada vez mais consumida pelo seu projeto. A tal ponto alucinando que é ela começa a ser perseguida pelo Homem das Cinzas. Em um ponto do filme, um personagem afirma que “grandes artistas sempre se colocam em seu trabalho”. Ella certamente leva essa declaração a sério da pior maneira possível.
A primeira camada interpretativa de Stopmotion é inegavelmente a metalinguística com a sua “narrativa em abismo”.
O diretor Robert Morgan é ele próprio um animador de stop-motion cujos curtas-metragens receberam aclamação na comunidade dos filmes de terror e as sequências de stop-motion vistas aqui têm um certo fascínio, são atraentes. Mas exigem do espectador estômago, especialmente à medida que as coisas progridem.
E ao que parece, Morgan faz uma crítica velada ao destino da técnica de animação nas mãos da chamada Geração Z. Ella é filha de uma lenda reverenciada por todos os amigos da filha, também profissionais nessa arte.
Porém, reverenciada como algo que ficou no passado. Seu namorado Tom e a sua irmã, Polly (Therica Wilson-Red), têm um viés mais comercial da arte: exploram a técnica como efeito especial em filmes publicitários, combinando com computação gráfica e inteligência artificial.
Preocupados, Tom e Polly tentam trazer Ella de volta para a “realidade”, enquanto se perde na espiral na espiral de obsessão – tal como seus fantoches, Ella continua sendo controlada e manipulada, mesmo após a morte da mãe. Dessa vez a manipuladora é a pequena menina que impõe seu próprio roteiro.
Tom e Polly querem convencer Ella a ter um olhar mais comercial e trabalhar no estúdio publicitário. Mas Ella está presa no seu próprio psiquismo e os inocentes fantoches acabaram se transformando nos seus demônios interiores.
A confusão entre sonho e realidade é um típico tropo de um filme PsicoGnóstico. Porém, Stopmotion inova: não é mais o universo onírico ou alucinações que invadem a vigília da protagonista. É a própria técnica stop-motion que invade e substitui progressivamente a live action. A tal ponto que a própria Ella se descobre como mais um modelo feito de cera funerária.
Quem é o animador que está controlando a própria vida de Elle, transformando-a em personagem de alguma produção alienígena?
Essa é a grande questão gnóstica: quem nos mantém prisioneiros nesse cosmos? Certamente alguém indiferente que não nos ama.
Ficha Técnica |
Título: Stopmotion |
Diretor: Robert Morgan |
Roteiro: Robert Morgan e Robin King |
Elenco: Aisling Franciosi, Stella Gonet, Tom York, Caoilinn Springall, Therica Wilson-Red |
Produção: British Film Institute, Blue Light |
Distribuição: IFC Films |
Ano: 2023 |
País: Reino Unido |