Nos anos 1980 um curioso subgênero prosperou em Hollywood: o “desconstruindo o Yuppie”: um protagonista certinho, careta e financeiramente bem-sucedido que tem a sua rotina quebrada por uma figura disruptiva ou sequência de eventos descontrolados que o desorienta e o desconstrói. “Track 29” (1988), do britânico Nicolas Roeg e produzido pelo ex-Beatle George Harrison, trouxe novidades: um olhar europeu para a América profunda a partir do olhar de um estrangeiro que chega a uma pequena cidade para literalmente fazer tudo sair dos trilhos: uma dona de casa entediada e frustrada é casada com um médico bem-sucedido e respeitável que só tem olhares para sua amante dominatrix e o ferromodelismo como uma metáfora nostálgica de uma América que deve “voltar aos trilhos”. “Track 29” é a Europa como consciência de culpa da América.
Os EUA sempre precisaram desesperadamente de uma mitologia fundadora que emulasse a europeia. Sempre a ex-colônia britânica, diante dos séculos de filosofia, arte, história e cultura europeia, se ressentiu dessa ausência de verniz que pelo menos escondesse a verdadeira mitologia fundadora do país: a história dos saques e massacres de povos originários e hispânicos no Velho Oeste – mais tarde esse verniz seria substituído pela ficção hollywoodiana com o gênero western.
Do mito dos “Pais Fundadores” e a “Bill of Rights” de George Washington, Jefferson e Benjamin Franklin ao mito do “Mr. President” (o presidente e sua família quase como uma família real eleita a cada quatro anos), a América tenta criar uma narrativa imaginária que no cinema John Ford e Frank Capra – o Mito da Fronteira, dos Pioneiros e a índole boa e integridade moral do homem comum americano.
Sabendo-se da hegemonia da indústria de entretenimento norte-americana projetar suas próprias fantasias para todo o planeta, é lógico que se tornam muito interessantes os filmes sobre o olhar europeu para a América – o distanciamento e a objetividade como estratégia para furar essa visão hegemônica de si mesma dos EUA.
Filmes tão diversos como The Young One de Buñuel, Zabriskie Point de Antonioni, Morte Silenciosa, O Segredo Íntimo de Lola de Jacques Demy, Mistério em Chinatown e Paris, Texas de Win Wenders, e Bagdad Café de Percy Adlon são filmes sobre a América feitos por diretores europeus, filmes com uma visão oblíqua, hermética ou cult. Mas que, de qualquer maneira, nos dão uma noção sobre um tipo de olhar sobre uma civilização vista de fora.
Track 29 (1988), do cineasta britânico Nicolas Roeg e produzido pelo ex-Beatle George Harrison, é mais um exemplo desse olhar europeu para a América. Mas com a vantagem de não ser tão hermético e oblíquo como as narrativas de Win Wenders.
No seu primeiro ato, Track 29 lembra outra produção seminal de Roeg: O Homem Que Caiu na Terra (1976), no qual o cantor David Bowie fez um alien que cai em uma cidadezinha perdida no meio dos EUA profundo, para suas invenções revolucionárias serem corrompidas mais tarde pela América corporativa enquanto o gin e a televisão embotam a genialidade do alienígena.
Martin (Gary Oldman) não é um alienígena, mas um misterioso jovem britânico que aparece pedindo carona em algum lugar no Sul dos EUA. Nicolas Roeg mais uma vez explora o personagem do Estrangeiro – um dos temas arquetípicos da mitologia pop/ Que no filme é o próprio olhar de Nicolas Roeg para uma cultura da América profunda.
Como sempre, o personagem do Estrangeiro é aquele que será o gatilho de rupturas, crises e transformações. Numa América profunda cristalizada e reacionária. Principalmente a vida tediosa e repressiva de uma dona de casa, Linda Henry (Thereza Russell), em plena era conservadora dos tempos do republicano Ronald Reagan.
A ironia de Track 29 é que ela acabou se inserindo em um subgênero que se tornou recorrente em Hollywood na década de 1980: o “desconstruindo o Yuppie”.
Depois de Horas (1985), de Scorsese, tornou-se o paradigma desse curioso subgênero que paradoxalmente prosperou numa década tão conservadora. Procura-se Susan Desesperadamente, Totalmente Selvagem, Férias Frustradas, Antes Só do Que Mal Acompanhado, Crazy People etc., são filmes em que um protagonista certinho, careta e financeiramente bem-sucedido tem a sua rotina quebrada por uma figura feminina ou sequência descontrolada de eventos que o desorienta e o desconstrói.
Porém, Nicolas Roeg introduz mudanças decisivas nesse subgênero: dessa vez o Estrangeiro é um personagem masculino irruptivo na vida de uma protagonista; também nega concluir a narrativa com o velho dispositivo clichê da “quebra-da-ordem-e-retorno-à-ordem”: em Track 29 a ordem doméstica é implacavelmente destruída.
O Filme
O título “Track 29” vem da letra da música “Chattanooga Choo-Choo”, gravada pela orquestra de Glen Miller em 1941, canção nostálgica que descreve a rota de um trem entre Pensilvânia e Nova York.
Além do simbolismo do estrangeiro, a metáfora do trem é outro tema principal do filme – a América que deve andar nos trilhos, como o trem num sistema de linhas férreas. E o aparecimento do Estrangeiro como o evento que vai fazer o sistema descarrilar.
Linda Henry é uma mulher entediada casada com um médico respeitado na comunidade chamado Henry (Christopher Loyd) que trabalha num asilo para idosos de classe média. No seu tempo livre, ele é um fanático por ferromodelismo – em sua casa tem um sistema ferroviário completo em miniatura.
Por isso, Henry divide seu tempo entre o trabalho médico no asilo, a manutenção dos seus trens elétricos e a participação em convenções com fanáticos de modelos ferroviários – ele é o principal palestrante dos eventos. Além disso, vive um pervertido caso extraconjugal com uma enfermeira do asilo (Sandra Bernhard) que na verdade é uma dominatrix que o espanca nas nádegas com luvas de borracha...
Nada sobra para a sua frustrada esposa que bebe muito enquanto vive em devaneios sexuais e sai com sua melhor amiga (Collen Camp) para comer hamburgueres em um restaurante de beira de estrada.
Um dia, um jovem estranho chamado Martin se materializa (literalmente) na pequena cidade. Nós o vemos aparecer do nada na sequência inicial, ao som da música de John Lennon “Mother” - também simbólica na narrativa de Nicolas Roeg.
Martin é imprevisível, manipulador, cujo prazer é puxar os cordões de todos ao redor.
Linda encontra Martin na hamburgueria. Logo, ele estará em volta da sua casa insinuando-se astutamente entre os seus delírios eróticos. É quando o filme começa a descer numa espiral de loucura, misoginia e incesto.
O status real ou imaginário de Martin não é bem definido no filme, mas aos poucos alguns flashbacks ajudam a explicar quem é essa pessoa – Linda foi estuprada aos 16 anos por um homem que vagamente lembra Martin. Numa sociedade tão conservadora como aquela, Linda jamais poderia ser aceita como mãe solteira: seu bebê é arrancado dos seus braços na maternidade e levado à adoção.
E o casamento com o bem-sucedido e respeitável na comunidade, o médico Henry, como um arranjo familiar às pressas para manter a boa imagem da adolescente Linda.
Martin reivindica ser o seu filho perdido, que acabou sendo adotado por ingleses e cresceu na Europa. Mas a maneira como Martin entra nos sonhos eróticos de Linda são cada vez mais perturbadores. Para além da indefinição entre real e imaginário, Martin ainda se torna mais ambíguo: ao mesmo tempo é o filho redescoberto, figura paterna, amante e bebê.
A performance de Oldman é o ponto forte do filme, lembrando suas atuações anteriores Sid and Nancy e Prick Up Your Ears. Ele faz de Martin um pequeno desgarrado insinuante e de mente suja que incentiva Linda das coisas mais chocantes e depois sorri para suas reações.
A narrativa torna-se cada vez mais sombria e perversa, paradoxalmente filmado com uma fotografia com colorido intenso, solar e fotogênica como um vídeo publicitário em packshot – o momento sinestésico do vídeo em que o produto é apresentado.
O ponto alto simbólico do filme também é a palestra do médico Henry na convenção de ferromodelismo, tendo ao fundo a bandeira dos EUA. Um discurso sobre como os modelos de trens nos tornam nostálgicos de uma época que os EUA “andavam nos trilhos” e tudo era previsível e ordenado. Uma criativa versão do “Make America Great Again!”.
Ao contrário de filmes “desconstruindo o Yuppie” como After Hours, nada volta aos trilhos: a quebra da ordem é definitiva e o descarrilamento será catastrófico.
Track 29 é o distanciamento do olhar europeu como a consciência de culpa da América: como o conservadorismo e o reacionarismo do EUA profundo sem verniz devastou a vida de uma adolescente violentada.
Ficha Técnica |
Título: Track 29 |
Diretor: Nicolas Roeg |
Roteiro: Dennis Potter |
Elenco: Thereza Russell, Gary Oldman, Christopher Loyd, Coleen Camp, Sandra Bernhard |
Produção: HandMade Films |
Distribuição: The Criterion Channel |
Ano: 1988 |
País: Reino Unido |