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quarta-feira, janeiro 03, 2024

Memórias em ruínas no filme 'Retratos Fantasmas'


As ruínas nos fascinam. Desde o início da arqueologia moderna, influenciou a sensibilidade artística criando um imaginário associado a memórias, fantasmas e desaparecimento até chegar, no século XX, ao “princípio das ruínas” como propaganda e estética política nazista: ruínas como inspirações para as gerações futuras. Kleber Mendonça Filho consegue representar esse imaginário em “Retratos Fantasmas” (2023) através de uma jornada pessoal e sociopolítica pelas memórias trazidas pelas ruínas urbanas: da casa vizinha ao edifício em que mora aos cinemas de rua abandonados do Centro do Recife. Como a modernidade cria incessantemente ruínas. E como nos relacionamos com elas através das memórias. Além de as ruínas apontarem para o futuro quando salas de projeção viram templos religiosos.

quinta-feira, setembro 29, 2022

O smartphone matou a experiência urbana do flâneur


Já se tornou um lugar-comum na paisagem urbana: pessoas caminhando, sentadas em pontos de ônibus ou em terraços de café ou bares com as costas curvadas, cabeça inclinada e olhares fixos para a tela do smartphone. As nossas vidas nas bolhas das redes sociais e nos aplicativos de mensagens instantâneas nos obriga a olhar para baixo, blindando-nos de “felizes acidentes”, o acaso, o espanto, insight, a experiência do sublime ou mesmo inspiração poética no espaço real das ruas e parques. Em síntese, a experiência urbana do flâneur, tão enaltecida tanto por Charles Baudelaire quanto pelo filósofo Walter Benjamin como o personagem que fazia ponto crítico ao capitalismo, por estar no contrafluxo, resistindo à disciplina. Mas o capitalismo não pode tolerar tempo e espaço livres. A indústria cultural foi o primeiro passo para a disciplina do tempo livre. Depois, inventaram o smartphone.

quinta-feira, junho 24, 2021

Walter Benjamin e os documentos da barbárie no filme 'Sound of Violence"


Apenas um mash-up da franquia “Jogos Mortais” com “Psicopata Americano”? A co-produção EUA/Finlândia, “Sound of Violence” (2021) vai mais além de um mero slasher movie. É uma curiosa experiência audiovisual na qual a protagonista experimenta as sensações da sinestesia extática ao ouvir um certo tipo de som: uma explosão de cores e prazer originados dos sons da violência. Um projeto de arte sônica radical, cuja “instrumentação” são gritos e golpes. Sob a aparência de uma pesquisa acadêmica, cria-se uma esteira de vítimas cujos sons da violência serão remixados e editados numa composição eletrônica literalmente “matadora”. Se o filósofo alemão Walter Benjamin dizia que todo monumento da cultura é um monumento da barbárie, “Sound of Violence” retoma essa tese da forma mais assustadora possível.

quarta-feira, maio 20, 2020

"Novo normal": a nova expressão da reengenharia social do coronavírus


Marcinho é despertado pelos amigos. Ainda zonzo ouve péssimas notícias: João Doria é governador, Luciano Huck será candidato a presidente e o atual é Bolsonaro... “Como assim! Aquele do CQC e Super Pop?”. Não! Não estamos na atualidade. Estamos em 2014, e tudo não passou de uma pegadinha para assustar o amigo de ressaca. No dia do fatídico 7x1 da Alemanha... Esse vídeo impagável da trupe de humor “Porta dos Fundos” provoca uma discussão sobre a expressão que cada vez mais aparece na mídia: o chamado “novo normal” – coisas que anteriormente seriam consideradas anormais que depois tornam-se normais, aceitas pelas condições adversas. Expressão de reengenharia social, plantada na mídia como forma de criar resignação numa situação totalmente bizarra: personagens canastrões, promovidos por programas de entretenimento, viram personagens políticos na crise COVID-19. Mecanismo psicológico de amnésia social. E o sincrônico 7X1 da Alemanha foi o gatilho que desencadeou a sucessão de eventos que nos levou ao “novo normal”. 

quinta-feira, fevereiro 20, 2020

Curta da Semana: "World of Tomorrow" - clonagem, memória e esquecimento


Em um futuro próximo uma criança atende um chamado em um videofone. É ela própria, 227 anos no futuro. Na verdade, um clone seu na terceira geração. Na busca da imortalidade, uma elite abastada passou a clonar corpos e memórias. Cópias de cópias, copiando-se a si mesmas. Mas alguma coisa se perde na sucessão de gerações de clones – eles nunca são autênticos: o futuro é tomado por uma nostalgia daquilo que não se consegue mais lembrar. Indicado ao Oscar de melhor curta de animação em 2016, “World of Tomorrow” é uma narrativa criativa comovente e engraçada de um tema melancólico. Na busca da imortalidade, a tecnologia tenta traduzir digitalmente aquilo que nos torna humanos: as memórias. Assim como a arte perde a “aura” na reprodutibilidade técnica, também corpos e memórias clonadas perderão algo que jamais conseguiremos lembrar. 

quinta-feira, dezembro 20, 2018

Em "Uma Noite de Crime 2: Anarquia" o Capitalismo quer eliminar o "excremento social"


São as raras as sequências que superam o filme original. “Uma Noite de Crime 2: Anarquia” (“The Purge: Anarchy”, 2014) é um desses raros casos. Não pela estética que, como no original, emula uma produção B. Mas porque é um perfeito documento do espírito de época atual, pós-globalização, no qual o hiper-capitalismo financeiro procura criar uma nova ordem a partir do rescaldo da crise de 2008: o aumento do "excremento populacional" (idosos, aposentados, inválidos, imigrantes, excluídos, miseráveis, refugiados etc.) que nem mais para serem explorados servem. Se o primeiro filme refletia as reações da ultra-direita contra o “Obama Care”, nessa sequência o roteiro de James DeMonaco reflete a nova ordem pós-globalização: formas invisíveis de controle populacional com o objetivo de exterminar o “excedente humano”. DeMonaco dá ao espectador nessa sequência uma noção mais ampla dos efeitos e propósitos da “Purgação” – a noite anual em que todas as formas de crime são permitidas, sob o pretexto de servir de válvula de escape para a besta interior presente em cada um de nós, garantindo a ordem social. Mas os propósitos de controle social são mais sombrios.

segunda-feira, novembro 19, 2018

Cultura, prostituição e barbárie no filme "Bibliothèque Pascal"


Uma mulher desesperada em recuperar a guarda da sua filha. Uma mãe que foi vítima de uma rede europeia de prostituição de mulheres e crianças que realiza sequestros no Leste Europeu para o mercado sexual da elite intelectual e corporativa inglesa. Para ter sua filha de volta, deve relatar onde esteve nos últimos dois anos. Ela descreve o cabaré-bordel chamado “Bibliotheque Pascal”, em Liverpool, repleto de estantes com livros e quartos que recriam em tons futuristas e sadomasoquistas cenas literárias das obras de Shakespeare, Nabokov, Wilde, Shaw entre outros. O filme húngaro “Bibliothèque Pascal” (2010) dança nas bordas entre fantasia e realidade, civilização e barbárie. É impossível não lembrar do pensador alemão Walter Benjamin, principalmente nas sequências do cabaré-prostíbulo. Lá a barbárie não parece ser o avesso da civilização, mas um pressuposto dela. O impulso bárbaro parece não estar fora, mas no interior do movimento de criação e transmissão cultural.

sábado, fevereiro 24, 2018

A canastrice como fator subliminar na política


Temer, Rodrigo Maia, Dória Jr., Lula, FHC, Mário Covas. O que esses políticos têm em comum com as evoluções e regressões da teledramaturgia, principalmente da Globo, que moldou o imaginário coletivo brasileiro? Partindo da premissa de que por décadas a percepção do brasileiro médio foi moldada pela teledramaturgia, será que a performance dos políticos refletiria as mudanças das técnicas de atuação dos atores nas novelas? Ou em outros termos: será que a verossimilhança e a credibilidade dos discursos e performances que levaram esses políticos à cena pública é tirada do realismo ou do melodrama da linguagem das telenovelas? A canastrice entra em cena na política e torna-se um fenômeno pouco discutido pela ciência política ou propaganda. Um elemento subliminar: até que ponto políticos canastrões, caricaturas de caricaturas, ganham força não por ideologias ou virtudes, mas pela semelhança com a canastrice original do cinema e TV?

terça-feira, julho 25, 2017

Luta simbólica da esquerda é vulnerável contra retórica da guerra híbrida midiática


O escritor e dirigente sindical Roberto Ponciano no seu artigo “Cultura, Violência e Direito à Insurreição” observa uma “docilidade cultural” que parece tomar as manifestações no Brasil e alerta: “Nesse ritmo de paz e amor em que estamos, embalados pelos showmícios de Caetano, ao menos nos tornaremos escravos mais alegres do mundo”. O editor do blog “O Cafezinho”, Miguel do Rosário, aponta que essa opinião revela “a inapetência da esquerda em fazer luta simbólica”, luta que corresponderia ao próprio campo da Comunicação”. Porém, essa “luta simbólica” confronta a chamada “Guerra Híbrida” cuja principal estratégia é a dessimbolização ou retórica da destruição. Diante disso, a criação de simbolismos de “luta e resistência” mais parece uma prescrição alopática de cura pelos opostos: se a mídia desinforma, vamos informar. Se a mídia dessimboliza, vamos então criar símbolos. Por que não a metodologia, por assim dizer, homeopática: a cura pelos semelhantes? Responder à simulação e mentira com ações diretas dentro do campo da comunicação também com simulações e mentiras, direcionadas ao próprio campo de dessimbolização da mídia corporativa. Táticas de “pegadinhas” e “trolagens” já existem – Cuture Jamming e Media Prank, por exemplo.

sábado, abril 01, 2017

O projeto "Lance Limpo" da Globo e os "idiotas da objetividade" no futebol


A doença crônica do tautismo (tautologia + autismo), em processo de metástase na TV Globo, assume formas cada vez mais imprevisíveis na emissora. Agora contamina seus jornalistas que começam a levar a sério a própria visão de mundo de uma TV fechada em si mesma. O apresentador do Globo Esporte, Ivan Moré, “teve uma ideia” que prontamente recebeu as bênçãos do indefectível Galvão Bueno em seu programa “Bem, Amigos!”: o projeto “Lance Limpo” no qual serão apresentados “exemplos de nobreza e honestidade” – jogadores que confessam que cavaram pênaltis, por exemplo, fazendo árbitros corrigirem seus próprios erros. Para Moré e Bueno, na situação atual de “corrupção, desonestidade e ladroagem que dominam o País”, o esporte deve dar bons exemplos para ajudar a resolver o “problema sério de formação do cidadão”. Uma espécie de “Pan-Lava Jato” histérico que agora vê em qualquer coisa a necessidade de receber o raio moralizador. Mas pode matar o maior produto global: o futebol – assim como Nelson Rodrigues alertava que os “idiotas da objetividade” queriam destruir o futebol pelo complexo de vira-latas, da mesma forma a  moralização (que não consegue moralizar a si mesma) quer limpar a natureza imaginária de todo jogo: o drama e o lúdico. Mas há também uma agenda secreta por trás do tautista projeto: o anarcocapitalismo no esporte.

segunda-feira, outubro 31, 2016

A Guerra Total de Donald Trump, UFOs e o hoax "Operação Firesign"


Aproveitando-se do impacto do dilúvio de e-mails liberados pelo “Wikileaks” em outubro (muitos dos quais associados ao tema UFO) e pelas declarações de Hillary Clinton de que o Governo liberaria informações sobre a questão ufológica, Donald Trump partiu para a típica estratégia Smart Power de guerra total: um documento intitulado “Programa de Salvamento” produzido por uma empresa de Inteligência e estratégia dos EUA, supostamente vazado pelos hacker ativistas “Anonymus” e viralizando na Internet,  prevê cenários de False Flag que permitiriam suspender as eleições. Um deles, seria a “Operação Firesign” criada pela NASA – por meio de hologramas 3D projetados na alta atmosfera simular uma invasão extraterrestre. Na verdade, plágio explícito de um episódio da série “Star Trek: A Nova Geração”. Tudo parece bizarro e risível, não fosse parte da tendência da “Smart Power” na Política atual – tornar crível ou ambíguo e viral estratégias políticas por meio de narrativas ficcionais da indústria do entretenimento. Por todos os lados vemos a chegada da estetização midiática da política. No Brasil, Doria Jr., Crivella, Temer etc., todos baseados em personagens e narrativas de entretenimento.

domingo, setembro 25, 2016

A agenda secreta da reforma do ensino: o analfabetismo visual


Depois da divulgação da Medida Provisória que “flexibiliza” disciplinas do Ensino Médio como Artes e Educação Física o Ministério da Educação tentou explicar dizendo que não era bem assim, depois de forte reação de educadores e pedagogos. Mas está claro: não basta apenas o golpe político. É necessária uma operação psicológica para anestesiar as outras amargas “flexibilizações” que serão proximamente enfiadas goela abaixo da sociedade. Uma operação para manter um sistema de comunicação projetado pela ditadura militar e mantido até hoje – a concentração das informações para a opinião pública exclusivamente nas mídias audiovisuais, especialmente a TV. Para isso é necessária a manutenção do analfabetismo visual: a crença ingênua de que ver é um ato natural e fisiológico, impossibilitando a educação do olhar e a percepção das intencionalidades por trás das mensagens visuais. “Flexibilizar” as disciplinas Arte e Educação Física mostra  que o “núcleo duro” de Poder, persistente há décadas na política brasileira, não brinca em serviço. Sabe o que faz: o olhar e a autoconsciência corporal estão conectados através da “propriocepção”, a base da alfabetização visual.

sábado, abril 23, 2016

Curta da Semana: "Action Man: Battlefield Casualties " - o que acontece depois da guerra?


Crianças brincam com armas e games de computadores militares. Toda essa fetichização das armas e poder impede crianças e adultos de pensarem numa coisa: o que acontece depois da guerra, quando o nosso herói volta para casa? O curta retro-trash “Action Man: Battlefield Casualties ” (2015) propõe um novo brinquedo para as crianças. O herói Action Man convivendo com traumas psíquicos, cadeiras de roda, amputações e paralisia – e eventualmente tentando se matar com os acessórios que vem junto com o kit. A série de curtas, como fosse composta de comerciais de TV do estilo anos 80 (quem não se lembra dos bonecos “Falcon” e “Comandos Em Ação”?), é uma ação de veteranos da OTAN contra o alistamento de menores de idade pelas Forças Armadas da Grã-Bretanha, único país da Europa a alistar jovens de 16 anos. “Action Man” é mais uma deliciosa amostra do impagável humor negro inglês.

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