Um jovem no limite da adolescência anseia em chegar à vida adulta para fugir do tédio e vazio da sua existência. O que aconteceria se descobrisse que a vida dos seus pais, jovens adultos, nada mais fosse do que uma extensão da própria infância da qual quer fugir? Esse é o tema do psicodrama sombrio em tom de fábula “Um Lugar Secreto” (John and The Hole, 2021), uma espécie de “Esqueceram de Mim” invertido: é ele que esquecerá dos pais, esquecendo sua família presa em um buraco. Um bunker abandonado que é a metáfora central do filme: o abismo geracional criado pela negação e distanciamento nas relações familiares contemporâneas.
Filmes como O Sacrifício do Cervo Sagrado e Precisamos Falas Sobre Kevin são alertas para os perigos da negação e do distanciamento nas relações familiares modernas. A ausência dos pais (seja física ou simbolicamente), o desaparecimento da infância pelo enfraquecimento da distância entre crianças e a maioridade e o fenômeno dos “jovens adultos” e das crianças que passam a saber tanto quanto adultos, são eventos que estão por trás do tema do distanciamento e negação que vem sendo tematizado pelo cinema nesse século.
São conhecidas as razões socioeconômicas do naufrágio das relações familiares com a expansão do capitalismo tardio no qual ao lado da sociedade de massas, somam-se a sociedade de consumo e de entretenimento: diminuição da renda das famílias, levando os pais a estenderem o tempo de trabalho, enquanto os filhos privados da presença parental (principalmente como ego ideal enquanto meta para a maioridade) tornam-se solitários e expostos aos novos egos ideais oferecidos pelos meios de comunicação.
De qualquer maneira, a instituição “família” deve continuar (como teto sob qual é reproduzida força de trabalho), mas sob o custo psíquico de fenômenos como o distanciamento geracional e a negação – sentindo-se culpados, ou os pais cercam os filhos com excesso de solicitude ou tentam emular os novos egos ideias dos filhos, tornando-se “jovens adultos”. O que amplia ainda mais o problema da negação. Enquanto para os filhos, fica cada vez mais incompreensível os limites que separam a infância-adolescência da maioridade.
O filme Um Lugar Secreto (John and The Hole, 2021), uma penetrante estreia de Pascual Sisto na direção de um longa-metragem, talvez seja aquele que mais aprofunde esse tema. Paradoxalmente, através de uma narrativa que não pretende ser realista, aproximando-se da fábula e fantasia.
Um psicodrama sombrio ambientado nos limites da adolescência de John (Charlie Shotwell), de 13 anos, que descobre um bunker não totalmente construído, no meio da floresta que cerca a casa luxuosa da sua família na Nova Inglaterra.
O “buraco” que representa o bunker é a metáfora central do filme, que representa algo muito maior do que uma vala profunda que um garoto frio e distante descobre em uma tarde preguiçosa, graças a um drone caro que o seu pai lhe deu. O buraco parece representar o abismo escancarado na alma de John onde deveria estar apenas a alegria da consciência juvenil.
John luta contra esse vazio de uma vida na qual não consegue se importar com nada. Apesar de privilegiado, com pais que o adoram, negligenciam fornecer as coisas que ele mais precisa: tempo e atenção.
Seus dias são tediosos, preenchidos com modorrentas aulas de piano e de tênis e outras atividades para ele irracionais. Ele quer desesperadamente crescer, para fugir dessa vida monótona e solitária.
Ele tenta compreender o que é alcançar a maioridade, se tornar adulto. Mas olha para os seus pais, pessoas que alcançaram conquistas materiais e financeiras que garantiram o conforto de classe média alta num grande sobrado em estilo modernista. Tão frio quanto as relações familiares com os pais e sua irmã mais velha.
John até tenta perguntar para sua mãe o que é ser adulto. Mas, a reposta não é nada satisfatória para ele, disparando um gatilho emocional que o fará tomar uma atitude drástica contra a ausência parental.
É quando, ironicamente, Um Lugar Secreto vira uma espécie de Esqueceram de Mim invertido – filme clássico que, aliás, já retratava esse abismo geracional. Se no clássico os pais esquecem Kevin em casa e viajam para a Europa, aqui é John que esquece os pais... deixando-os num buraco.
O Filme
John parece ser mimado por uma família amorosa composta por seus pais Anna e Brad (Jennifer Ehlee e Michael C. Hall) e a irmã Laurie (Taissa Farmiga). Não exatamente uma família atenta uns com os outros: embora os pais estejam presentes, há uma ausência simbólica – embora pareçam ligados uns aos outros, estão distantes. Mas também num processo de negação: não estão conseguindo ver as peculiares lutas psicológicas internas de John se formando logo abaixo da superfície.
Para a mãe e o pai de John, é a idade adulta. Ter dinheiro e posses significa que você nunca está com fome ou querendo coisas materiais, mas não significa que você é feliz. A mãe de John parece perdida em uma névoa de auto absorção e ignorância. Seu pai parece confortável o suficiente, mas não tem tempo suficiente para o filho e não tem contato com a filha.
Talvez John esteja apenas entediado com sua vida fácil, livre de problemas e rica - afinal, o olhar do diretor é crítico ao tipo de apatia que a riqueza traz ao longo do filme. Ou talvez ele apenas queira preencher o vazio em seu coração; o vazio inexplicável que ele não pode deixar de sentir.
Através de um sofisticado e caro drone dado pelo seu pai, John descobre um bunker inacabado no meio da floresta que envolve a residência. Ele pergunta para os pais, à mesa em uma refeição em família, o que é um bunker. Assim como também pergunta, em outra oportunidade, o que é ser adulto – sua última esperança para escapar daquela vida vazia.
As repostas são frustrantes e inconclusivas: sobre o bunker, generalidades para desconversar (óbvio que é uma relíquia histórica da histeria nuclear dos tempos da Guerra Fria; poderia ter sido o tema de uma ótima conversa com um filho curioso); e sobre ser adulto, uma reposta com um tom tão desesperançado que aprofunda ainda mais seu buraco interior: “é como ser criança, só que com responsabilidades...”, diz Anna, achando a pergunta “estranha”.
Essa será a gota que fará o copo de John transbordar: que tal juntar uma coisa à outra... colocar a família no bunker profundo e esquecê-los lá?
Para o espectador, a narrativa começa a ficar cada vez mais inverossímil: como o filho conseguiu drogar a família, arrastá-los até o bunker e descê-los pelo buraco? Para acordarem numa manhã fria, sem saber como pararam ali?
E quando o filme adota o tom de uma fábula (o título original sugere isso). Na verdade, essa estória de John parece ser uma subtrama dentro de uma história maior. Outra história de distanciamento e abandono.
Uma criança ruiva chamada Lily (Samantha LeBretton) é apresentada trinta minutos depois, quando o cartão do título do filme também é exibido. O cartão de título e o posicionamento estranho desta história aparentemente não relacionada e sem sentido escondem a verdade real.
John e sua família não são os personagens principais. Lily e sua mãe são os verdadeiros personagens principais, e tudo o que vemos é uma construção da história que a mãe de Lily conta a ela.
É por isso que a estória de John se torna inverossímil: dirige o carro do pai por toda a cidade sem consequências, além de conhecer o PIN do caixa eletrônico de seus pais. A maioria das crianças não saberia esta informação. Além disso, a amiga da mãe de John faz muito pouco esforço para ajudá-lo, mesmo depois de saber que ele foi deixado sozinho.
Lily e John parecem ter muito em comum. Ambos são filhos estranhos com pais ausentes. Sem explicações, sua mãe irá abandoná-la, deixando-a sozinha num apartamento com uma quantia de dinheiro por baixo do colchão.
O Desaparecimento da infância
Neil Postman, no clássico estudo “O Desaparecimento da Infância”, publicado originalmente em 1982, apresenta a tese a construção social da infância e o seu desaparecimento contemporâneo.
Entre os gregos na Antiguidade, a competência para a leitura constituía-se no motor da progressão da infância para a vida adulta. Para depois se perder essa referência na Idade Média, quando a criança passou a ser vista como um adulto em miniatura.
A impressão por tipos móveis, promovida por Gutemberg no final do século XV, teria sido então peça-chave para a invenção da infância, por instaurar novamente a necessidade de aquisição e aprimoramento da competência de leitura, promovendo mais vez a linha demarcatória entre infância e maioridade. Para Postman, era um novo mundo simbólico instalado com a imprensa, mundo que requer a disciplina da aprendizagem e uma instituição para sua realização, a escola.
Com as mídias de massa e, podemos extrapolar, as atuais mídias de convergência, redes sociais e games de computador, há uma simplificação da informação (ou dessimbolização): intuitivamente as crianças conseguem manipular, por exemplos, celulares desde tenra idade. Cada vez menos os adultos são necessários para a aquisição de competências necessárias para esse novo mundo.
Com a perda da autoridade ou o esvaziamento simbólico paterno, cada vez mais os adultos tentam emular o estilo de vida jovem. São os “jovens adultos”.
Assim como John, o infanto-juvenil, frustrado, descobre que a maioridade e a vida adulta parecem não existir como mudança qualitativa: parece cada vez mais uma extensão da própria adolescência.
Essa é a fonte do mal-estar niilista de John. Desesperado, descobre que o tédio se estenderá por toda existência. Então, a vingança niilista: mandar a família para o buraco. É o mal-estar freudiano da civilização. Porém, agora não mais contra a sociedade como um todo, mas transposto para outro campo: o das relações familiares.
Ficha Técnica |
Título: Um Lugar Secreto |
Direção: Pascual Sisto |
Roteiro: Nicolás Giacobone |
Elenco: Charlie Shotwell, Michael Hall, Jennifer Ehle, Taissa Farmiga, Samantha LeBretton |
Produção: Mutressa Movies |
Distribuição: Amazon Prime |
Ano: 2021 |
País: EUA |