sexta-feira, junho 25, 2010

O Cadáver da Teologia e o Resumo Recusado pelo Encontro Científico

Nessa semana, voltando de bicicleta após mais uma manhã de aulas na Universidade Anhembi Morumbi (vou de bicicleta dar aulas na Universidade todas as manhãs) e pensando na próxima pauta para esse humilde Blog (sim! Meus melhores insights e idéias ocorrem entre as pedaladas), veio à lembrança um resumo expandido de um artigo recusado que fora submetido a um encontro científico.

Esse resumo expandido foi enviado por mim no ano passado para o Terceiro Encontro ESPM de Comunicação e Marketing, realizado na Escola Superior de Propaganda e Marketing aqui de São Paulo. O tema geral era “Comunicação e Consumo na Sociedade de Acesso”. O resumo submetido ao Encontro intitulava-se “Cinegnose: Imaginário Cinematográfico e a desmaterialização econômica e tecnológica global” (logo abaixo o leitor poderá ler esse resumo)

Entre alguns argumentos de ordem metodológica que justificavam a recusa, um chamou-me a atenção: o texto submetido ao Encontro era muito “místico”! Logo pensei: É! ... O tema “gnosticismo e cultura” é místico demais para um evento “científico”.

É curioso o destino que a Teologia e o “misticismo” tiveram na história do pensamento ocidental. A Teologia, a primeira das ciências, que possuía o maior estatuto, o pai poderoso das origens da Universidade, com o processo de desenvolvimento do racionalismo foi sistematicamente atacada, desacreditada e marginalizada. Sendo a universidade laica, as ciência humanas tornaram-se também laicas e a Teologia, religiosa.

Mas, por meio da Metafísica moderna, a Teologia secretamente secularizou-se. Sem saber, ainda as ciências humanas nutrem-se dos pedaços do cadáver esquartejado da Teologia. Ainda mais nesse campo da Publicidade e do Marketing, ciências sociais aplicadas, onde se busca desesperadamente racionalizar ou dar bases “científicas” a processos puramente místicos, carismáticos ou espirituais: vender sonhos, explorar motivações, narrar temas arquetípicos. Desde há muito tempo quando o consumo se desprendeu do valor de uso, o consumo é basicamente feitiço e fantasia.

Tentando dar um estatuto de ciência, erradicam-se temas “místicos” que partam de categorias do próprio campo teológico ou metafísico. O “místico” das ciências humanas (principalmente as aplicadas) deve ser denegado para, mais tarde ressurgir como sintoma: a obsessão pela cientifização para justificar o status laico e racional de uma área que, certamente, é constituída pelos novos padres, monges e sacerdotes da nova Teologia pós-moderna, criadores de liturgias paras os novos templos chamados de “Shopping Centers”. A homilia dessa nova liturgia é o texto publicitário.

Abaixo, o texto “místico” recusado:



CINEGNOSE
Imaginário cinematográfico e a desmaterialização
econômica e tecnológica global

Wilson Roberto Vieira Ferreira

RESUMO EXPANDIDO


Nos últimos vinte e cinco anos, uma série de filmes do mainstream hollywoodiano vem extraindo imagens e idéias de antigas correntes filosóficas, religiosas e culturais conhecidas como gnósticas: Vanilla Sky (2001), eXistenZ (1999), Matrix (1999), Cidade das Sombras (Dark City, 1998), Show de Truman (Truman Show (1998), A Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998), Veludo Azul (Blue Velvet, 1986), Coração Satânico (Angel Heart, 1987), Dead Man (1995), Amnésia (Memento,2000) , O Jogo (The Game, 1997).


Neste pequeno grupo de filmes citados há preocupações básicas que os unem: (a) o tema do colapso da distinção entre aparência e realidade provocado tanto pelas recentes tecnologias quanto pela condição humana; (b) instabilidades naquilo que conhecemos como realidade e o seu multifacetamento em instâncias supra e para-reais; (c) experiências da perda da memória e a sua reminiscência como fator de recuperação da identidade.

Este texto procurará discutir exatamente esta conexão entre gnosticismo e cinema, mas num aspecto particular, a saber: como os filmes que abordam temas e símbolos gnósticos vêm na última década insistindo no tema do artificialismo da realidade. Não a realidade ideológica, política ou econômica, mas no seu aspecto último, metafísico ou ontológico: a realidade tal como a entendemos existe? Por que essa espécie de guinada metafísica na temática da produção hollywoodiana recente? A forma como esses temas são abordados nos aspectos de narrativa, iconografia e construção de personagens parecem apontar para a influência dos temas e narrativas do gnosticismo histórico e dos seus ressurgimentos no campo da literatura e no imaginário das novas tecnologias (gnosticismo tecnológico).

Se há uma conexão entre cinema e sociedade, ou seja, se o filme pode ser considerado um repositório do imaginário social contemporâneo e se sabemos que este imaginário atual é fortemente marcado pelo desenvolvimento tecnológico computacional e a crescente liquidez da financeirização global, é a partir daí que devemos analisar essa produção fílmica. Esta crescente recorrência de elementos gnósticos no cinema hollywoodiano corre paralelo à euforia da globalização e o fortalecimento de seus dois pilares: de um lado, o desenvolvimento da microinformática e, a partir do bombástico lançamento do Windows 95, o crescimento especulativo das potencialidades da Internet e das tecnologias computacionais; e, do outro, a extraordinária aceleração da expansão do capital por meio da financeirização do sistema econômico global.

Esses dois processos são interdependentes, pois o desenvolvimento da microinformática e da nanotecnologia surge na hora certa quando a globalização do capitalismo passou a exigir uma pilotagem mais complexa: dominar a complexidade das interconexões simultâneas, o cálculo probabilístico das transações financeiras e da equalização das caóticas tendências nas jogadas em bolsas de valores e na análise dos tensos cenários econômicos. As tecnologias da informação permitem a integração complexa das praças financeiras de todo o mundo em tempo real.

Em ambos os movimentos que fortalecem a ordem mundial da Globalização encontramos o caráter constitutivo da desmaterialização, isto é, o primado do imaterial sobre o físico, do virtual sobre o real e assim por diante. No plano da ciência e tecnologia, diversos autores detectaram e mapearam a semente do misticismo nas comunidades científicas, sejam acadêmicos ou tecnófilos: a princípio entre físicos, cosmólogos e biólogos para, em seguida, alastrar-se por outras áreas, principalmente através da Cibernética e Teoria da Informação. Diversos pesquisadores vão caracterizar este imaginário ciberutópico com o conceito de “gnosticismo tecnológico”.

O gnosticismo histórico (conjunto de seitas sincréticas combinando idéias cristãs, neoplatonismo e as religiões de mistérios pagãs que florescem nos primeiros tempos da difusão do Cristianismo) caracteriza-se pelo horror ao orgânico e a uma aversão ao natural. Tais elementos seriam inimigos do espírito na sua busca por iluminação. A tecnociência atual se aproximaria de tal filosofia ao propor a superação dos parâmetros básicos da condição humana: finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitação existencial.

Essas tecnologias rompem com o antigo paradigma moderno, ao criar uma ambiência tecnológica computacional onde o sujeito humano é desnaturalizado: da tecnologia como extensões do homem ao momento atual de ruptura onde a tecnologia virtualiza o humano. O resultante é um mundo viscoso, menos estruturado, flutuante que pode ser sintetizado em três palavras-chave: destemporalização, destotalização e desreferencialização. Ao mesmo tempo, no plano econômico, temos a interconexão de economias por um novo modo comandado pelas novíssimas tecnologias integradoras como a microinformática, mídia, marketing e publicidade transnacional. Estas tecnologias vão sustentar o chamado “turbo-capitalismo”: a extraordinária aceleração da expansão do capital por meio da financeirização do sistema econômico global.

Esta "desmaterialização" da economia corresponde ao fato de, cada vez menos, a fonte do lucro ou da riqueza ter sua origem no circuito da produção. Deixa de ser visivelmente localizável, para encontrar formas flexíveis de acumulação: a princípio em novos vínculos trabalhistas, como a terceirização, porém, quanto mais o capital migra da produção para a esfera da circulação (financeira, midiática, etc.), mais se impõe uma nova forma de riqueza "fora do chão". É a base da constituição de um novo imaginário: redes descentralizadas, como a Internet, criando ciber-identidades pulsantes e variadas, assim como a moda efêmera e superficial traria a liberdade a um indivíduo que não mais se prenderia a certezas eternas.

Um indivíduo pós-moderno radiante, desenvolto, integrado à tecnologia (que, afinal, é a promotora desta verdadeira emancipação das identidades fixas), identidade móvel, sedutor, assumindo múltiplas personas em blogs e chats, sentindo as novas pulsações e tendências. Uma identidade tão líquida quanto os fluxos financeiros globais. Mas um imaginário paradoxal, mesclado com elementos místicos ou gnósticos, tal como representado pelo imaginário cinematográfico hollywoodiano recente. Este imaginário refletiria a própria imaterialidade da percepção do real e da identidade originada pelos processos que constituíram a Globalização?

quinta-feira, junho 24, 2010

Uma Pequena História Gnóstica da Espontaneidade na Indústria do Entretenimento (parte 2)

Depois do Star System, Celebridades, pin ups, crianças e animais, a indústria do entretenimento vai buscar a espontaneidade em formas mais invasivas e perniciosas onde as perversões privadas transformam-se em virtudes públicas.

Terminamos a primeira parte da postagem sobre indústria do entretenimento e espontaneidade abordando a armadilha que as próprias mídias acabaram criando para si mesmas: o ciclo vicioso dos pseudoeventos. Celebridades e eventos políticos e econômicos replicam imagens, temas e linguagens desenvolvidos pelas mídias, criando um gigantesco efeito que autores como Baudrillard chamariam de hiperrealismo: a realidade passa a copiar as imagens, isto é, a precessão das imagens diante todos os eventos reais presentes e futuros (as quedas das torres nos atentados de 11 de setembro de 2001 nada mais fizeram do que materializar o imaginário das catástrofes hollywoodianas sobre Nova York – afinal, quantas vezes NY já foi destruída no cinema?)

O resultado desse ciclo vicioso é o tédio diante da mídia que não consegue mais mostrar eventos espontâneos, mas pessoas produzindo eventos, gestos, atitudes para atrair a atenção das mídias, seguindo roteiros e linguagens elaborados por elas próprias.

Estrelas, celebridades, pin-ups, crianças e animais no cinema, TV e publicidade já não bastavam para injetar algo de espiritual e espontâneo nas estruturas-clichê dos diversos gêneros midiáticos.

Mas uma novidade despontava no horizonte da cultura com a tradição literária do realismo norte-americano. F. Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway já apresentavam em suas obras a rebelião intelectual com a desilusão provocada pelas guerras e depressão econômica: personagens que experimentam esplendor e desespero como em “O Grande Gatsby” de Fitzgerald e, em Hemingway, protagonistas durões (soldados, toureiros, atletas) e intelectuais desiludidos.

Essa busca por autenticidade e realismo desemboca no desabrochar do indivíduo na literatura norte-americana com nomes como Tennessee Williams e Allen Ginsberg. Distúrbios emocionais no seio da família em Williams e a “prosa bop espontânea” de Ginsberg com relatos de vidas errantes, personagens antenados e ao mesmo tempo místicos e a rejeição às convenções incendiaram a imaginação de jovens leitores, preparando o terreno para a contracultura que viria na década de 60.

Essas mudanças do cenário cultural fazem a indústria do entretenimento buscar o espontâneo na “autenticidade”, não mais na representação de emoções, mas nas “emoções autênticas”, “brutas”, colocando em xeque todos os paradigmas do Star System e das celebridades. Talvez o embrião dessa mudança de paradigma esteja no famoso “Método” da Actors Studio.
A indústria do entretenimento criará a forma mais invasiva e perniciosa de prospecção e captura da espontaneidade: a diluição das fronteiras entre público e privado

Criada em Nova York em 1947, a partir de uma leitura particular da teoria do ator em Stanislawsky, a Actors Studio cria a proposta de que o ator não deve apenas representar, mas ser o próprio personagem a partir de um complexo método composto por exercícios físicos e psicológicos. Para dar espírito e autenticidade às verdadeiras formas-pensamento que são os personagens, o ator deve arrancar do seu psiquismo diversas personas arquetípicas. O brilho e magnetismo revolucionários de Marlon Brando e James Dean (egressos da Actors Studio) nos anos 50 expõem uma espécie de animismo do ator: assim como no Espiritismo se chama de animismo a interferência do espírito e sentimentos do médium na comunicação (na verdade, são as personas do médium que falam e não algum espírito), vemos em filmes e teatros personagens cuja força vêm do próprio psiquismo do ator. Temos aqui o modelo gnóstico do aprisionamento das energias da alma (“espontaneidade produtiva”) para por em movimento as formas-pensamento e estruturas criadas pelo Demiurgo.

O resultado pode ser tanto a condição esquizofrênica do ator (a identidade se dilui na variedade de personas arquetípicas necessárias para dar vida a diferentes personagens) ou o ator que interpreta a si mesmo.

A indústria do entretenimento criará a forma mais invasiva e perniciosa de prospecção e captura da espontaneidade: a diluição das fronteiras entre público e privado, ficção e realidade. Doravante, as perversões privadas se transformarão em virtudes públicas. Se no esquema das celebridades os escândalos eram eventos metodicamente criados para conquistarem visibilidade na mídia, agora esses escândalos ganham espontaneidade e autenticidade: ao interpretarem a si mesmos, atores, apresentadores e diferentes personagens midiáticos estendem a ficção para a vida privada.

Por exemplo, atores como Jack Nicholson (também egresso da Actors Studio), Mickey Rourkey e Julliete Lewis estendem para vida privada os problemas dos personagens desajustados e potencialmente psicóticos vividos por eles nas telas (e fazem questão de expor isso em canais como E! Entertainment). Ou não será o contrário, a “autenticidade” das suas performances ficcionais sendo alimentada pelos aspectos sombrios dos seus psiquismos?

Reality Show: a última fronteira

Em 1991 a NASA põem em prática o Projeto Oracle. Esse experimento consistiu em colocar em imensos hangares de vidros, erguidos numa área em Tucson, no deserto do Arizona, quatro homens e quatro mulheres, 3.800 espécies animais e vegetais e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra. Lá ficaram durante dois anos monitorados por dois mil sensores eletrônicos e assistidos por 600 mil pagantes.

Esse experimento incendiou a imaginação da indústria do entretenimento. É a própria materialização da mitologia gnóstica que narra o Demiurgo aprisionando o homem numa realidade artificialmente construída para monitorá-lo, perscrutá-lo, para sistematicamente acompanhar a manifestação do espontâneo e do autêntico (partículas de Luz) para seduzi-lo e, finalmente, isolá-lo e instrumentalizá-lo.

Tematizado criticamente em filmes gnósticos como Cidade das Sombras (Dark City, 1998) e Show de Truman (Truman Show,1998) o crescimento vertiginoso dos Realities Show (e as variações como “pegadinhas”, “vídeo-cassetadas” ou “o povo fala”), inspirado no Projeto Oracle, expande a tendência de fundir público/privado, ficção/realidade: esquadrinhar todas as perversões privadas para expor publicamente como virtudes, autenticidade, espontaneidade. Compulsão, impulsividade, hipocrisia, alienação, paranóia, psicose etc., que emergem dos indivíduos em ambientes midiáticos artificialmente criados, é a espontaneidade espiritual (partículas de Luz) convertida em formas produtivas e regressivas para a manutenção da indústria do entretenimento.

O complexo midiático encontra, no final, a solução mais barata, rápida e lucrativa para capturar a espontaneidade: nada de atores, Métodos ou complexas estratégias cênicas ou dramatúrgicas. Pegam-se pessoas comuns ou candidatos a celebridades e as confinam ou em ambientes artificialmente construídos ou expostos diante das câmeras, pegas de surpresa.

No final, o público identifica-se e ri sardonicamente dessas situações porque, no fundo, é a materialização de toda a mitologia gnóstica da condição humana nesse mundo: exilados e prisioneiros, observados por um Demiurgo que as seduz com a possibilidade de adquirirem o poder que as retire daquela situação.

Espontaneidade ou Sensacionalismo?

As críticas tradicionais feitas à indústria do entretenimento como “sensacionalista” ou “anti-ética” são, dessa maneira, moralistas e inócuas. O sensacionalismo nada mais é do que a espontaneidade tornada produtiva, isto é, confinada nas estruturas-clichê ou scripts pré-definidos. O sensacionalismo tende a transformar o espontâneo e o autêntico em grotesco. Devem se tornar regressivos e perversos para animar formas-pensamento que nos façam rir de nós mesmos, que confirmem algo que já desconfiamos sobre nossa existência: a de sermos prisioneiros em um gigantesco reality show cósmico. A ironia é que essa confirmação não trás crítica ou indignação, a não ser o riso sardônico.

Ético seria a espontaneidade libertar-se no jogo e no lúdico. Mas isso explodiria a lógica das estruturas do entretenimento que visam canalizar essas energias espirituais a uma finalidade mercantil e lucrativa. Talvez, como provocativamente afirmava o crítico francês Jean Baudrillard, na atualidade a única espontaneidade esteja no terrorismo pela absoluta inutilidade política ou estratégica desses atos: não visam a tomada de poder, a não ser a de atrair as ondas concêntricas da mídia explodindo (literalmente) os scripts das motivações racionais da Política.

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sexta-feira, junho 18, 2010

Uma Pequena História Gnóstica da Espontaneidade na Indústria do Entretenimento (parte 1)

Se a Indústria do Entretenimento repete o mesmo drama cósmico descrito pelas mitologias gnósticas (o Demiurgo aprisionando seres humanos na tentativa de extrair de nós as partículas de Luz para por em movimento um cosmos desde o início decaído) precisamos traçar essa mesma trajetória no interior das mídias. Procurar fazer uma história das formas como o entretenimento tenta capturar e reter a espontaneidade de forma instrumental.

Em duas postagens anteriores (veja links abaixo) abordamos a questão da espontaneidade na indústria do entretenimento pelo ponto de vista gnóstico. Nossa tese é a de que a busca pela espontaneidade pela indústria do entretenimento para torná-la produtiva no interior das estruturas-clichês (dar “vida” ou “sensações” às formas vazias e inertes que perigosamente tendem à entropia – a apatia do público) reproduz numa escala micro um drama cósmico descrito pelas mitologias gnósticas: a luta do Demiurgo em aprisionar o ser humano para extrair dele as partículas de luz que animem as formas etérias a partir das quais o cosmos físico foi construído. Por ser uma cópia imperfeita da Plenitude (Pleroma), a partir do momento que foi “construído” e não “emanado”, tende à inércia ou entropia.

Pois bem, cabe agora traçarmos uma pequena história da espontaneidade na cultura de massas, procurando mapear as sucessivas fases e estratégias pelas quais a espontaneidade do público é apropriada e representada nos produtos

Mas, antes disso, temos que definir o que entendemos por “espontaneidade”. Para a mitologia gnóstica é a forma pela qual as partículas de luz (memórias das nossas verdadeiras origens não nesse cosmos, mas no Pleroma) se manifestam no cotidiano: alegria, boa-fé, disposição, brilho, vitalidade, confiança etc., isto é, sentimentos e disposições que põem em movimento nossas vidas não em um sentido instrumental (em função de metas, objetivos, eficiência, eficácia ou “pensamento positivo”, como preconiza a literatura de auto-ajuda). Pelo contrário, tomamos a espontaneidade no aspecto do “jogo” e do “lúdico”.

Ao remeter esse conceito a esse universo, lembramos de imediato das brincadeiras infantis, onde a espontaneidade ainda manifesta-se livremente. Mas tomamos o jogo e o lúdico não no sentido que o adulto faz como “irresponsabilidade feliz” ou “algo não sério”. Para Richard Sennett o jogo é uma coisa séria:

“(...) é o princípio que leva a criança a investir muita paixão numa situação impessoal comandada por regras e a pensar a expressão, nessa situação, como uma questão de refazer e aperfeiçoar tais regras para dar maior prazer e promover uma sociabilidade maior junto aos outros” (SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público, S. Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 384.)

No jogo as crianças investem muita paixão em regras absolutamente impessoais, criam um mundo de fantasia para criar prazer e sociabilidade. Levam a sério o jogo não no sentido instrumental ou tático de buscar a vitória procurando entender metodicamente as regras para entender a mecânica do jogo e nunca perder. No jogo aceitamos a experiência, seja boa ou má, vitória ou derrota. A paixão está no desenvolvimento das regras (quando mais prolongado for o jogo, mais prazer) e não no objetivo final Ao contrário do adulto que renega a experiência escondendo-se em estruturas ou estratégias que o mantenha protegido da ameaça da experiência (incerteza, perda, etc.) Esconde-se no clichê para fugir do imprevisível e do perigoso.

Entretenimento e Espontaneidade

Definida a noção de espontaneidade, vamos partir para a história das suas relações com o entretenimento.

Para Neal Gabler no livro “Vida: o Filme” o entretenimento como indústria e, mais do que isso, como fenômeno que vai estruturar a própria experiência, surge nos EUA. Assim como a Suíça exporta chocolate e a Holanda tulipas, os EUA exportarão entretenimento.

Suas origens mais profundas talvez estejam no protestantismo evangélico cuja prática religiosa era em si bastante divertida: fiéis tomados por ataques de catalepsia, convulsões, visões, explosões de riso e cantorias, além de sermões carregados de histórias bizarras, relatos de assassinatos cruéis e deformidades para que os fiéis sentissem nos próprios ossos a esperança, convicção e culpa. Essas histórias, mais tarde massificadas em tablóides e literatura popular, seriam a extensão desse fenômeno religioso tipicamente norte-americano.

Aqui, o entretenimento está associado com as sensações: o inusitado, o bizarro, o inesperado. Estas manifestações espontâneas do cotidiano estão associadas ao Fantástico, ao Mistério. Circos e parques de variedades que expunham deformações humanas serão a base dos arquétipos e iconografia modernas dos filmes de terror e suspense que darão movimento às estruturas-clichê desses gêneros.

Com a entrada da fotografia, cinema e, mais tarde, TV, esse potencial sensacional, teatral e imagético do entretenimento realiza-se tecnologicamente. Nessa primeira fase dos meios visuais e audiovisuais, quando não havia ainda uma linguagem estruturada pelo mundo dos negócios, temos a presença do espontâneo pela relação ainda “desajeitada” ou “disfuncional” do homem com as novas tecnologias de então.

Por exemplo, nas fotografias do século XIX as pessoas parecem ser mais “feias” do que nas fotos atuais por elas ainda não terem em mente a noção de pose e iluminação. Na verdade, eram fotos mais espontâneas do que as atuais.

No cinema ainda havia espaço para uma relação diretor-ator ainda não codificada pelo ritmo da linha de montagem. Por exemplo, na autobiografia da atriz Mae Marsch ela faz um relato das instruções passadas pelo diretor D W Griffith em uma cena em que ela deveria representar medo e pânico. Um diretor convencional diria “Grite!”.

“O Sr. Griffith, ao contrário, perguntou-me se eu já tinha sentido alguma vez na vida medo ou susto. ‘Sim’, eu disse. ‘O que você fez então’,perguntou-me a seguir. ‘Eu comecei a rir’, respondi. Ele soube imediatamente do que se tratava (...) Eu creio que a risada histérica era muito mais expressiva do que os olhos virando ou as lágrimas.” (Citado por PROKOP, Dieter. “O Trabalho com Estereótipos: os filmes de D. W. Griffith”, In: MARCONDES FILHO (org.) Dieter Prokop. Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo: Ática, p.64.)


Com a consolidação do entretenimento como indústria a partir dos anos 30 e o ajuste definitivo do homem e a nova tecnologia temos o desenvolvimento de uma linguagem (estrutura-clichê) específica para cada mídia e gênero, surgindo a necessidade crescente da prospecção da espontaneidade do público.

A primeira estratégia foi a criação do Star System ou a promoção dos atores como “estrelas” (para a visão gnóstica a expressão não é mera coincidência: expressa o desejo secreto de capturar a luz, “estrela”, brilho, para por em movimento o entretenimento). Os produtores logo perceberam que o público reconhecia seus atores preferidos e lhes dava apelidos afetuosos (Mary Pickford a “menina dos cachos” - veja foto ao lado -, Jane Harlow a “vênus platinada”). Não tardou transformar esses atores em estrelas ao explorar o fascínio do público pelas idiossincrasias ou características espontâneas ou únicas, transformando-os em deuses de um Olimpo, isto é, “olimpianos”.

Celebridades e o Ciclo Vicioso da Indústria do Entretenimento

A segunda estratégia foi a da criação das “celebridades”. A exposição das estrelas torna-se mais aprofundada ao procurar no cotidiano delas escândalos, manias, hobbies inusitados, enfim, tudo que desse espontaneidade a atores que já entediavam o público. Logo as estrelas perceberam o mecanismo que produzia a constante exposição nas mídias e passaram deliberadamente, por meio de relações públicas ou jornalistas, a produzir acontecimentos ou eventos para alcançar espaços midiáticos cada vez maiores.

Isso vai criar um ciclo vicioso, uma armadilha para a indústria do entretenimento na busca pela espontaneidade:
“O resultado foi transformar a sociedade num gigantesco efeito Heisenberg, em que a mídia não estava relatando o que as pessoas faziam; estava relatando o que as pessoas faziam para obter a atenção da mídia. Em outras palavras, à medida que a vida estava sendo vivida cada vez mais para a mídia, esta estava cada vez mais cobrindo a si mesma e a seu impacto sobre a vida” (GABLER, Neal. Vida, o Filme. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 97).

A celebridade é tautológica, como definiu nos anos 60 Daniel Boorstin em seu livro seminal "The Image: a guide of pseudoevents in America": “a celebridade é uma pessoa que se caracteriza pela sua notoriedade”. É famosa porque é muito conhecida!

Na verdade, as celebridades, com suas poses, jeito de jogar o cabelo, bocas com os lábios entre-abertos etc., vão reproduzir os clichês imagéticos do cinema e da publicidade.

Se o cinema explorava a espontaneidade por meio do Star System, a Publicidade vai buscar o espontâneo no erotismo, crianças e animais. Quando Marilyn Monroe, talvez uma das primeiras celebridades, se expôs com o seu sex appeal para capturar a atenção das lentes e câmeras, já replicava caras e bocas, outrora espontâneos, do repertório imagético publicitário das pin ups.

A indústria do entretenimento cria uma cilada para ela mesma, um efeito secundário imprevisto: todo esforço em captar a espontaneidade de situações cotidianas no cinema e publicidade (como nas imagens de Norman Rockwell tentando capturar instantâneos da rotina da vida interiorana dos EUA nas capas da “Saturday Evening Post”) resultou num repertório de iconografias, verdadeiras táticas para atrair a atenção de repórteres, promoteurs e produtores. E isso não apenas no campo frívolo das celebridades. Eventos políticos e econômicos surgem em tons exagerados para se igualar ao script dos dramas ficcionais e atrair a atenção das mídias. Os eventos terroristas são aqueles que melhor comprovam essa tese.

A prática jornalista mais preocupada com a “linguagem” do que com o fato demonstra isso: o repórter vira um diretor de cena, conduzindo o entrevistado ou o fato para torná-lo mais “noticiável”, “telegênico” ou “emocionante”.

Em decorrência, a espontaneidade desaparece e a indústria do entretenimento alcança perigosamente o limite do tédio, inércia e perda de interesse. Era necessário renovar as estratégias midiáticas de busca por novos tipos, situações, instantâneos e sensações. Mas isso é assunto para a próxima postagem.

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    domingo, junho 13, 2010

    Sid Vicious, Zina e Charles Wikipedia: o Demiurgo sabe que temos algo especial

    A trajetória desses três personagens repete o mesmo drama arquetípico da mitologia gnóstica: espontaneidade e vitalidade intrumentalizadas para dar vida a estruturas-clichê da indústria do entretenimento ameaçadas pela inércia, assim como, no plano cósmico, o Demiurgo confina o ser humano para extrair dele partículas de Luz para por em movimento um cosmos caótico e ameaçado pela entropia.

    Qual a semelhança entre os personagens citados acima no título dessa postagem? Podemos considerar os três como exemplos da espontaneidade e inocência explorados como formas de injetar energia ou conteúdo “espiritual” as estruturas-clichê estáticas e vazias da indústria do entretenimento. Cada um ao seu tempo, foi pinçado do anonimato por suas características únicas: espontaneidade, boa-fé, alegria, entrega. Únicas no sentido de que neles essas características presentes em cada um de nós estava mais aflorada, prontas para serem fisgadas e confinadas em plots ou scripts desenvolvidos pelas mídias.

    Como já discutimos em postagem anterior, essa é a narrativa de um drama mítico gnóstico: o Demiugo, divindade decaida e artífice dos reinos inferiores ou materiais, inebriado pelo poder e onipotência por crer ser o único deus, cria o cosmos físico como uma cópia imperfeita dos mundos superiores (O Pleroma). Imperfeita por que criou apenas a forma, necessitando da vitalidade da Luz espiritual (sabedoria) para dar propósito ou sentido ao universo caótico. Por isso o homem é mantido aprisionado nesse cosmos por meio da força de reencarnação e pelas ilusões (racionalizações da Ciência, o consolo da religião e a sedução por meio do poder e sensualidade) para criar um conflito cósmico em torno da posse das partículas de Luz (reminiscência dos reinos superiores existente no interior do espírito humano): de um lado o Demiurgo querendo possuí-las para tentar equiparar as suas criações com as emanações do Pleroma e, do outro, Sophia (“mãe” do Demiurgo que o concebeu de forma “ilegítima”ao emaná-lo do Pleroma) querendo resgatar o homem de volta as suas origens, tentando converter a Luz em sabedoria (gnose).

    A indústria do entretenimento repete numa escala micro essa drama cósmico (certamente porque o complexo midiático é mais um instrumento do Demiurgo).

    Se observarmos a trajetória de Sid Vicious, Zina e Charles Wikipédia veremos a recorrência de uma característica: eles entram em cena em momentos em que as estruturas de entretenimento começam a ser ameaçadas pela inércia dos clichês. A espontaneidade (humor, alegria, raiva, imprevisibilidade etc.) é injetada nas estruturas que ameaçam paralisar para dar sobrevida aos negócios e aos compromissos firmados pelas linhas de produção.

    Sid Vicious


    Quando John Ritchie (mais conhecido por Sid Vicious) foi convidado pelo empresário Malcom McLaren para assumir o baixo (?) da banda Sex Pistols, a cena Punk já se esvaziava em novidade, inovação e dinamismo. Nascido em bares e casas noturnas de Detroit e Nova York no início dos anos 70 com bandas como MC5 e nomes como Iggy Pop, era uma cena underground, cheia de energia e espontaneidade que rompia com o imobilismo que chegava toda a psicodelia dos anos 60 (na época, já encampada pelo mainstream fonográfico).

    Quando se fala na “explosão do Punk” em 1977, na verdade é o momento em que a indústria do entretenimento confina essa cena musical num script para consumo. Sex Pistols e seu empresário Malcom McLaren é o exemplo mais evidente dessa época. A banda já existia desde 1975. McLaren pressentia a estagnação final do Punk Rock na repetição das mesmas atitudes até chegar ao ódio e rebeldia sem causa. John Ritchie, fã da banda Sex Pistols, segundo relatos da época, era um completo alienado, desajustado, desempregado, silencioso, fechado, sem falar coisa com coisa. Em seu talento empresarial, McLaren viu nele a possibilidade de um novo script, visceral, uma “bomba atômica em potencial”.

    Levado ao palco, sem saber tocar uma nota no instrumento dado a ele e complacente, assume o script e torna-se o ícone-clichê do punk no apagar das luzes dessa cena musical. Porém, nem tudo pode ser estrutura, ícone ou clichê na indústria do entretenimento. John Ritchie transformado em Sid Vicious tinha, na sua alienação e desajuste, o brilho e a energia necessárias para dar sobrevida a formas que se esvaziavam. Dinheiro e drogas fáceis o cooptaram, ilusões necessárias para que assumisse o script oferecido. Mas, se toda ideologia tem o seu momento de verdade (como dizia Theodor Adorno), sua verdade era a espontaneidade e imprevisibilidade, energias que trariam novidades (nem que fossem escâdalos) para dar movimento a um cenário musical moribundo.

    Zina e Charles Wikipedia

    Para quem assiste o programa "Pânico na TV" desde o seu início em 2003 sabe que o personagem Zina surge num momento de transição no estilo e linguagem dessa atração da Rede TV. Enquanto esteve no “underground”, escondido na programação nas noites de domingo, era uma atração marcada pela espontaneidade, surpresa e humor metalingüístico feito em cima da própria linguagem televisiva, chegando a lembrar clássicos dos anos 80 como “Perdidos na Noite” (início do Fausto Silva) e “Fábrica do Som” (com Tadeu Jungle).

    Havia quadros como “A Hora da Morte” (vídeo-cassetadas levadas ao paroxismo) e humor metalingüístico que lembravam o clássico grupo inglês Monty Phyton (como telejornais onde o áudio era gravado de trás para frente e o vídeo no sentido normal e o personagem César Polvilho, desmontando os clichês do mainstream do telejornalismo). A estrutura-clichê deixa de ser questionada após quatro anos para se acomodar em piadas em cima de celebridades. O Personagem César Polvilho desaparece para transformar-se em repórter que persegue celebridades e tenta ser penetra em festas das colunas sociais.

    Torna-se evidente o crescimento do clichê “o povo fala” (jargão jornalístico para entrevistas rápidas com populares na rua) na busca de injetar energia e humor que já faltava ao programa, engessado que estava na estrutura-clichê após chegar ao mainstream televisivo. Numa dessas surge Zina, o “poeta de uma palavra só” (“Ronaldo!”). Olhar fixo, alienado, desajustado etc., um “freak” perfeito na busca de espontaneidade e improviso que já havia desaparecido.

    Charles Wikipedia é a bola da vez. Com um olhar não tão fixo, mas igualmente perdido e vago, com inúteis conhecimentos e memória enciclopédica. Outro personagem descoberto em um “o povo fala”, é colocado no mesmo script da cobertura da festa com celebridades. Sua alienação e inutilidade da sua memória são formas de injetar energia e alguma graça em clichês já vazios e desgastados.

    Por que rimos ou ficamos fascinados por esses personagens? Duas hipóteses: ou Adorno tinha razão ao dizer que rimos do fato de não termos mais nada para rir, isto é, o nosso riso é sado-masoquista ao vermos no outro o mesmo drama em que vivemos; ou a nossa fascinação vem do fato de que esses personagens desajustados, disfuncionais e alienados nos fazem inconscientemente lembrar nosso próprio drama cósmico, como exilados aprisionados em estruturas das quais desejamos escapar.

    Tal como no filme “O Show de Truman” onde o demiurgo diretor de TV Christof tenta manter Truman aprisionado na gigantesca estrutura cenográfica do Reality Show. Truman era o único personagem espontâneo e real. Antes de conseguir escapar do programa, Christof tenta dissuadi-lo a ficar: “Mas você inspira milhões de telespectadores!”. Talvez a reposta seja a combinação dessas duas hipóteses.

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    sábado, junho 12, 2010

    A TV Globo confirma a existência da Ad-Gnose

    A exibição de chamadas para a série da emissora intitulada "Sagrado" com críticas ao consumismo no meio do intervalo publicitário proporciona momentos impagáveis de absoluto non-sense. Porém, passado o prazer da ironia, a aparente ausência de sentido reflete transformações profundas que estão ocorrendo nos subterrâneos da sociedade de consumo e na Publicidade

    Estava zapeando pelos canais de TV quando, para minha surpresa, me detive diante da imagem de um líder budista brasileiro tecendo alguns comentários sobre os males do consumismo: desejar além do que necessitamos, religiões contaminadas por ondas de consumo, sede de consumo desenfreado, sociedade consumista que valoriza o acúmulo de bens materiais e assim por diante. Pregava-se o “consumo consciente”, em plena tarde da programação da TV Globo, no intervalo publicitário do programa “Video Show”, em meio a muitos anúncios de produtos cuja técnica de persuasão é a da compulsividade e viciosidade . Ao final do vídeo, a assinatura com os logotipos da Fundação Roberto Marinho, TV Globo e do canal Futura.

    Quase caí para trás, num misto de surpresa e risada, diante do absoluto non-sense do que acabava de testemunhar. Quase perdi o fôlego, recuperei-me e pensei: Como pode a emissora de TV, cuja inserção publicitária é a mais cara da mídia nacional, repentinamente cair numa auto-consciência ética e fazer a mea-culpa sobre os males espirituais da sociedade de consumo?

    Mais tarde descobri que aquele final de vídeo que tinha assistido fazia parte de chamadas para uma série que a TV Globo e o Canal Futura lançarão chamada “Sagrado” (clique aqui para ler a notícia no portal da emissora). A série discutirá diversos temas como violência urbana, sexualidade urbana, liberdade de expressão e ... consumo consciente!


    Depois, fui procurar no You Tube mais vídeos de chamadas para essa nova série e me deparei com outro momento absolutamente non-sense e impagável: a atriz Juliana Paes (notabilizada, entre outras coisas, pela aparição em comerciais de cervejas que fazem associações metonímicas entre mulheres gostosonas e cervejas geladas) dizendo que “o homem é o único animal que bebe sem ter sede, come sem ter fome...” para introduzir o tema sobre o consumismo!

    Como entender esta ironia? Para além de qualquer preocupação mercadológica da TV Globo em agregar valores como responsabilidade social e preocupação comunitária à sua imagem, há algo mais profundo. Esse aparente non-sense ou hipocrisia da emissora é o reflexo de um movimento mais profundo das transformações da publicidade e da própria sociedade de consumo: a ascensão da Ad-Gnose como nova forma mais “espiritualizada” de lidar com o consumo.

    Como vimos em postagens anteriores (veja links abaixo), a Publicidade contemporânea está entrando numa nova fase com técnicas persuasivas e motivacionais menos hard (comportamental, subliminar etc.) e muito mais “espiritualizadas” (exploração de simbologias, iconografias e temas arquetípicos, elementos do inconsciente coletivo) . Ao lado da Tecnognose e das tecnologias do espírito (auto-ajuda, auto-conhecimento e estratégias motivacionais), a Ad-Gnose (Advertising + Gnosis) propõe que o consumo seja menos o de produtos tangíveis e muito mais a oportunidade de experiências “emocionais”, “espirituais” e de “auto-conhecimento”.

    Nos vídeos publicitários a presença física do produto tende a desaparecer ou ser deslocada para segundo plano, colocando em destaque narrativas com temas míticos, fantasias, analogias etc. O consumo seria muito menos um ato de acúmulo e ostentação e mais uma oportunidade de buscar um atalho para a iluminação espiritual: comprar-consumir-espiritualizar-se. A gnose sem disciplina, conhecimento, confronto com o status quo ou questionamentos. Um autêntico atalho. Spiritual Delivery!

    Vimos que essa transformação do paradigma do consumo está relacionada com uma necessidade decorrente das próprias transformações da infra-estrutura econômica: os produtos tornam-se cada vez mais parecidos numa economia cartelizada com empresas concentradas em grupos cada vez menos numerosos. Arquétipos são explorados para, ao mesmo tempo, simular diferenciação e concorrência entre produtos por meio da imagem e injetar energia em estruturas-clichê vazias por meio da exploração de autênticos conteúdos espirituais dos desejos e aspirações arquetípicos da humanidade.

    Nesse contexto, passa a fazer sentido a repentina consciência ética da TV Globo: as tradicionais críticas contra a sociedade de consumo foram definitivamente absorvidas pelo mainstream porque o consumo deixou de ter, há muito tempo, um caráter materialista. Lamas, budistas e umbandistas são colocados na série “Sagrado” criticando os valores inautênticos da sociedade consumista porque essa crítica já foi cooptada há muito pelo capitalismo. Isso porque o consumo deixou de ser materialista e se deslocou para esferas mais espirituais.

    Sob a fachada da consciência crítica e ética, o discurso do “consumo consciente” é o último hit que sustenta as transformações radicais que estão ocorrendo nos subterrâneos da sociedade de consumo e na Publicidade. Mais do que isso, talvez estajamos diante de uma estratégia pedagógica generalizada para educar os consumidores aos novos tempos menos "materialistas" da Publicidade. O "espiritual" na Ad-Gnose é muito menos transcendência e mais imanência. Sob a aparência do aprendizado espiritual esconde uma mais sofisticada e invasiva estratégia, dessa vez indo mais além do que o comportamento e o psiquismo: a alma.

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    domingo, junho 06, 2010

    Série Lost, Última Temporada: Trapaça do Roteiro ou Mitologias Gnósticas?

    Lost termina com seus fãs divididos: de um lado, aqueles que se sentiram traídos pelos roteiristas da série e, do outro, aqueles que não se incomodoram com enigmas não explicados pela série. Mas o interessante de Lost não está na ansiedade pelas soluções cartesianas que o roteiro poderia resolver ao final, mas nos grandes simbolismos ou mitologias que surgem justamente nessas lacunas da narrativa.

    De todas as discussões em fóruns na Internet e em grupos de fãs da série televisiva norte-americana Lost, as opiniões se dividiram basicamente em duas tendências: a primeira que viu a série como uma grande trapaça dos roteiristas: ursos polares que aparecem em selvas tropicais, hieróglifos egípcios que aparecem em ruínas de uma civilização antiga na ilha, os “Outros” que falavam em latim, bases polares onde se fala em português etc, todos e outros numerosos enigmas ficaram soltos e sem explicação na trama. A solução final, aliás esperada, de que todos já estavam mortos (suspeita ampliada com os flashfowards da sexta temporada), pareceu um “Deus Ex-Machina” (termo para designar soluções arbitrárias, sem nexo ou plausibilidade na narrativa, para solucionar becos sem saída encontrados em roteiros mal conduzidos).

    A segunda tendência defende que os mistérios devem permanecer, faziam parte do charme ou dos pressupostos da série Lost. Os mistérios deixados sem explicação só fizeram acentuar que o enigma da ilha é muito antigo, tão antigo quanto a própria espécie humana, portanto, impossível de serem explicados em seis temporadas em uma série televisiva. Na verdade, o desenlace final (ou a pergunta final de Jack: “Estamos indo para onde?) seria apenas a ponta do iceberg, o aspecto visível de uma trama cósmica que vai além da compreensão humana. Em síntese, o Mistério por trás daquela enigmática igreja onde os protagonistas da série se reúnem ao final, aparentemente católica, mas, pelos vitrais (com simbolismos de todas as principais correntes místico-religiosas – cristianismo, islamismo, judaísmo, taoísmo, budismo etc.), uma igreja especial, de caráter ecumênico (veja foto abaixo).


    Vamos esquecer, portanto, todos os pequenos mistérios e enigmas lançados ao longo das temporadas da série (aliás, é disso que vive o roteirista). Vamos deixar de lado nossa tendência cartesiana de querer que um roteiro esgote todas as explicações e feche-se em si mesmo. Vamos nos concentrar nos grandes arquétipos ou simbolismos trabalhos pela série: personagens presos em uma ilha querendo escapar, cada um deles com um passado do qual queriam também escapar, esquecer. Todos sincronicamente reunidos num vôo que não terminará. Um acidente aéreo os fará cair numa ilha perdida em algum lugar no tempo e no espaço. Todos (a ilha e suas vidas) em estado de SUSPENSÃO.

    Estamos lidando com um arquétipo gnóstico do VIAJANTE, estado alterado de consciência que possibilitará a gnose (iluminação) por meio do estado da suspensão (anulação do pensamento racional, algo próximo ao mantra ou meditação). Jacob, Desmond, Locke e, no final, Jack, foram crentes: renunciaram suas racionalidades para se dedicarem a mantras repetitivos para “salvar o mundo” (apertar botões, defender cavernas com luzes etc.).

    No episódio 16 (em minha opinião o mais importante de toda a série pois sintetiza a gênese e a comogonia da Ilha), temos o forte simbolismo gnóstico da Luz e do cosmos que aprisiona a todos. Filhos de uma mãe assassinada pelo Demiurgo (uma mulher que guarda o segredo da Luz que mantém a existência da Ilha) estão presos na Ilha. Sua madrasta tenta mantê-los a todo custo na ilha dizendo que nada existe fora dela. Tal qual na mitologia gnóstica, o cosmos que nos aprisiona é um constructu constituído por formas vazia postas em movimento pelas partículas de Luz presentes em cada ser humano. Quando a madrasta apresenta o mistério da Ilha (a Luz confinada numa caverna que mantém a existência da Ilha) diz: “esta Luz também está no interior de cada um de nós”. Tudo que o irmão de Jacob quer é “voltar para casa”. Ele descobre que aquela ilha não é o seu lugar (assim como os humanos no cosmos físico) e se une a um grupo de “cientistas” (“homens que se preocupam em saber o funcionamento das coisas”) que querem roubar aquela Luz (abrir a “rolha” que confina a todos na ilha).

    Aqui começa uma nova simbologia arquetípica explorada pela série: o gnosticismo alquímico versus gnosticsimo cabalístico. Como já discutimos em postagem anterior (ver abaixo links sobre postagens relacionadas), as narrativas gnósticas simbolizam esta ansiedade humana em transcender a própria carne e superar as limitações físicas e existenciais do espírito. Duas soluções são apresentadas: de um lado o atalho da tecnociência cabalística (a “tecnognose”) representada na série pelo manipulativo Projeto Dharma e a pretensão do irmão e antagonista de Jacob (a “fumaça preta”) de escapar da Ilha a partir do momento que consiga afundá-la (apagando a Luz do “coração da Ilha”). O passado tem que ser simplesmente descartado, esquecido. A carne, a existência física, deve ser simplesmente desprezada e eliminada, sem nada aprender da sua memória (dor, sofrimento etc.).

    Do outro lado, a transcendência alquímica: Jack no final restabelece a Luz na Ilha, pouco antes da sua morte. Simultaneamente, no flashfoward, a revelado pelo seu pai a verdade: todos morreram (cada um no seu tempo) e se reuniram inconscientemente naquela espécie de existência paralela (ou um limbo). Cada um viveu o período mais importante da sua vida naquela ilha, todos junto. Portanto, como explicou o pais de Jack, todos estão ali juntos, vivendo naquele limbo, para relembrarem e, depois, esquecerem. Devem compreender o passado (perdoar uns aos outros, por exemplo, como o fez Hugo com Linus) para prosseguir em frente, superando e prosseguindo nas suas jornadas espirituais.

    Tal como na Alquimia onde a matéria deve ser redimida e não simplesmente descartada, em Lost todos estão em estado de suspensão à espera do momento da iluminação (gnose) que, como vimos, surgiu em momentos intuitivos como flashs, deja-vus. A iluminação veio da redenção (compreensão do que se passou na Ilha). A simples destruição daquela ilha, como pretendia a “fumaça preta” não, propiciaria essa compreensão.

    Em síntese: o penúltimo e último episódios da última temporada pelo menos conseguiram amarrar fragmentos de elementos gnósticos soltos ao longo da narrativa (multifacetamento da realidade, realidade vista como um constructu, suspensão, paranóia, confusão entre realidade e projeção psíquica etc.).

    Por isso, o interessante de Lost não está na ansiedade pelas soluções cartesianas que o roteiro poderia resolver ao final, mas nos grandes simbolismos ou mitologias que surgem justamente nessas lacunas da narrativa.

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    quinta-feira, junho 03, 2010

    Ad-Gnose e Tecnognose: Atalhos para Satori

    Ad-Gnose (Advertising + Gnosis) e Tecnognose: duas promessas de espiritualização no horizonte cultural. Espiritualização rápida, indolor, sem contradições ou confrontos. Depois do "aqui está o produto. Compre-o!", agora a Publicidade diz: "aqui está a oportunidade de renovação espiritual!". Mais uma vez a energia espiritual deve ser capturada para dar movimento às formas vazias e inertes da indústria do entretenimento.

    Certa vez Theodore Roszak no seu trabalho “From Satori to Silicon Valley” ironicamente sintetizou a motivação mística por trás das novas tecnologias computacionais: “um atalho para Satori” (Satori – termo japonês budista para “iluminação”, atingido com esforço doutrinário ou disciplinar).

    Para além do discurso utilitarista ou racional das novas tecnologias (eficiência, redução de custos e tempo, eficácia etc.), a motivação mística ou gnóstica aparece como um subtexto: como a possibilidade de uma experiência de superação dos limites corpóreos, habitar o tempo, transcender ao ciberespaço e abandonar a imobilidade do espaço e da carne. As novas tecnologias possibilitariam a experiência da gnose, porém, sem ascese, disciplina ou reforma íntima. A tecnologia é o atalho puro, o mais rápido para ansiedade atávica da espécie em escapar desse cosmos físico. Em postagens anterioras (ver abaixo as postagens relacionadas) discutimos que esse gnosticismo está imbuído de princípios cabalísticos no sentido de desprezar o mundo material per si, sem redimi-lo, encarando a carne e a própria materialidade como um golem, caos, disformidade, algo queadeve ser simplesmente descartado.

    Mas outra espécie de tecnologia surge no horizonte da cultura: as tecnologias (e a sua aplicação prática, a engenharia) do espírito. Sua origem está na área de auto-ajuda e autoconhecimento, formas secularizadas de uma teologia positiva, isto é, formas de auto-divinização: a partir de técnicas análogas às tecnologias computacionais (interação, simulação, rede, recursividade etc.), o ser humano se auto-conheceria (na verdade se auto-reprogramaria) para libertar-se das limitações corpóreas e existenciais, tornando-se motivado, positivo e vencedor. Adaptar-se ao mundo corporativo e dos negócios é mais do que ganhar dinheiro. É uma jornada espiritual de autoconhecimento.

    Temos aqui outro “atalho para Satori”: a partir de livros esquemáticos e muitos cursos à base de apostilas em Power Point (a simplificação da simplificação) alcançamos a gnose de forma rápida e sem perda de tempo. De novo o princípio cabalístico: nada temos a aprender com a memória da carne (a dor, traumas, sofrimentos etc.). Devem ser descartadas (ou melhor, deletadas) como se apertasse um botão em um teclado de computador.

    Associa-se a essa área a última novidade na engenharia espiritual: a Ad-Gnose. Ao explorar o vasto repertório arquetípico do inconsciente coletivo da espécie, a Publicidade vai oferecer o atalho da concretizção imediata dos anseios e desejos do inconsciente coletivo, por meio de produtos e da materialidade das imagens. O que era simbólico agora é material: mais do que comprar o produto, o fato de desejá-lo seria já uma experiência espiritual.


    As Origens da Ad-Gnose


    Há muito tempo a Publicidade deixou de ser orientada pelo princípio comportamental do “aqui está o produto. Agora compre-o!”. Desde o início a Publicidade esteve envolvida com um aspecto mágico e fetichista. Karl Marx, na obra máxima “O Capital”, já apresentava o capitalismo como uma fantasmagoria religiosa com a noção de fetichismo da mercadoria (ao invés de Deus, o homem passa a idolatrar e ser dominado pelo dinheiro, capital e mercadoria, entidades criadas pelo próprio homem). Toda a tradição da chamada “Teoria Crítica da Sociedade” vai identificar esse fenômeno na Indústria Cultural e na “Estética da Mercadoria” na publicidade (velha e nova geração da Escola de Frankfurt – Adorno, Horkheimer, Prokop e Haug). Aqui, ainda temos essa dimensão “mágica” ou “mística” ainda confinada na materialidade do produto. É como se o produto tivesse vida própria ao ser incorporado nele qualidades humanas ou mágicas de transformação. Se o homem quer essas qualidades de volta, deve adquirir o produto. Se o homem não consumir, ele estaria vazio e sem propósito.

    Ao longo do século XX a Publicidade empregou diversas táticas da engenharia espiritual: técnicas comportamentais (behaviorismo e táticas subliminares), psicológicas (motivação, gratificação, cognição, necessidades psicológicas etc.) e psicanalíticas (compulsão e dependência oral, narcisismo, voyeurismo, erotismo etc.). Mas ainda temos o psiquismo ou subconsciente atrelados à existência do produto.

    Numa economia cartelizada e caracterizada pela alta concentração das empresas em poucos grupos transnacionais, os produtos tornam-se cada vez mais idênticos, em tecnologia, imagem, função e utilização. As estratégias de diferenciação tornam-se cada vez mais superficiais, levando o produto às raias do supérfluo e da frivolidade. Por exemplo, pastas de dentes tornam-se idênticas na sua composição e função. Como diferenciá-las para “aquecer” o mercado e simular uma competição? Através da marca-fantasia e características hiperbólicas (“flúor garde”, “pró-menta”, “clean mint”, “mentol”,”Colgate total 12”, e assim por diante). Mas as figuras de retórica, embora numerosas, são finitas e se esgotam.

    A Publicidade deve dar um novo salto qualitativo: paradoxalmente fazer o produto desaparecer no anúncio, transformando-o muito menos em algo a ser adquirido do que a ser experimentado como evento, jornada, descoberta ou renovação pessoal.


    Assim como no passado onde o início da publicidade moderna originou-se no esforço em desconectar o motivo da compra do produto da sua utilidade (obliterar o valor de uso, fazendo o consumidor comprar o produto pela sua inutilidade), agora a Publicidade deve dar um novo salto qualitativo: paradoxalmente fazer o produto desaparecer no anúncio, transformando-o muito menos em algo a ser adquirido do que a ser experimentado como evento, jornada, descoberta ou renovação pessoal.

    O primeiro movimento para esse salto foi o surgimento da técnica de segmentação VALS (Values, Advertising e Life Style) idealizada pelo futurólogo norte-americano Arnold Mitchell nos anos 70 e aprimorada nos anos 90. Além da tipologia psicológica, sua grande inovação foi a expansão do conceito de consumo: consumir não é apenas comprar mas, sobretudo, desejar. Desejar valores e estilos de vida inalcançáveis pela maioria da população, porém agregando valor às marcas. Explicando melhor, o desejo frustrado da maioria faz apenas agregar valor a marcas e estilos de vida consumidos efetivamente por uma minoria.

    Marcas produzem eventos (maratonas, concursos, passeios de bicicletas etc.) com milhares de participantes que apenas desejam, mas não têm poder aquisitivo para consumir os produtos. Mas vivenciam seus desejos, agregando valor a produtos restritos a poucos. A separação entre o desejo e a aquisição imediata do produto foi o primeiro passo dessa engenharia do espírito.


    Ad-Gnose: mais um atalho para a Gnose

    Mas ainda a técnica VALS mantém um laço, ainda que tênue, entre o desejo e a aquisição produto. A frustração pelo não-consumo da maioria é o que agrega valor às marcas das minorias. Portanto, apesar dos valores e estilos de vida, o produto ainda continua lá, num horizonte potencial de consumo.


    Na Ad-Gnose temos a imaterialidade plena do produto. Para além dos valores e estilos de vida, algo mais profundo, no espírito, deve ser mobilizado: os arquétipos . Como símbolos do inconsciente coletivo aglutinadores de anseios, dúvidas e esperanças mais profundas da espécie humana, do ponto de vista gnóstico seriam a manifestação visível das partículas de Luz presente em cada um. Essa energia espiritual ou partícula de Luz em cada um de nós manifesta-se no cotidiano por meio da espontaneidade, inocência, boa-fé, bondade, compaixão, alegria, entrega e integridade de propósitos. Os arquétipos traduziriam esse élan em temas, tipologias, narrativas ou símbolos que, tal como a linguagem dos sonhos, canalizariam esse magma espiritual (Freud chamaria de Id), “materializando-o”. A compreensão e vivência do arquétipo potencialmente propiciaria a gnose e a possibilidade de transcendência e, como conseqüência, o confronto com esse cosmos material.

    Mas a Ad-Gnose não é transcendência, mas imanência, não compreende ou vivencia o arquétipo, mas instrumentaliza-o. Toda a indústria do entretenimento necessita dessa energia pra dar vida às formas vazias e inertes que estruturam seus produtos.

    Um exemplo é o filme publicitário “Gêmeos” da operadora “Oi”. Aplicando a caracteriologia arquetítipica de Carol Pearson, o filme aborda o arquétipo “O Nomal” (The Regular Guy) com o personagem do “Ligador” (veja foto acima). Pela descrição dada por essa pesquisadora, o Normal é aquele que quer estar em conexão com os outros, ser amado, querido ou, na tradução publicitária, ser popular. Como o próprio Freud já observou sobre a psicologia de massas e o mal estar da civilização, mais que a morte o que o homem mais teme é não ser amado, ficar solitário. Esse temor criaria uma armadilha que será a base da psicologia de massas: o medo da solidão conduz ao espírito gregário, querer fazer parte da maioria, anular a individualidade e o pensamento crítico.

    O que seria a Sombra do arquétipo, o filme publicitário traduz como aspecto positivo. Confina o momento de verdade do arquétipo (amor e interesse pelo outro, compaixão e solidariedade) na bajulação e conformismo. A energia do arquétipo é instrumentalizada para o objetivo mais óbvio da operadora: façam bastantes ligações para termos mais lucros.

    O subtexto na Ad-Gnose é esse: mais do que consumir um produto ou serviço, o consumo é a possibilidade de renovação ou enriquecimento espiritual. É um evento, jornada, experiência. O produto “desaparece” ou é deslocado para segundo plano para prometer ao consumidor um atalho para o enriquecimento espiritual: a gnose.

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