segunda-feira, abril 28, 2014

A Serpente do Paraíso rouba a cena no filme "Noé"

No livro bíblico do Gênesis, a história da arca de Noé tem apenas três páginas. Conhecendo o senso hollywoodiano de espetáculo e a inclinação de Darren Aronofsky em explorar complexas simbologias místicas e esotéricas, era de se esperar que o filme “Noé” (Noah, 2014) não fosse um thriller bíblico nos moldes de “Os Dez Mandamentos”. Pelo contrário, Aronofsky subverte o famoso personagem bíblico através de uma releitura gnóstica e cabalística. O diretor não só abandonou a Bíblia como transformou a Serpente do Jardim do Éden no personagem principal, trazendo para as telas a antiga versão gnóstica do mito do Paraíso, sob uma embalagem atual política e ecologicamente correta.

Quem conhece a obra do cineasta Darren Aronofsky, sabe que se pode esperar de seus filmes profundos simbolismos místicos e esotéricos. Foi assim em filmes como Pi (um thriller cabalístico onde um gênio matemático procura uma constante numérica universal), Cisne Negro (fábula gnóstica sobre a exploração da luz interior humana por um demiurgo representado pelas exigências mercadológicas de uma companhia de balé) e Fonte da Vida (uma jornada de elevação espiritual através de complexos simbolismos gnósticos e alquímicos).

  Com o filme Noé (Noah, 2014) não poderia ser diferente. Porém, desta vez Aronofsky saiu do campo dos dramas seculares traduzidos por simbolismos para entrar em uma narrativa bíblica fazendo uma releitura paradoxalmente sem referência à Bíblia: Aronofsky fez uma subversão flagrantemente gnóstica e cabalística do famoso personagem bíblico.

sábado, abril 26, 2014

Um pesadelo semiótico zumbi no filme "Pontypool"



O que acontece quando um filme sobre zumbis mistura referências a escritores como Norman Mailer e William Burroughs? Resulta em um dos mais surpreendentes e originais filmes do gênero dos últimos anos. A produção canadense “Pontypool”(2008) cruza dois insights da literatura ensaística: as coincidências sincromísticas que antecederiam eventos importantes na história e a linguagem humana como um vírus letal que parasita a humanidade. Em “Pontypool” o vírus não é disseminado pelo sangue, ar ou corpo, mas pelas palavras. O que resulta num interessante “terror semiótico”: certas palavras estariam infectadas, aquelas mais carregadas de afeto e emoção. E nos Dias dos Namorados isso pode ser fatal... Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

segunda-feira, abril 21, 2014

A crueldade do mito da infância no filme "A Caça"

Quais fronteiras que separam a criança do adulto? A racionalidade? O desenvolvimento físico? A maldade? O filme “A Caça” do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg (indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro), através de uma narrativa seca, crua e até brutal, segue o drama de um professor falsamente acusado de abuso sexual em uma escola infantil como ato de vingança de uma menina cujo beijo fora delicadamente recusado por ele. A destruição de reputações e o linchamento moral são meticulosamente abordados:  como a mentira pode se espalhar como um câncer no meio de uma comunidade, destruindo a capacidade coletiva para a razão e fomentando uma incrível crueldade e o mal em pessoas aparentemente tão decentes. Mais do que isso, “A Caça” questiona a mitologia da pureza infantil, discurso mobilizado pelos adultos para legitimar todo um sistema cultural e moral baseado numa suposta evolução natural da infância à vida adulta.

A infância talvez seja um dos mitos mais cultivados e protegidos da sociedade. Afinal, é o que sustenta todo o sistema educacional, cultural e moral: a certeza de que nascemos e evoluímos física e intelectualmente através do aprendizado, da educação seja física ou cultural.

Ritos de passagem para a entrada na vida adulta como demonstrações de destreza, coragem, força física e domínio intelectual são eventos centrais na sociedade para determinar essa fronteira que separaria a infância da vida adulta. Mas há momentos em que essas fronteiras não ficam tão evidentes, principalmente quando as crianças demonstram ter uma vida psíquica tão intensa quanto a dos adultos com desejos e fantasias que não conseguem ser explicados pela oposição simplista verdade/mentira.

domingo, abril 20, 2014

Reality show aponta para nova função social da televisão: a "TV excremental"

No momento em que mídias de convergência como Internet e dispositivos móveis ameaçam as mídias tradicionais, a TV abraça o conceito de “shows de realidade” onde especialistas nas mais diversas áreas atendem ao pedido de socorro de pais ou casais que não conseguem dar conta de filhos chiliquentos, cães maníacos, apartamentos entulhados de bugigangas ou de guarda-roupas que passaram da moda. Para sobreviver a irrupção das mídias digitais interativas e em tempo real, a TV aponta para uma mudança de função: de mídia informativa ou de entretenimento, para agenciadora das necessidades psíquicas de sacrifício, disciplina, vigilância e reenergização dos telespectadores através da violência, funções a que o pesquisador canadense Arthur Kroker conceitua como "TV excremental". O reality “Socorro! Meu filho come mal” da GNT é um caso exemplar.

Em um fenômeno de sincronismo, no momento em que terminava a postagem anterior sobre o filme Edtv (clique aqui para ler) e a discussão sobre a função social do reality show, eis que dou de cara na TV com o reality da GNT Socorro! Meu filho come mal comandado pela nutricionista Gabriela Kapim.

Há uma verdadeira febre na TV a cabo atual de programas reality com especialistas nas mais diversas áreas, de adestradores de cachorros a educadores infantis, passando personal trainers, personal stylists ou personal organizers. Super Nanny, Santa Ajuda, Pronto Socorro da Moda etc., variações do gênero reality show sempre com especialistas que recebem pedidos de socorro de telespectadores que não conseguem dar conta de filhos mal educados, cães maníacos, apartamentos entulhados de bugigangas ou de guarda-roupas que passaram da moda.

sábado, abril 19, 2014

A televisão excremental no filme "Edtv"

Ao lado de “Show de Truman”, o filme “Edtv” (1999) de Ron Howard, mais do que antecipar uma TV atual onde o conceito de reality show contamina de reportagens a programas de gastronomia e decoração, anteviu uma nova função social - a “TV excremental”. Uma televisão que há muito abandonou a pretensão de ser uma “janela aberta para o mundo” para assumir um papel fisio-psicológico: processar os excrementos psíquicos. Assim como o corpo que depois de ingerir, acumular, metabolizar e produzir tem que no final excretar para manter o ciclo vital, da mesma forma milhões de telespectadores necessitam excretar fluxos psíquicos (sacrifício, disciplina, vigilância e violência) para que o ciclo se renove no dia seguinte após um dia inteiro de alimentação e trabalho para acumulação de méritos e riqueza alheia.

Desprezado pela crítica e pelo público. Esse foi o destino do filme Edtv (1999) do premiado diretor Ron Howard (Oscar de melhor diretor em Uma Mente Brilhante, 2001) que se quer chegou a ser exibidos nos cinemas brasileiros. Muitos creditaram o fato desse filme ter caído no esquecimento à coincidência de ter sido lançado no mesmo ano de Show de Truman de Peter Weir: assim como em Edtv, também antecipava a questão dos reality show que, mais tarde, se tornaria um gênero televisivo mundial.

O sucesso de Show de Truman eclipsou Edtv, mas olhando hoje percebemos que embora tratem do mesmo objeto, a proposta de discussão é bem diferente: enquanto Weir contava a história de um protagonista cuja vida foi fabricada para ser entretenimento de milhões sem ele saber, Howard quer discutir não só a questão das celebridades instantâneas produzidas pelos reality show como também os destinos da TV em um novo milênio dominado pela cultura digital em tempo real.

domingo, abril 13, 2014

Como fazer uma notícia para um telejornal

Como o dramaturgo do Teatro do Absurdo Eugène Ionesco pode explicar o suposto escândalo da questão de uma prova de Filosofia de uma escola pública que citava a música da Valesca Popozuda? Não só explica como também fornece um método para a criação de notícias em telejornais: a estratégia de descontextualização. Mais uma bomba semiótica onde a fabricação da notícia é ordenada pela organização de fragmentos díspares em função de uma lógica que parece fazer os pedaços convergir em direção a um desenlace que já se tem em vista. Como nos romances, tudo parece ser o presságio de um inevitável abismo para onde o País caminharia. Uma bomba semiótica cujo efeito é turbinado tanto pelo preconceito de classe contra o funk  quanto pelo jornalismo metonímico do “Não Vai Ter Copa”.

Como recortar um elemento do real para apresentá-lo como notícia em um telejornal? Na peça A Cantora Lírica Careca (La Cantatrice Chauve, 1950) Eugène Ionesco, dramaturgo do Teatro do Absurdo – 1909 a 1994) nos fornece um método bem interessante que é seguido à risca na atualidade para a montagem de bombas semióticas. Em primeiro lugar, devemos declarar como “extraordinário” um conjunto de elementos qualquer:

sábado, abril 12, 2014

Em Observação: A Caça (2012) - o mito da pureza infantil

Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende. Além do mal causado pela pedofilia, essa disfunção ainda pode ser o pretexto para a sociedade criar o mito da infância como uma fase idílica e ingênua onde as crianças seriam incapazes de mentir. No filme “A Caça” o diretor dinamarquês Thomas Vinterberg está interessado em dissecar os mecanismos que originam as denúncias e insinuações capazes de provocar linchamentos e destruição de reputações. E como muitas vezes o mito da pureza infantil (colocado abaixo há muito tempo pela psicanálise freudiana) é utilizado hipocritamente para criar válvulas de escape ou bodes expiatórios para aliviar tensões sociais.

quarta-feira, abril 09, 2014

Parapolítica: o Umbral 70 anos depois

Pretos velhos, índios tupinambás e caboclos falando em mecânica quântica, nanotecnologia espiritual, clonagens astrais e denunciando a manipulação dessas tecnologias em sofisticados laboratórios comandados por cientistas emigrados da Terra desde a Segunda Guerra Mundial, com sombrios propósitos de influência nos bastidores da política terrestre. Esse é o Umbral (região espiritual limítrofe ao planeta) 70 anos depois das descrições feitas por André Luiz na série clássica espírita “Nosso Lar”. Quem revela isso é o espírito Ângelo Inácio através da obra do médium mineiro Robson Pinheiro. Lá como cá, tecnologias eletrônicas e digitais são usadas como recursos de engenharia para manipular climas de opinião e atingir “endereços vibratórios” (ou “receptores” como fala a Teoria da Comunicação). É a “parapolítica”, nova abordagem interdisciplinar (ou interdimensional) dos fenômenos da Política e Comunicação.

A certa altura do programa Roda Viva da TV Cultura/SP a jornalista da Folha de São Paulo Eliane Cantanhêde interpelou o entrevistado Almino Afonso (ministro da pasta do trabalho no governo João Goulart – 1962-64) a dar os nomes daqueles que traíram Jango dentro da base político-parlamentar, fragilizando-o diante da eminência do golpe militar. “A maioria deles... eu enfrentaria problemas terríveis em um plano que não sei absolutamente conviver, um plano de outra dimensão da vida (ele fala gesticulando as mãos para o alto)... é muito complicado, e eles quase todos estão mortos... imagina quantos no conjunto já morreram. Sou um dos raríssimos ministros que ainda está vivo”, responde Almino Afonso recusando a dar “nomes aos bois” como se referiu a jornalista.

Curiosa resposta que passou despercebida na entrevista, demonstrando não apenas o caráter moral (se nega a delatar pessoas que já não estão entre nós) como também um misto de respeito e temor sobre “a outra dimensão da vida” e “problemas terríveis” que isso poderia lhe custar – poderíamos especular que o seu temor estaria além da punição moral, mas o temor de os seus inimigos estarem à espera dele na “outra dimensão da vida”. Partindo de um político, um tipo de pessoa marcada pela índole pragmática e com interesses bem terrenos, é uma declaração a princípio surpreendente. Mas será mesmo?

segunda-feira, abril 07, 2014

A dialética gnóstica do senhor e escravo no filme "Expresso do Amanhã"

Mais um filme hollywoodiano de ficção científica distópico e pós-apocalíptico? Com elenco estelar dirigido pelo coreano Jooh-ho Bong em sua estreia em filmes de língua inglesa, “Expresso do Amanhã” (Snowpiercer,  2013) narra como uma espécie de arca ferroviária com sobreviventes da espécie humana após uma catástrofe climática que fez o planeta entrar em nova Era do Gelo, se transforma em um microcosmo da Terra. Em um gigantesco trem com centenas de vagões que circula indefinidamente pelo planeta cria-se um sistema totalitário com luta de classes, exploração, dominação e manipulação psicológica. Mas as dificuldades de distribuição e lançamento do filme apontam para uma produção com narrativa não convencional que foge da dualidade Bem/Mal lembrando a famosa dialética do senhor e escravo tal como descrita pelo filósofo alemão Hegel. Porém, com desfecho não convencional nem para Hollywood e nem para Hegel. Filme sugerido pelo nosso leitor Joari Carvalho.

Um filme com diversos problemas de produção e, principalmente, distribuição. A ideia de associar o ótimo diretor coreano Jooh-ho Bong com atores conhecidos nos EUA como Chris Evans (Capitão América), John Hurt, Ed Harris e Tilda Swinton era promissora dentro da atual política de Hollywood em globalizar os aspectos de direção e produção cinematográficas. Porém, algo não deu certo: mesmo já tendo sido exibido na Ásia, o filme ainda não estreou no Ocidente (nos EUA até o dia 31/03 não havia estreado e no Brasil e era esperado para esse mês nos cinemas brasileiros) e sua estreia tem sido adiada diversas vezes: diversas versões do filme parecem terem sido criadas, com diversos cortes que chegam a totalizar 20 minutos, tentando agradar os estúdios e desagradar o diretor Bong.

sexta-feira, abril 04, 2014

O "Estadão" de 31 de março: bomba semiótica ou sincronicidade?

Leitores desse blog chamaram atenção para um estranho fenômeno semiótico apresentado pelo jornal “O Estado de São Paulo” na edição de 31 de março, dia marcado pela lembrança dos 50 anos do golpe militar de 1964. No caderno “Metrópole” do jornal paulistano uma sequência de duas páginas ímpares criou uma curiosa associação metonímica entre uma matéria sobre intervenção militar no Complexo da Maré no Rio de janeiro e um anúncio do HSBC onde um desenho artisticamente elaborado parece fazer um comentário pontual do que lemos na página anterior: a cidade do Rio de Janeiro à beira de um abismo e carregada por um tanque militar. Mais uma bomba semiótica? Delírios conspiratórios? Ou uma “coincidência significativa”?

Desde as grandes manifestações de rua de junho do ano passado sabemos que uma guerra semiótica está sendo travada pelo domínio da opinião pública. Um domínio que não visa a persuasão política ou disseminação ideológica, mas a explosão de verdadeiras bombas semióticas para moldar a percepção: criar um clima de opinião de que o país atravessa um estado de convulsão, caos e pré-insurgência civil.

Desde a morte do cinegrafista da Band, Santiago Andrade, em protestos no Rio de Janeiro em fevereiro percebeu-se um refluxo nas manifestações de rua. Protestos de rua turbinados por operações semióticas da mídia foram desde então substituídos pela repercussão de pautas que acabam se tornando supercondutores de manifestações de intolerância e de fascismo difuso – forma de pensar onde qualquer tema é pensado a partir de soluções finais, radicais e intervencionistas.

quinta-feira, abril 03, 2014

A vida não tem script no filme "Wrong"

Após o inacreditável filme “Rubber” (2010) onde um pneu com poderes telepáticos roda o deserto em busca de sangue e vingança, o francês Quentin Dupieux nos brindou com “Wrong” (2012) produção que chega ao ápice da filosofia “no reason” que o diretor desenvolve para desconstruir não só o cinema como a própria realidade. Partindo de um plot narrativo surreal (um homem que descobre que seu cão desapareceu e tenta achá-lo por meio de um método de união telepática homem/cão ensinado por um guru new age), Dupieux procura fazer um cinema que não ofereça às pessoas a esperança de que a realidade seja provida de algum sentido. Para ele, se a vida é caótica e incerta, assim devem ser também as narrativas cinematográficas. Dupieux acredita que quanto mais surreal e inverossímil forem os argumentos de um filme, mais “realista” se torna para os espectadores.

Tendemos a pensar que a vida cotidiana é marcada por papéis sociais, regras e normas às quais temos que nos encaixar, tornando o dia-a-dia um tédio, sempre à espera de um feriado prolongado que nos liberte. Vamos ao cinema ou assistimos a um vídeo na esperança de uma breve escapadela da rotina para procurar nos produtos audiovisuais algo que dê sentido à nossa rotina desesperançada.

Mas para o diretor francês Quentin Dupieux é exatamente o inverso: a vida é caótica, incerta, sem scripts definidos, sempre nos pegando de surpresa. Na verdade a realidade não faz muito sentido. E vamos ao cinema para assistirmos histórias onde tudo faça sentido, exatamente como a vida não é. Dupieux procura fazer o contrário: um cinema que não ofereça às pessoas a esperança de que a existência tenha algum sentido ou propósito. Em outras palavras, o diretor francês tenta fazer uma interessante conexão entre a visão gnóstica da existência com uma desconstrução da linguagem cinematográfica.

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