sexta-feira, setembro 01, 2023

Descida ao inferno tragicômico da precarização em 'Tempos Super Modernos'


As engrenagens de uma máquina industrial engolindo Chaplin em “Tempos Modernos” foi o ícone do velho capitalismo industrial. E qual seria o melhor ícone que representaria o atual capitalismo de plataforma que “liberta” o trabalhador da linha de montagem para ser precarizado? Uma boa contribuição é dada pelo personagem Arturo, com sua bike, mochila e smartphone na comédia dramática italiana “Tempos Super Modernos” (“E noi come stronzi rimanemmo a guardare”, 2021). Acompanhamos a tragicômica saga do protagonista pelo inferno da precarização, depois de ter sido demitido pelo próprio algoritmo que criou. 

A imagem de Chaplin sendo engolido por uma máquina e arrastado e espremido pelas engrenagens transformou-se na melhor representação das relações do trabalhador com o modo capitalista de produção e das relações de dominação do capital sobre o trabalho. Uma imagem sempre lembrada nas críticas ao capitalismo – suas formas de alienação e da perda de controle do trabalhador sobre o fruto do seu próprio trabalho.

É uma imagem do velho capitalismo taylorista, da linha de montagem, dos gestos repetitivos e da rotina de exploração diária.

Mas hoje a linha de montagem do velho capitalismo foi substituída por plataformas tecnológicas, aplicativos e algoritmos. Um capitalismo que paradoxalmente “libertou” o operário dos grilhões do ritmo da máquina, do antigo capataz que vigiava o ritmo do trabalhador e até quantas vezes ele ia ao banheiro.

Hoje o chamado capitalismo de plataforma promete o oposto: liberdade, individualidade, ganhos crescentes. A liberdade para fazer seu próprio tempo num capitalismo que agora tem várias denominações: de plataforma, cognitivo, flexível etc.

Tudo aparentemente leve, limpo, interativo, através de tecnologias amigáveis e intuitivas. Não mais máquinas pesadas, ameaçadoras e poluentes como em Tempos Modernos. Mas agora bicicletas e carros elétricos, algoritmos e inteligência artificial.

Assim como o velho capitalismo teve Chaplin e Tempos Modernos como a sua melhor representação, falta agora também a melhor representação icônica desses tempos do capitalismo flexível de plataforma. E um dos candidatos é o híbrido de comédia, drama e ficção científica italiana Tempos Super Modernos (E noi come stronzi rimanemmo a guardare, 2021).



Seu protagonista não enfrenta mais máquinas e engrenagens, mas agora a precarização do trabalho que, paradoxalmente, o libertou de todas as agruras que Chaplin enfrentava em Tempos Modernos. Para melhor explorá-lo, com toda a permissão dada pelas letrinhas minúsculas do “Termo de Responsabilidade”. Aquilo que substituiu o contrato de trabalho do passado.   

Dirigido, escrito e atuando no filme, Pierfrancisco Diliberto (conhecido pelo codnome Pif) não faz uma simples “crítica contra a nossa dependência tecnológica” como a crítica especializada vem definindo o filme. 

Tempos Super Modernos mostra como a tecnologia (mais precisamente, as plataformas presentes em aplicativos e dispositivos móveis) é cada vez mais a última coisa que nos resta num novo mundo em que um crescente contingente populacional nem mais para ser explorado serve. A suposta “dependência tecnológica” seria o último destroço que nos resta para se agarrar no naufrágio do mundo do trabalho.

O filme se passa num futuro próximo no qual uma gigante tecnológica chamada Fuuber monopolizou quase todas as formas de serviços e entretenimento, de entregas de comida por aplicativo à oferta de amigos holográficos para pessoas solitárias. 

Um futuro próximo, mas que parece o agora nesse visão hipo-utópica de Pif – hipo-utopia, diferente da distopia é uma projeção hiperbólica das mazelas já existentes no presente – sobre o conceito clique aqui.

Dessa maneira, Tempos Super Modernos vai muito além da crítica moralizante da “dependência tecnológica”: mostra como o fetichismo tecnológico e as plataformas amigáveis e intuitivas ocultam o velho capital e seus proprietários. Com o indefectível apetite por exploração e lucro, tal como em Tempos Modernos de Chaplin.



O Filme

Tempos Super Modernos acompanha a descida ao inferno da precarização de Arturo (Fabio De Luigi), um desenvolvedor de software de uma empresa que tem a feliz ideia (para quem?) de desenvolver um algoritmo que descubra tudo o que é desnecessário para a empresa. Ele acha que vai ganhar elogios e promoção por desenvolver uma IA que elimine custos e torne a gestão mais eficiente.

O resultado foi que os algoritmos decidiram que o seu próprio criador também era supérfluo, merecendo a demissão sumária.

Sem emprego, Arturo está confiante: ele acredita em Ted Talks, gurus corporativos, seminários motivacionais e coachs. É uma questão de tempo para se recolocar no mercado. Mas o tempo não está ao seu favor. Formulários para admissão são para candidatos de até 40 anos. E Arturo tem quase 50 e se vê num beco sem saída.

Até descobrir uma oferta “revolucionária” (de novo, para quem?) de uma gigante tecnológica chamada Fuuber. Arturo chega num imponente prédio futurista, totalmente vazio e sem ninguém para recepcioná-lo. A não ser uma voz feminina pelo sistema de som – provavelmente uma IA. Faz uma entrevista por videoconferência, mas tudo ainda é abstrato para Arturo: afinal, o que ele fará? Ele só ouve discursos sobre valores, missão, visão etc.



Na saída, é orientado a retirar um kit e descobre que será um entregador de refeições por aplicativo. 

Com dinheiro curto, divide o apartamento com Rafaello (Pif), um professor universitário de filologia romana que faz um bico como hater nas redes sociais. É a precarização também na academia...

O trabalho é excruciante, correndo desesperado atrás de mais bônus para o sistema lhe passar mais entregas. Querendo ganhar um pouco mais, submete-se como cobaia num experimento da empresa: o “Fuuber Infinite” no qual não dorme mais, a não ser em breves minutos determinados pelo aplicativo.

Solitário e cansado, é seduzido por outro produto: o “Fuuber Amigo Ideal”. Um amigo holográfico é criado a partir das preferências dadas por Arturo pelo seus metadados, compartilhado com a Fuuber, sobre suas atividades em redes sociais. O resultado é Stella (Ilenia Pastorelli), uma criação aparentemente virtual que o motiva e ajuda na performance das entregas. Mas, para piorar, o tempo de experiência acaba, e o programa deixa de ser grátis – 199 euros por semana. 

Sem dinheiro e apaixonado por Stella, Arturo está no ponto mais baixo da sua saga pela precarização profissional e humana. Mas Arturo tem um plano perfeito para largar sua mochila de entregas e ter o seu amor de volta.

Tanto o título em português como no original italiano (“E nós, como idiotas, ficamos parados e assistimos”) são bastante felizes e sintéticos. O título em português é uma paráfrase ao clássico Tempos Modernos. Só que, ao contrário da ameaçadora engrenagem que engole Chaplin, o poster de Tempos Super Modernos nos apresenta uma imagem nada ameaçadora: Arturo na sua bike, com sua mochila de entrega high tech, vestindo bermuda e o smartphone preso a um suporte.



Esse é o gênio da engenharia social do capitalismo de plataforma: as relações de exploração e controle entre capital e trabalho continuam as mesmas. Mas ocultas sob as camadas do fetichismo tecnológico e o marketing das Big Techs e dos coachs motivacionais: tudo é aparentemente livre, limpo, intuitivo, amigável e interativo. 

Aparentemente, não há violência ou coerção. Tudo parece politicamente correto.

Arturo pode aceitar ou não as chamadas de entrega. Mas ele NÃO tem alternativa. Dormir significa rendimento cessante. Muito pior do que no capitalismo de Tempos Modernos: lá, pelo menos, dormir significava repor as energias para mais um dia de trabalho explorado.

Mas o título em italiano é a mensagem principal do filme: enquanto assistimos como idiotas as Big Techs enriquecerem, aceitamos os Termos de Responsabilidade e entregamos todos os nossos dados e privacidade para os algoritmos. 

Crescem com a precarização do trabalho, o último estágio de um capitalismo que não precisa mais de tanta gente para ser explorada. Os excluídos são os refugos que ainda serão reciclados pelas plataformas, para serem o bagaço em que está o último suco a ser espremido:  a força de trabalho “livre” e a autorização para que as Big Techs explorem nossas vidas privadas. 


 

  

Ficha Técnica

 

Título: Tempos Super Modernos

Diretor: Pif

Roteiro:  Pif

Elenco:   Fabio De Luigi, Ilenia Pastorelli, Pif

Produção: Wildside, Film Commission Torino-Piemonte

Distribuição: MUBI

Ano: 2021

País: Itália

   

 

Postagens Relacionadas

 

A miséria da estética e da linguagem do trabalhador precarizado

 

 

Filme "Trabalhar Cansa" disseca as superstições da classe média

 

 

O terror social e racial no filme 'Excluídos'

 

 

 

Curta da Semana: "El Empleo" - o emprego que te espera no futuro

 

 

Tecnologia do Blogger.

 
Design by Free WordPress Themes | Bloggerized by Lasantha - Premium Blogger Themes | Bluehost Review