Desde que a Primeira-Dama Michelle Obama abriu o envelope de Melhor Filme do Oscar em 2013 em link ao vivo direto da Casa Branca, tornou-se explícita e sem rodeios a função de Hollywood como máquina de propaganda política. O Filme “A Guerra do Amanhã” (2021, disponível na Prime Video) é mais uma peça de propaganda, dessa vez escancarando a “Doutrina Biden” para o planeta. Do futuro vem uma força tarefa alertando que a humanidade está sendo dizimada por alienígenas xenomorfos e pede ajuda: enviar para lá mais tropas que auxiliem na batalha. Um mix dos clichês do gênero: viagem no tempo, monstros alienígenas, problemas mal resolvidos entre pai e filha, um herói que ao mesmo tempo tenta salvar o mundo e reunir a família etc. Mas também os indefectíveis RAVs (russos, árabes e vilões em geral e, agora, chineses também) que estão no filme, porém, de forma indireta, metonímica, com efeitos subliminares de propaganda política.
Quem até então apenas suspeitava das estreitas conexões entre o complexo de inteligência militar norte-americano com o sistema audiovisual hollywoodiano, teve uma explícita comprovação na premiação do Oscar de 2013: vimos um “surpreso” Jack Nicholson olhando para trás onde, suspenso, num enorme telão aparecia a imagem da Primeira-Dama Michelle Obama em um link ao vivo direto da Casa Branca.
Ela tinha em suas mãos o envelope com o vencedor da categoria Melhor Filme. E anunciava: “E agora o momento que todos aguardavam... e o Oscar vai para Argo”.
A presença da imagem da primeira dama da maior potência bélico-militar do planeta no principal evento da indústria cinematográfica transmitido ao vivo para todo o mundo foi um acontecimento rico em significados – ainda mais quando Michelle Obama anunciou como vencedor o filme cujo tema foi uma bem sucedida ação da inteligência dos EUA durante a crise diplomática dos reféns norte-americanos no Irã em 1979, em uma operação de resgate que envolvia a criação de uma falsa produção cinematográfica que supostamente seria rodado naquele país – clique aqui.
Argo foi um filme premiado pela Academia com um Oscar. Mas o filme A Guerra do Amanhã (2021), dirigido por Chris McKay (Lego Batman: O Filme) está muito, mas muito longe disso. Uma ágil e barulhenta mistura de elementos excessivamente familiares como um pouco de viagem no tempo, uma horda implacável de monstros xenomorfos alienígenas, problemas mal resolvidos entre pai e filha, um herói que tenta salvar o mundo ao mesmo tempo que tenta reunir a família e alguns companheiros desajustadamente engraçados para dar um alívio cômico à narrativa.
Estrelado por Chris Pratt (que acumulou toda popularidade em franquias como Jurassic World e Guardiões da Galáxia) é mais uma fantasia escapista naquilo que os norte-americanos fazem de melhor: perseguições, explosões, muitos efeitos especiais e destruição em massa de cidades e pessoas.
Mas, como mostrou os pesquisadores Ariel Dorfman e Armand Mattelart no livro clássico “Para Ler o Pato Donald”, por trás de inocentes produtos de entretenimento (no caso, os quadrinhos infantis da Disney) esconde-se a propaganda ideológica que, na atualidade, transformaram-se em verdadeiras operações psicológicas para apoiar as estratégias geopolíticas dos EUA.
Principalmente nesse momento, em que a “Doutrina Biden” começa a se impor no sentido de substituir as chamadas “guerra eternas” da era Bush-Obama pelas guerras híbridas, baseadas em guerras culturais e psyOps.
Enquanto a premiação de Argo em 2013 foi uma homenagem de Washington aos bons serviços prestados por Hollywood desde a Segunda Guerra Mundial, A Guerra do Amanhã é o “feijão-com-arroz” da propaganda ideológica. Principalmente nesse momento de aguda tensão do Império com a ameaça da China e o multilateralismo – em oposição à polaridade Norte/Sul tão ao gosto geopolítico dos EUA.
Em A Guerra do Amanhã os indefectíveis RAVs (russos, árabes e vilões em geral, a necessidade da existência de um inimigo externo desde o pós-guerra) estão lá, porém, de forma indireta, isto é, de uma forma metonímica com efeitos subliminares.
Claro, os vilões são monstros xenomorfos que lembram os aliens de Ridley Scott. Mas em uma narrativa que os aproxima metonicamente dos russos e chineses. O Mal somente poderia ter suas raízes nesses países distantes e ameaçadores. No filme, o mundo está um caos. Mas nos EUA apenas vemos cientistas obstinados em salvar o mundo e os clássicos subúrbios de classe média do sonho americano. Com um herói que ama sua filha e tentar manter unida a Célula Mater da pátria: a família.
Porém, o mais preocupante no filme (e, talvez, o “ato falho”) seja o pedido de auxílio do herói liberal ao pai renegado: um red neck conspiratório de extrema-direita que o ajudará a salvar o mundo. Por que preocupante? Será que a “Doutrina Biden” não seria uma ruptura? Ainda encararia a alt-right de Trump/Bannon como arma disponível para futuras guerras híbridas? Assim como o foram nas “Primaveras” ou “revoluções coloridas” que passaram por diversos países – e que agora fustiga Cuba.
O Filme
O personagem de Pratt, Dan Forester, é um veterano da Guerra do Iraque e professor de ciências do ensino médio que luta (e fracassa) para encontrar um emprego melhor. Ele tem grandes sonhos em se tornar um cientista, mas nenhuma maneira de alcançá-los. A única pessoa que acredita nele de todo o coração é sua filha de 9 anos, Muri (Ryan Kiera Armstrong).
Vive num típico subúrbio do sonho americano, casado com sua esposa Emmy Forester (Betty Gilpin), enquanto, com a casa repleta de amigos, assiste à final da Copa do Mundo no Quatar – curiosamente, vemos a seleção brasileira enfrentando um adversário não identificado.
Num contra-ataque, quando um jogador brasileiro chamado Peralta (?) está à beira de fazer o gol, abre-se no meio do jogo uma fenda no tempo-espaço de onde saltam soldados fortemente armados liderados por uma mulher que anuncia pelo sistema de som do estádio: em 2050 a humanidade está em guerra contra aliens chamados “garras brancas”, uma terrível raça que está dizimando a humanidade. Eles estão ali no passado para pedir ajuda.
Em um ano, é organizado um esforço mundial para enviar exércitos para o futuro e um recrutamento global foi instituído. Os escolhidos são enviados para 2050 por períodos de sete dias; os sobreviventes são então enviados de volta, a maioria deles com histórias horríveis sobre o que viram e vivenciaram. A esposa de Dan é uma terapeuta que vemos trabalhando com os sobreviventes traumatizados pela Guerra do Amanhã. Quando Dan é chamado, ela o incentiva a evitar o alistamento militar - ela sabe os horrores que o aguardam no outro lado do século. Mas Dan, com um bom ex-boina verde, irá aceitar a missão.
Mas o mundo está um caos: a morte iminente da humanidade três décadas no futuro minou o espírito do presente: motins estouram, protestos crescem sobre o fato de que estamos lutando e morrendo em uma guerra que ainda nem começou. Todas as crianças alunas da classe de Dan parecem ter desistido da própria vida. O moral está baixo, mas a narrativa mostra principalmente o caos em torno de todo mundo. Menos nos EUA, onde temos obstinados cientistas e militares coordenando a salvação.
Uma vez que Dan chega em 2050, o filme se torna um videogame alucinante, muita carnificina CGI, enquanto ele e sua equipe não treinada e despreparada são lançados no meio de uma batalha que basicamente já foi perdida. Os Garras Brancas são bestas genuinamente aterrorizantes - fantasmagóricos, tentaculares, insetóides gigantes com bocas semelhantes a bicos, cheios de presas, que enxameiam como moscas zumbis supersônicas.
O filme se desenrola como uma série de cenários semelhantes aos de um videogame: você tem que encontrar um grupo de pessoas, recuperar um objeto científico importante, tirar esse objeto deste lugar antes que seja tarde demais e, em seguida, explodir tantos monstros que ver pelo caminho quanto possível. Tudo sem ser comido.
O diretor Chris McKay sabe como manter as coisas leves e rápidas. Também ajuda o fato de um número razoável de papéis coadjuvantes ser interpretado por atores cômicos como Sam Richardson, Mary Lynn Rajskub e Mike Mitchell, o que também nos lembra de não levar nada disso muito a sério tudo que acompanhamos. Lembrando que o próprio Pratt é um ator com uma sensibilidade inerentemente cômica, mesmo quando ele está fazendo papéis sérios.
Essa é a especialidade do cinema norte-americano.
RAVs metonímicos e aliança alt-right – alerta de spoilers à frente
Russos, árabes e vilões em geral (RAVs, agora também incluso os chineses) é um lugar-comum em Hollywood – a necessidade sistemática de criar inimigos externos, desde a eclosão da Guerra Fria no pós-guerra.
A associação de aliens com inimigos políticos não é uma novidade, desde a transmissão radiofônica do “Guerra dos Mundos” feita pela rádio CBS em Nova York em 1938, que levou pânico aos ouvintes que acreditaram em marcianos estavam invadindo os EUA – posteriormente, descobriu-se que “marcianos” era um personagem genérico para muita gente: muitos acreditavam que eram nazistas invadindo o país.
Alienígenas e monstros mutantes invadindo os EUA tornou-se recorrente na década de 1950 e 1960, auge da tensão política na corrida nuclear, reforçando o efeito-pânico necessário para o controle político – a aproximação metonímica de aliens e monstros com russos e comunistas.
A Guerra do Amanhã recorre mais uma vez a essa estratégia semiótica para revelar-se como peça de propaganda: no terceiro ato os protagonistas descobrem que os monstros alienígenas do futuro já estavam nesse planeta há muito tempo, a partir de pistas de uma conexão entre China, Coreia e Rússia – o próprio eixo do Mal geopolítico atual dos EUA.
Pistas que encontram na análise de uma das garras dos monstros, com evidências de cinzas vulcânicas de uma erupção pré-histórica nas fronteiras entre Coreia e China, que levam à localização da nave enterrada no gelo na Rússia: em trinta anos, o degelo provocado pelo aquecimento global fará as criaturas saírem da hibernação para ganharem a superfície, dizimando a humanidade.
Dan vão ao encontro do seu pai “red neck”, James (JK Simmons) para reunir alguns companheiros sobreviventes do futuro para rumarem à Rússia, explodirem o gelo e cavarem até a nave enterrada para matarem os aliens com uma poderosa toxina.
O extremista de direita James dá o apoio logístico necessário: rebelde conspiratório e armado até os dentes, James não crê no governo – somente ele e seu filho, por conta própria, poderão salvar o mundo do seu próprio futuro. Seria isso um ato falho da linha de continuidade Trump-Biden? Para os EUA enfrentarem o “eixo do Mal” ainda será necessário contar com a extrema-direita para fazer o “serviço sujo”?
Premissa inverossímil
Como em toda peça de propaganda de entretenimento, os argumentos do roteiro são inverossímeis para que a narrativa possa forçar a barra. Em A Guerra do Amanhã não é diferente: a premissa é totalmente estúpida!
Se não, vejamos. Como o leitor poderá observar, os “exércitos” recrutados e enviados ao futuro em sua maioria são civis, destreinados, pegos de surpresa e totalmente aterrorizados, para inevitavelmente serem devorados pelas criaturas do futuro. O motivo é justificado: para evitar o conhecido problema do paradoxo dos gêmeos nas viagens no tempo (encontrar o seu próprio eu mais velho no futuro), somente são enviadas pessoas de quarenta anos para cima. Elas já estariam mortas no futuro, não incorrendo no paradoxo.
A questão é que a lógica militar é totalmente absurda e ineficiente, equivalendo à decisão de Hitler marchar contra a Rússia em pleno inverno. As tropas são enviadas sem mesmo saberem como se destrava as armas que são dadas para elas. Tudo de afogadilho.
Eventualmente surge a epifania da filha de Dan, agora uma cientista no futuro, de enviar a toxina ao passado, o que mataria os aliens trinta anos antes, evitando toda a tragédia futura.
Então, como evitar a toxina fílmica de propaganda que A Guerra do Amanhã pretende injetar nos espectadores? Tratando o filme como um típico produto do melhor que Hollywood pode produzir: idiota, porém, com ágeis perseguições e muito CGI barulhento e divertido.
Ficha Técnica |
Título: A Guerra do Amanhã |
Diretor: Chris McKay |
Roteiro: Zach Dean |
Elenco: Chris Pratt, Yvonne Strashovski, JK Simmons, Betty Gilpin, Sam Richardson, Edwin Hodge, Mike Mitchell |
Produção: Skydance Media, Amazon Studios |
Distribuição: Amazon Prime Video |
Ano: 2021 |
País: EUA |