Todo filme de terror explora os simbolismos mais recônditos da humanidade. Mas “Cuckoo” (2024), escrito e dirigido pelo alemão Tilman Singer, vai resgatar um simbolismo inusitado: o do passarinho cuco, notabilizado pelo relógio clássico – uma ave parasita e imitadora. Uma adolescente se muda para os Alpes alemães com o pai, madrasta e meia-irmã. Ao lado de um resort remoto e vazio. Sabemos que desde “O Iluminado” isso não traz bons pressentimentos. “Cuckoo” é um conto humano-aviário fantasmagórico que se transforma em puro show de aberrações e horror corporal. Mas que dá uma alerta: a tentação darwinista social presente nas formas mais inesperadas e surpreendentes na História – a aspiração totalitária pela busca de uma suposta pureza deixada por nós em algum paraíso natural perdido. E que a todo custo teria que ser recuperado.
O cuco é um pássaro parasita e imitador. Quando voa, faz questão de ficar parecido com um pardal para assustar os outros pássaros. Mas o que intriga mesmo é a sua estratégia reprodutiva.
Como um parasita, em vez de a fêmea cuco construir um ninho, deposita os seus ovos nos ninhos de outras aves que se tornam hospedeiros e ficam com a tarefa de cuidar do jovem cuco até este ser independente.
Mas o cuco tem que ter o cuidado de encontrar um hospedeiro apropriado — procura aves cujos ovos se assemelhem ao dos cucos. Paciente, espera até que o ninho escolhido deixe de estar vigiado, retira um dos ovos do hospedeiro e substitui-o pelo seu.
Os filhotes cuco já nascem com um estratagema de sobrevivência traiçoeiro, aparentemente gravado geneticamente: logo ao saírem dos ovos, rolam para fora do ninho os ovos autênticos da ninhada, tomando-lhes o lugar.
Por isso, tanto na literatura como na simbologia esotérica, a simbologia do cuco transita do “trickster”, o embusteiro, o imitador (quebrar a ordem da natureza), passando pelo símbolo de resiliência e adaptação (daí a associação com o tempo e os “relógios cuco”) ou, como em Shakespare, o pássaro é citado para descrever o marido de uma esposa adúltera – “um corno não existiria sem um cuco”, escreve.
O terror alemão Cuckoo (2024) é uma curiosa exploração singular da simbologia desse pássaro. Singular porque o diretor e roteirista Tilman Singer quer abordar a intersecção imaginária entre a sociedade e a natureza. Intersecção que inicia nas sociedades totêmicas nas quais os clãs adotavam seu animal de poder para absorver dele força, velocidade, inteligência e coragem.
O vilão do filme se considera um “preservacionista”, proprietário de um misterioso resort nos Alpes alemães da Baviera. Fascinado pelo pássaro, tem um relógio cuco em destaque na decoração. E no centro de tudo, uma recém-chegada adolescente norte-americana com seu pai, a madrasta e uma meia-irmã.
Desde O Iluminado de Kubrick, resorts ou hotéis em lugares remotos com florestas ou montanhas não nos transmitem bons pressentimentos. De imediato temos a sensação de que algo obscuro está acontecendo naquele remoto resort da Baviera administrado por um proprietário de hotel excessivamente amigável, beirando o vilão cartunesco. E provavelmente há.
Cuckoo começa como um drama familiar da filha biológica do pai que sente estar sendo colocada para fora do círculo afetivo, substituída pela pequena meia-irmã que exige cuidados especiais por ser surda-muda – a primeira analogia com o parasitismo do pássaro que dá o título do filme.
Para depois mergulhar numa trama aleatória, nebulosa que cada vez mais conduz ao espectador à expectativa de que algo de muito perverso está acontecendo nos subterrâneos daquele resort – os bangalôs em sua maioria estão vazios e parece que todos funcionários do resort estão à espera deles, com uma atenção especial na protagonista e sua meia-irmã.
A configuração inicial previsível – adolescente rebelde se muda com a família para uma nova cidade e descobre mistérios – vai logo mudando para outra coisa, principalmente pelo aumento da contagem de mortes.
É quando vamos descobrindo que o drama da adolescente rejeitada é mais do que uma analogia com o bizarro ciclo reprodutivo do cuco.
Cuckoo nos conduz à literalidade: quando a própria sociedade quer se tornar Natureza através de uma espécie de darwinismo social – a sociedade tornando-se tão cruel quanto a luta pela sobrevivência no mundo natural, para além das nossas idealizações românticas.
O Filme
Cuckoo acompanha Gretchen (Hunter Schafer), de 17 anos, seu pai Luis (Márton Csókás), a madrasta Beth (Jessica Henwick) e a meia-irmã mais nova Alma (Mila Lieu), enquanto eles se mudam para uma casa nos Alpes alemães.
Luis e Beth estão projetando uma nova ampliação para o proprietário do resort alpino, Herr König (Dan Stevens) – o que já causa estranheza, já que percebemos o quanto aquele resort isolado, silencioso e com poucos hóspedes.
Gretchen foi deslocada involuntariamente de sua casa na América após a morte de sua mãe e se sente como uma intrusa no segundo casamento de seu pai. Ela até sai por aí dizendo às pessoas que Alma, que é surda-muda, não é realmente sua irmã.
Mas depois que ela aceita uma oferta de Herr König para trabalhar na recepção do resort, Gretchen começa a encontrar situações cada vez mais bizarras — de hóspedes desorientados vomitando no saguão do motel a uma fantasmagórica e assustadora mulher loira (Kalin Morrow) usando óculos de proteção e sobretudo a perseguindo enquanto ela está indo de bicicleta para casa numa noite.
Então, quando Alma começa a ter convulsões estranhas — e Herr König e sua amiga no hospital local, Dra. Bonomo (Proschat Madani), demonstram um interesse incomum por ela — fica muito claro que algo sinistro está acontecendo.
É o momento em que surge um ex-investigador da polícia local, Henry (Jan Bluthardt), que tenta alertar Gretchen dos perigos que está correndo em trabalhar na recepção do resort e pedalar à noite.
Além dessa loira assustadora que ronda a floresta, há um tipo de anomalia sônica que repentinamente invade os ambientes, fazendo por alguns instantes a vítima entra numa espécie de loop sônico-temporal, uma espécie de cilada que envolve tempo e memória – um grito mais parecido com o som de um cuco sintetizado eletronicamente.
É o primeiro simbolismo do cuco que aparece na narrativa: a associação do pássaro com o tempo.
Cucos e Darwinismo Social – Alerta de Spoilers à frente
Cockoo é um conto de experimentação humano-aviária com floreios fantasmagóricos. A narrativa pode começar embaçada e ambígua, mas aos poucos o clima é clima se transforma em puro show de aberrações.
No centro de tudo está Herr König, que talvez seja menos um cientista louco do que ornitólogo excitado. Obcecado em replicar — de maneiras indescritíveis — os comportamentos de reprodução do pássaro cuco, König requer a cooperação de jovens mulheres dispostas. E Gretchen não está ansiosa para se tornar uma delas.
Os envolvidos na conspiração usam o hotel como fachada para atrair casais, enredá-los com controle mental baseado em audição (o loop sônico-temporal) e, em seguida, impregnar as mulheres com humanoides cucos que serão criados pelos casais, assim como os cucos da vida real colocam seus ovos em ninhos de outros pássaros e deixam seus filhotes para serem criados por esses pássaros.
Bavaria, Alemanha, Alpes... Cuckoo ecoa todos os horríveis experimentos médicos nazistas de aprimoramento racial – os indescritíveis experimentos em campos de concentração envolvendo médicos da SS e cobaias prisioneiras.
Aprimoramento racial implica na mitologia do homem retornar a uma suposta pureza que a sociedade corrompeu, fazendo a humanidade abandonar todas as virtudes naturais.
O problema é que a Natureza não é nem “pura” e nem “perfeita”. Ela é indiferente. Portanto violenta, cruel, impiedosa, pelo ponto de vista da ética e moral civilizatórias.
O horror corporal do experimento humano-aviário de Cuckoo é um alerta: a todo momento a tentação darwinista social está presente nas formas mais inesperadas e surpreendentes na História – a aspiração totalitária pela busca de uma suposta pureza deixada em algum paraíso perdido.
Ficha Técnica |
Título: Cuckoo |
Diretor: Timan Singer |
Roteiro: Timan Singer |
Elenco: Hunter Schafer, Jan Bluthard, Marton Czoskas, Mila Lieu |
Produção: Neon, Fiction Park |
Distribuição: Neon |
Ano: 2024 |
País: Alemanha |