Em 2001 Karl Rove, Vice-Chefe da Casa
Civil do presidente Bush, reuniu os chefões de Hollywood em Beverly Hills. Num
esforço de propaganda, Rove exigiu da indústria do cinema mais filmes sobre
família, heróis e ameaças externas. Foi o ponto de partida da onda de filmes de
super-heróis com franquias da Marvel e DC Comics. E a animação da Disney “Os
Incríveis” em 2004 fez parte dessa
agenda. Depois de 14 anos, “Os Incríveis 2” é lançado. Diferente do tom
motivacional das outras produções do estúdio Pixar, a franquia “Os Incríveis”
se distingue pela explícita temática social e política. Dessa vez, Mulher
Elástica é a protagonista, patrocinada por um megaempresário de uma rede de
comunicação numa estratégia de propaganda para reabilitar a imagem dos
super-heróis. E os problemas da família do Sr. Incrível às voltas com a opinião
pública, as leis e os políticos. Que se tornam inimigos tão nefastos quanto a
nova geração de super-vilões. “Os Incríveis 2” é um exemplo didático da “Agenda
Hollywood” proposto por Karl Rove: anti-intelectualismo e repulsa à política
como novas estratégias para conquistar as mentes de crianças e adultos. Pauta sugerida pelo nosso leitor Saulo Regis.
Há 46 anos, Ariel Dorfman e
Armand Mattelart escreviam o clássico “Para Ler o Pato Donald” no Chile, no
momento em que o governo socialista de Salvador Allende se debatia com as
pressões dos EUA e o apoio logístico da CIA às greves e protestos.
A ideia dos pesquisadores era
denunciar a propaganda ideológica dos EUA por trás de inocentes histórias em
quadrinhos infantis da Disney, dentro do contexto da Guerra Fria.
O livro descreve como no universo
Disney não há laços familiares diretos (só há tios e sobrinhos, para esconder
as relações sexuadas), os personagens são movidos apenas pela ambição por
dinheiro, enquanto fora de Patópolis só existem povos bárbaros e burros o
suficiente para serem enganados e entregar todas suas riquezas. Para Mattelart
e Dorfman, as aventuras de Mickey, Tio Patinhas e Pato Donald nada mais seriam
do que a expressão metafórica da geopolítica norte-americana – conquista,
dominação e exploração.
Para se assistir à nova animação
Pixar Os Incríveis 2 é necessário ter
em mente esse diagnóstico de Dorfman e Mattelart. Primeiro, e mais óbvio,
porque estamos diante de mais um produto da Disney.
E segundo, porque a franquia Os Incríveis é uma animação diferenciada
em relação a todas as outras dos estúdios Pixar. Enquanto animações como Toy Story, Ratatouile, Procurando Nemo
ou Divertida Mente tratam de temas
motivacionais, a franquia Os Incríveis
tem um forte tom social e político.
Sim! Também nas animações
motivacionais da Pixar há um componente ideológico (por ex., Divertida Mente se inspira nas pesquisas
psicológicas da CIA e Departamento de Defesa dos EUA – clique aqui), porém de maneira mais
discreta, sob muitas camadas de sentimentalismo. Não é o caso de Os Incríveis, onde o tema dos
super-heróis se relaciona explicitamente com instituições como a Política, o
Judiciário e os meios de comunicação.
Metalinguagem de um subgênero
Ao mesmo tempo é importante
considerar que essa continuação de Os
Incríveis acontece 14 anos depois. Ao lado dos lançamentos de Homem-Aranha (2002) e X-Men (2000), naquele momento Hollywood
iniciava a onda de filmes de super-heróis dos quadrinhos da Marvel e DC Comics
adaptados para as telonas. Por isso, Os
Incríveis 2 é lançado numa paisagem cinematográfica bem diferente do seu
antecessor: como se diferenciar numa fórmula já bem desgastada?
Como sempre, a saída é fazer uma
metalinguagem do subgênero: quando não estão salvando o mundo, o que fazem os
super-heróis? Como é a sua rotina familiar? Atrapalha as super-missões dos
heróis?
Mas o que chama a atenção em Os Incríveis 2 é que a narrativa não se
limita aos conflitos entre as demandas familiares e heroicas – como em 2004.
Mas agora, principalmente, vemos os perrengues da família protagonista com a
opinião pública, as leis e os políticos. Que se tornam inimigos tão nefastos
quanto os super-vilões – na animação, o “Minerador” e o “Hipnotizador”.
Também para entender o contexto
do lançamento de Os Incríveis 2,
deve-se ter em mente a célebre reunião feita em 2001 com os chefões de
Hollywood em que Karl Rove, na época Chefe da Casa Civil do presidente Bush,
lançou a chamada “Agenda Hollywood” pós-11 de setembro, projetada para os
próximos 20 anos: mais filmes sobre famílias, heróis (humanos ou super) e
ameaças externas que salientassem os valores morais dos EUA – sobre isso clique aqui.
Imediatamente intensificaram-se
das franquias de super-heróis, lembrando os esforços de propaganda dos EUA
durante a Segunda Guerra Mundial para combater os super-heróis arianos nazi.
Nesse contexto, Os Incríveis 2 parece uma síntese
metalinguística desse esforço de propaganda, no qual a família do Sr. Incrível
participa de uma ação de engenharia de opinião pública para reverter a imagem
negativa dos super-heróis. Uma espécie de meta-propaganda nesses últimos anos
de guerra ao terror e guerra híbrida em países periféricos da geopolítica dos
EUA.
O Filme
A animação inicia por onde o
primeiro filme terminou: o ataque do vilão Minerador que cava tuneis sob bancos
para saqueá-los. Mulher Elástica, Sr. Incrível e seus filhos lutam para
impedi-lo, mas os danos na metrópole acabam refletindo uma cultura atual na
qual os super-heróis não têm lugar: é melhor deixar o vilão fugir com o
dinheiro do que impedi-lo com mais destruições. Afinal, os bancos têm seguro e
o prejuízo pode ser contabilizado.
Lembre-se que no primeiro filme
os super-heróis foram proscritos e inseridos em um programa governamental de
redirecionamento: apagar suas identidades e realoca-los em empregos comuns,
anônimos. Essa foi a lei, no passado definida pelos políticos após debate
parlamentar.
Novamente entra em ação um agente
secreto do Governo (não por acaso com a cara do ex-presidente Nixon que sofreu
impeachment em 1972) para controlar os danos e realocar a família Incrível em
um quarto de hotel, para escondê-los mais uma vez.
Surge a esperança: Winston
Deavor, um megaempresário dono de uma poderosa rede de telecomunicações. Junto
com sua irmã Evelyn, pretende reverter as imagens dos super-heróis junto à
opinião pública: torna-los mais uma vez necessários (diante da escalada de
ataque da nova geração de super-vilões) e pressionar a suspensão da lei imposta
pelos políticos e governo.
Meta-guerra híbrida
O que faz Deavor? Organiza
protestos “espontâneos” de populares nas ruas com placas e faixas para apoiar a
volta dos super-heróis – meta-guerra híbrida? Mas ele tem um plano maior:
promover a imagem pública positiva da Mulher Elástica através de uma
micro-câmera digital inserida em seu uniforme. Para transmitir ao vivo pela TV
seus atos heroicos. Agora tudo será pelo ponto de vista do herói, e não mais
dos políticos.
O megaempresário baseia-se em um
“relatório”: “quando se trata de decisões, devemos confiar mais em macacos do
que no Congresso”, afirma com todas as letras Deavor.
A narrativa reverbera o atual
discurso de depreciação da política representativa da grande mídia de forma
explícita – a mídia é mais confiável do que o Congresso: “os políticos não
entendem pessoas que fazem o bem...só porque é certo, isso os deixa nervosos”,
pondera o megaempresário.
Os Incríveis 2 é pontuado por uma série de linhas de diálogo de
depreciação da Política e ridicularização dos mecanismos parlamentares. As leis
devem ser alteradas não pelo debate democrático, mas pela engenharia de opinião
pública, pelo bombardeio da mente do público através de uma propaganda “do
Bem”.
Mas o bombardeio subliminar da
propaganda não é algo negativo? Aqui é o ponto de inflexão da narrativa. Que
mostra como a Disney não está para brincadeiras, como denunciavam há 46 anos
Dorfman e Mattelart.
O novo super-vilão não é nada
mais e nada menos do que “O Hipnotizador” – “Screenslaver”. Um verdadeiro ardil
narrativo para tornar justificável a ação “do Bem” do megaempresário que
pretende alterar leis numa ligação direta entre Grande Mídia e a Justiça.
Mandando o Legislativo para o ralo.
O Hipnotizador é um vilão que
objetiva mostrar para a sociedade que o povo não precisa de super-heróis. Por
isso sequestra o sinal dos canais de TV para transmitir a seguinte mensagem:
Os super-heróis fazem parte do estúpido desejo de trocar experiências reais por simulações... vocês não conversam, assistem entrevistas... vocês não jogam, assistem aos outros jogarem... viagens, relacionamentos, riscos. Cada experiência precisa ser empacotada, entregue para vocês para assistirem de longe... sempre passivos, transformados em consumidores. Que não se dão ao trabalho de sair ao Sol. Incapazes de participar da vida”.
Uau!!! Mas essa é a crítica que o
próprio cinema faz em relação às mídias e novas tecnologias, desde Videodrome (1983) de David Cronenberg.
No mínimo, é uma síntese da crítica sóciocultural dos pensadores pós-modernos
da estirpe de Christopher Lasch (“A Cultura do Narcisismo”), Richard Sennett
(“O Declínio do Homem Público”) e Jean Baudrillard (“Simulacros e Simulações”).
Anti-intectualismo e despolitização – aviso de spoilers à frente
Tal como nos velhos quadrinhos
infantis da Disney, nos quais todo pensamento intelectualizado é característica
do vilão, opondo-se ao pensamento “ingênuo” e “puro” (infantilizado) dos
heróis, aqui o Hipnotizador usa o poder subliminar midiático para o “mal”.
Enquanto o megaempresário Deavor
aplica esse poder para o “bem”: alertar a sociedade para a inutilidade dos
políticos. Suas motivações não são racionais ou intelectuais. São emotivas ou
de pura vingança – seu pai morreu supostamente por causa da lei que baniu os
super-heróis. Lei aprovada pelos políticos.
E tudo
desemboca para o gran finale: a
engenharia de opinião pública da poderosa rede de telecomunicações deu certo:
um imenso juiz togado bate seu poderoso martelo decretando “o fim da lei que
baniu os super-heróis”. Juízes alterando leis sem discussões parlamentares.
Os Incríveis 2 faz uma “incrível” racionalização: ideologicamente
torna necessário ou consumado o chamado “Golpe 2.0”, objetivo final da atual
Guerra Híbrida que varre os países emergentes – através da aliança
jurídico-midiática tirar de cena a atividade política partidária (e de resto
todas as agremiações públicas como os sindicatos) para deixar tudo nas mão dos
“super-heróis”.
Afinal, super-heróis nasceram com
poderes naturais (e por isso indiscutíveis, como comprova o super-bebê Zezé da
família Incríveis). Uma super raça (assim como os super-heróis arianos dos
nazistas) que paira acima do Bem e do Mal. Por que acima disso só existe a
Justiça, de uma dimensão da qual veio a raça dos super-heróis.
E o mais importante: super-heróis
não foram eleitos pelos cidadãos, mas pela Natureza. Portanto, estão livres da
sujeira da Política. Assim como os juízes togados...
Ficha Técnica
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Título: Os
Incríveis 2
|
Diretor: Brad Bird
|
Roteiro: Brad Bird
|
Elenco: Craig
T. Nelson, Holly Hunter, Sarah Vowell
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Produção: Pixar
Animation Studio, Walt Disney Pictures
|
Distribuição: Walt Disney
Studios Motion Pictures
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Ano: 2018
|
País: EUA
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