“É lógico que vai ter eleição (mesmo sem voto impresso), pô. Quem é que vai proibir eleição no Brasil? Por favor, gente. Nós não somos república de banana”.
Assim o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, contradisse outro general, Braga Netto, ministro da Defesa. Em reportagem de 22 de julho, publicada pelo jornalão conservador O Estado de São Paulo, Braga Netto teria enviado “um duro recado” ao presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) que “não haveria eleições em 2022, se não houvesse voto impresso auditável”. Segundo a reportagem, ao dar o aviso através de um interlocutor que não teve o nome revelado, “o ministro estava acompanhado de chefes militares do Exército, da Marinha e da Aeronáutica”.
No mesmo dia da publicação da reportagem, aos jornalistas em Brasília, Braga Netto falou que tudo era uma “invenção” do diário paulista. Depois, o jornal reafirmou a reportagem: “O Estadão mantém todas as informações publicadas”.
Mais tarde, o ministro leu uma nota para lá de ambígua: disse que “não se comunica com presidentes dos poderes através de interlocutores” e manteve a sua crítica dizendo que “o cidadão deseja maior transparência e legitimidade no processo de escolha de seus representantes”. Um meio-desmentido que jogou ainda mais gasolina no incêndio.
Ato contínuo, as declarações do ministro da Defesa tiveram grande repercussão negativa nos meios políticos e judiciário. Enquanto Arthur Lira diz que pouco importa o que a imprensa publica: “o povo quer é vacina, quer trabalho...”.
Esse é mais um flagrante do modus operandi da guerra semiótica criptografada: depois do não-acontecimento da internação às pressas de Bolsonaro, mantendo ocupado os links ao vivo das “breaking news”, agora é a vez do ministro da Defesa alimentar as vivandeiras do “golpe militar” old fashion – reavivar o imaginário das quarteladas, tanques de guerra cercando o Congresso e caminhões do Exército com soldados nas carroçarias cruzando as ruas.
Estratégia essencial na guerra de informações, o objetivo é detonar bombas semióticas de fragmentação, cujos estilhaços geram principalmente ambiguidade: semi-desmentidos, discursos semanticamente polissêmicos, contradições. No todo, criar um cenário cognitivo dissonante, confuso, caótico. Assim como o provocados pelos dois terabites de documentos na CPI da Pandemia, tornando as investigações incognoscíveis para a opinião pública.
Embaralhar os códigos
Como todo processo criptográfico, o objetivo é embaralhar códigos no plano sintático para ocultar as seguintes mensagens do plano semântico:
(a) De fato, o Brasil não é mais uma república bananeira, como afirmou Mourão. A sofisticação das psyOps militares comprovam isso, a ponto de nãos ser mais necessário fazer as cinematográficas “quarteladas”. A expressão de Mourão foi um ato falho: na verdade, oque ele quis dizer (e que a guerra criptografada quer ocultar) é que o país virou uma banana plantation, objetivo principal do golpe militar híbrido que ninguém viu: o Brasil agora tem uma economia arrasada e desindustrializada, tornando-se cada vez mais uma colônia agrícola exportadora de commodities: grãos, carne e não manufaturados – o verdadeiro objetivo da imposição da agenda neoliberal dentro da geopolítica do Império do Norte.
(b) Apagar os rastros do golpe militar que já aconteceu, cujo desenlace final foi o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016 e os tuítes ameaçadores do general Villa Bôas ao Supremo para manter Lula preso, abrindo caminho à vitória do candidato “biônico” criado pela AMAN (Academia Militar das Agulhas Negras) com o apoio da grande mídia: o obscuro deputado do Baixo Clero e capitão da reserva Bolsonaro.
Efeito Heisenberg e o terreno humano
Essa gestão criptografada das informações pela guerra híbrida militar produz duas consequências bem visíveis:
(a) Um gigantesco efeito Heisenberg nas relações da mídia com as fontes de informação. Como este Cinegnose já vem discutindo em uma série de postagens, “efeito Heisenberg é um conceito criado pelo jornalista e crítico cultural Neal Gabler. Uma referência ao princípio da incerteza da mecânica quântica de Werner Heisenberg (1901-1976): quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem influenciá-la.
Para Gabler, a analogia se aplicaria à mídia: quanto mais ela cobre os eventos, mais ela os influencia. Na verdade, ela cobre não a realidade, mas o esforço que as pessoas fazem para obter a atenção da mídia. Em última instância, a mídia está cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida – mais sobre esse conceito, clique aqui.
No caso do affair Braga Netto, criar-se-ia o efeito análogo a um labirinto de espelhos: o ministro faz uma declaração bombástica como reflexo da cobertura extensiva da mídia em Brasília, centro do Poder; Mídia faz um meta-reflexo desse efeito, em reportagem que causa múltiplas repercussões ou reflexos; Mourão reflete de volta esse meta-reflexo, respondendo dentro do script criado pela própria mídia, a saber: como a voz moderada da ala militar e “tecla SAP” do presidente – o “tradutor” dos coices presidenciais; Braga Netto devolve esse meta-reflexo com ambiguidade. Sabendo-se que o discurso ambíguo é o principal vetor que impulsiona a psicologia dos boatos e rumores.
Em síntese: nesse jogo de reflexos no labirinto, não sabemos mais qual o objeto refletido (o suposto “real”) e qual o reflexo. Intercambialidade que gera a dissonância cognitiva, estado ideal para gerar a apatia e feito-pânico na opinião pública pela absoluta incompreensão do que está ocorrendo. Qual o fio condutor dos eventos?
O Diabo: "Vaidade... definitivamente é o meu pecado favorito" |
(b) O empoderamento do “terreno humano”. Guerra híbrida se trata de as estratégias militares abandonarem o campo de batalha para atuar no chamado “terreno humano”: explorar a vaidade, orgulho, soberba, a busca pelo prestígio e reconhecimento dos mais diversos agentes da sociedade. Em suma, aquilo que Nietzsche chamava de “demasiado humano” – a natureza humana como botão a ser apertado num dado cenário, disparando gatilhos que alcançam a meta do conflito e caos.
As autoras da “reportagem bomba” do Estadão foram Andreza Matais e Vera Rosa, respeitadas jornalistas no campo da cobertura da política em Brasília. Esse humilde blogueiro se pergunta: será que não passa na cabeça delas que estão sendo usadas numa operação psicológica militar de “vazamentos”? Assim como o jornalista Vladimir Netto da Globo, nos inúmeros vazamentos da operação Lava Jato?
Para além das questões éticas, jornalistas veem nessas oportunidades de vazamentos e notas plantadas em matérias e colunas dos jornalões uma preciosa oportunidade pessoal e profissional num meio tão competitivo como o jornalístico. Pelas repercussões alcançadas por essas “reportagens” sabem que conseguirão acumular capital simbólico para terem a legitimidade para a ascensão no campo do jornalismo – lembrando as análises do sociólogo francês Pierre Bourdieu e suas investigações sobre a importância do habitus e capital simbólico em campos culturais e profissionais altamente hierarquizados.
Como dizia Milton, o Diabo disfarçado de advogado no filme O Advogado do Diabo (1999): “Vaidade... definitivamente é o meu pecado favorito!”.