Quando o “número um” da CIA visita o País, ainda mais com toques de surpresa e segredos num momento de fervura política, o chão estremece: “um espectro ronda a América Latina!”, “planejam assassinar Nicolas Maduro!”, “Bolsonaro ameaça um golpe contra a Democracia!”, e por aí vai. O problema é que o que enxergamos é o que a mídia (seja corporativa ou progressista) cobre. Porém, a importância simbólico-tática da “visita” está em outra cena: não a cena do foco das câmeras, mas a do não-acontecimento: A CIA quando aparece não age, quando age não aparece e só aparece depois. Como ocorre agora, visando diversos objetivos de guerra híbrida. O principal: apagar os rastros das psyOps que conduziram a um golpe militar que já aconteceu e ninguém viu. Por quê foi híbrido.
O que é um “não-acontecimento”? “Não-acontecimento” é um interessante conceito do pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007). Diferenciam-se dos acontecimentos históricos (“reais”) porque são eventos cujo acontecimento é imediatamente concebido para ao contágio através da repercussão midiáticas.
Desde o início, são acontecimentos telegênicos, midiatizáveis, possuem timing, sincronismo, não obstante simularem ser espontâneos.
Para Baudrillard têm a marca do que ele chamava de “catástrofe virtual” – assim como Guerra Fria onde as bombas atômicas nunca explodiam na crescente tensão midiática das provocações entre as grandes potências, também as atuais estratégias da guerra híbrida, por meio de bombas semióticas, criam a virtualidade de crises, conspirações e ameaças - diversionismo, dissuasão, cortinas de fumaça, balões de ensaio, factoides, oportunas simulações de acontecimentos.
Repare, caro leitor, o timing dos últimos acontecimentos: quando finalmente “esquenta a chapa” de Bolsonaro com indícios dos crimes de prevaricação e corrupção na compra de vacinas Covaxin, emendado pela jogada de contra-informação na forma do cavalo de Tróia, o cabo Dominguetti, sacando em plena CPI um áudio editado de forma tosca, além da bomba semiótica de Lazaro Barbosa reforçando o imaginário da meganhagem policial e militar (clique aqui), eis quem chega em visita ao País: o diretor da Agência de Inteligência dos EUA, a infame CIA, William J. Burns.
Uma visita que causou estranheza a todos por estar fora da agenda oficial do presidente Jair Bolsonaro. O “número um” da agência participou de uma audiência com o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), Augusto Heleno, o diretor-geral da Agência Brasileira de Inteligência, Alexandre Ramagem, o ministro da Defesa, Walter Braga Netto. Para depois jantar, em petit comité, com Heleno e com o ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos.
“Uma missão delicada”... Task Force?
Burns fez uma “visita furtiva” por vários países da América do Sul (task force?), a mais alta autoridade a visitar Colômbia e Brasil desde o início do governo Joe Biden. O governo colombiano se recusou a comentar a visita, deixando para o embaixador Washington Santos a tarefa de dizer em tom misterioso de que era “uma missão delicada” e “uma missão de inteligência importante”.
Chefão da CIA no centro da foto |
Enquanto o governo brasileiro recusou-se a informar a pauta das reuniões à imprensa, preferiu “vazar” no chamado “cercadinho” onde o presidente encontra seu núcleo duro de adeptos: “analisamos coisas na América do Sul”, disse Bolsonaro.
Alexandre Ramagem veio com a conversa mole do “crescimento da importância no Brasil no cenário internacional”. Na Venezuela, o presidente Nicolas Maduro gritou que tudo seria “uma trama contra a Venezuela para assassiná-lo”.
E para a esquerda e oposição, o silêncio oficial do Governo brasileiro acendeu o fogo da conspiração: os Juristas pela Democracia, entidade autora do “superpedido” de impeachment, exigiu informações alegando “interesse público”: “a CIA tem a função de coletar informações que ameaçam a segurança nacional”, protestou a entidade. “Um espectro que ronda a América Latina”... “Bolsonaro trabalha por um golpe militar de Estado com apoio dos EUA”... e assim por diante foram declarações que alimentaram essa atmosfera de incerteza e temor quanto a “sobrevivência da democracia”.
Porém, uma voz matou a charada sobre o mistério do tour da CIA pela América do Sul. Foi a do ex-chanceler e Ministro da Defesa no governo Dilma Rousseff, Celso Amorim: “Não podemos excluir nenhuma hipótese, mas a menos provável é que ele tenha vindo aqui para tramar um golpe tipo 64. A CIA quando aparece não age, quando age não aparece, aparece depois. Fazem ações, mas não anunciam".
Celso Amorim acertou na mosca: esse é o modus operandi do não-acontecimento: o aparecimento do “número um” da CIA por aqui, em momento de temperatura elevada dos acontecimentos, se reveste muito mais de uma importância simbólico-tática do que real efetiva – quando a CIA está operando para valer, não aparece. Aparece depois, para marcar posição, praticar diversionismo. Em outras palavras, dar a impressão de que poderão fazer coisas que já fizeram há muito tempo. E, através de não-acontecimentos, apagar os rastros das suas operações anteriores.
Apagar rastros
E o quê já fizeram? Nesse momento, tanto a CIA quando o “partido militar” estão apagando os rastros das suas psyOps dos últimos anos: a guerra híbrida, cismogênese criada a partir do fenômeno pânico-boatos (fake news e pós-verdade) minando as bases deontológicas da “verdade”, desencadeando no golpe militar híbrido com a ocupação do Estado, tutelagem das altas cortes do Judiciário e a criação da “cabeça de ponte” Bolsonaro – o fusível que virtualmente será queimado.
Nesse sentido, a visita de William Burns tem mais a ver com o passado e o futuro do que com o presente: apagar as marcas das operações dos últimos anos para garantir a linha de continuidade das ações para o futuro.
Se não, vejamos:
(a) Propositalmente a pauta e agenda do chefe da CIA foi mantida em “segredo”. A ambiguidade do “nada a declarar” só dá pernas a uma não-notícia: alimenta a espiral das interpretações, especulações, ilações e “vazamentos”. Lembrem-se: a destruição das bases deontológicas da verdade e da informação é uma das especialidades das psyOps da CIA.
(b) Guerra Híbrida trata-se de criar o “caos administrado” (Andrew Korybko): saber quais os “botões certos” a serem apertados no imaginário para dar o start no piloto automático das reações. A presença repentina da CIA no momento em que o fantasma da corrupção assombra o governo Bolsonaro só alimenta uma das feridas do imaginário nacional, jamais redimida: o militarismo. Surge o espectro do golpe militar old school, com um rendimento semiótico perfeito para CIA e militares: ocultar o fato de que o golpe militar já aconteceu e ninguém viu por que não foi televisionado – foi híbrido, sob as aparências de que as instituições estão funcionando e de que a “Democracia” está em risco, enquanto ninguém está percebendo que ela já foi ferida de morte.
(c) Na Colômbia, temos o mesmo efeito: William Burns visita o presidente Iván Duque depois que um carro-bomba explode em um quartel do exército e o helicóptero que transportava Duque e ministros de Defesa sofreu ataque de disparos de armas de fogo – sugerindo psyOp militar semelhante ao famigerado atentado do Riocentro em 1981. A ordem de Duque de militarização das cidades (a assistência do Exército à polícia) e a visita da CIA ao país só alimenta esse espectro do militarismo na AL.
(d) A visita de William Burns criou o rótulo na grande mídia de “primeira alta autoridade do governo Biden a visitar o país”, como se a visita representasse algum tipo de novidade ou descontinuidade no governo do recém-empossado presidente dos EUA. Como afirmamos, esse não-acontecimento objetiva apagar as marcas das operações passadas: a continuidade da guerra híbrida Obama-Trump e, agora, Biden – o fim da doutrina das “guerras eternas” para a atuação geopolítica híbrida. Dessa maneira, esconder a linha de continuidade imperial dos governos norte-americanos.
(e) Mas o principal efeito simbólico da visita da CIA ao país está no controle total de espectro: com sinais trocados, açoda o clichê do golpe militar ao estilo hollywoodiano de república de bananas – para a extrema direita, a esperança de uma “intervenção militar constitucional” que nos salve de “ministros pedófilos” do STF; e para a esquerda o velho fantasma paralisante que a faz entrar em “frentes amplas” para não “esticar demais a corda”.
Resumindo, o não-acontecimento é antes de tudo um evento simbólico-tático. Ele atua em uma outra cena, não aquela coberta pelas análises, especulações e interpretações midiáticas corporativas.