Numa entrevista em 1969, Elis Regina chamou os militares golpistas de 1964 de “gorilas doidos varridos”. Foi detida, interrogada e condenada a cantar o hino nacional em evento patriótico. No interrogatório sobre as investigações da trama do golpe, no STF, o tenente-coronel Mauro Cid falou que o golpe só não aconteceu porque “os generais são frouxos”. Na História os fatos ocorrem duas vezes, dizia Karl Marx, a primeira vez como tragédia e depois como farsa. Se no passado Elis Regina expressava perplexidade e tensão, hoje a declaração de Mauro Cid é confortante: ele quer que pensemos que o golpe só não saiu da caderneta do General Heleno e a Democracia foi salva pela incompetência dos atuais militares. Confortante para quem? Para a Faria Lima, enquanto vê o Governo refém do maior resultado do golpe militar híbrido (que já aconteceu e ninguém viu): o arcabouço fiscal. E para a esquerda, o alívio de terceirizar a práxis política com a judicialização. Deve estar acontecendo algo de muito errado quando vemos uma esquerda que fica parada, hipnotizada diante das telas de celulares e TV, acreditando estar testemunhando a História.
Durante uma turnê na Europa, em uma entrevista na Holanda, após
ser questionada sobre a situação política do Brasil, Elis Regina declarou que o
Brasil era governado por "gorilas". E que o País era dominado por
“doidos varridos”.
Ao retornar ao Brasil, Elis foi detida por militares no aeroporto
e levada para prestar depoimentos. A "pena" imposta pelos militares
foi a obrigação de cantar o Hino Nacional durante as Olimpíadas do Exército, em
1972, em um estádio lotado.
Karl Marx dizia que na História, os fatos ocorrem duas vezes: a
primeira como tragédia; a segunda, como farsa. Pois 53 anos depois, desta vez
não numa entrevista, mas num depoimento dado no STF dentro da apuração da
tentativa militar de golpe de Estado em 2022, o réu-delator, tenente-coronel
Mauro Cid, disse que o golpe fracassou porque os generais eram “frouxos”.
Temos que reconhecer que a imagem dos militares brasileiros se
deteriorou ao logo dessas décadas, de “gorilas doidos varridos” aos “generais
frouxos” da atualidade.
Mas temos que também reconhecer que, pelo menos os “gorilas” do
passado foram bem-sucedidos em um golpe militar old fashion pondo
tanques, soldados nas ruas e cercando o Congresso Nacional. Enquanto os
“frouxos” da atualidade também pensaram num golpe de Estado old fashion,
mas... nem saiu dos planos da caderneta do general Augusto Heleno.
Para esse humilde blogueiro, pelo menos é isso que Mauro Cid quer
que pensemos: que tudo foi planejado para impedir a posse do presidente Lula
mas, na hora H, o chamado “Núcleo 1” (interrogado pelo ministro Alexandre de
Moraes nessa segunda e terça) da trama golpista não teve a coragem de executar
o plano – seja o do “Punhal Verde Amarelo”, seja a do Golpe de Estado).
Convenhamos, o discurso de Mauro Cid é confortante para todos os
lados do espectro político: para a esquerda, o alívio de que o pior não
aconteceu por “um triz”. Ainda bem que os militares brasileiros são estúpidos.
Mas a vigilância deve ser sempre mantida porque, afinal, o fascismo sempre está
no cio.
Para a extrema-direita, é
apenas a confirmação de que frouxo é Mauro Cid, um dedo-duro que não quer
perder suas prerrogativas da delação premiada. E mais uma motivação para manter
a retidão doutrinária.
Para o centrão, tudo a comemorar: enquanto o discurso de Mauro Cid
mantém a esquerda entretida e aliviada, o Congresso continua o engessamento do
Executivo com seu “parlamentarismo orçamentário” tocado por um número recorde
de policiais e militares eleitos – 44 deputados e 2 senadores – sem falar de 57
deputados estaduais que vieram de forças de segurança, comprovando a
capilaridade cada vez maior da “família militar” na sociedade brasileira.
Repetição como farsa
Certamente, esse é o ponto da repetição histórica do fato como
farsa, como dizia Karl Marx. A narrativa do golpe fracassado porque os
militares são “frouxos” tranquiliza, porque ao mesmo tempo simplifica e oculta
uma realidade mais complexa e incomoda: a de que o golpe militar já aconteceu,
concluindo um processo iniciado com o impeachment da presidenta Dilma em 2016 e
executado com a vitória eleitoral de Jair Bolsonaro em 2018 – com STF e com
tudo, que garantiu a prisão de Lula, tirando-o do páreo da corrida presencial.
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Somente que o golpe militar
aconteceu não da forma old fashion, tal como o 8/1 simulou e que
supostamente os generais não seguraram o rojão. Pelo contrário, o golpe
aconteceu de forma híbrida, sem mais “gorilas doidos varridos”, como
antigamente.
Esse Cinegnose insiste no ponto de que acompanhamos um
elaborado telecatch, um não-acontecimento da qual a Suprema Corte, que
participou do golpe militar híbrido tirando Lula do páreo eleitoral em 2018,
agora, mais uma vez, tem um papel protagonista ao colocar ironicamente como réu
o militar que ajudou a eleger. E que agora o prenderá! Sim! Bolsonaro deve ser
preso como a conclusão inevitável e coerente desse silogismo semiótico do
não-acontecimento:
(1) Prender Bolsonaro significa dar continuidade à PsyOp militar
desde que foi desfechado o golpe militar híbrido de 2016 a 2018. Primeiro,
porque apaga as digitais da historicamente recorrente intervenção das Forças
Armadas no cenário político. O discurso da “OrCrim” da grande mídia
(reproduzido pavlovianamente pela mídia alternativa) ajuda a hipernormalizar a
performance canastrona de Bolsonaro e asseclas como o general Mauro Cid –
aquele que é incapaz de deletar conteúdos sensíveis do seu celular. Uma
incapacidade tão canastrona que o jornalismo corporativo tem que normalizar com
o argumento de que fomos salvos de um golpe pela “incompetência” dos golpistas.
(2) A prisão definitivamente corrobora com a estratégia semiótica
“Nem-Nem”. Bolsonaro fica cara a cara diante do seu algoz, Xandão... assim como
Lula ficou diante do juiz Sérgio Moro em 2021.
A prisão supostamente espelharia as trajetórias de Lula e
Bolsonaro, encaixando Lula no script dos “radicalismos” equivalentes de
extrema-direita e extrema-esquerda. E liberando o discurso da “despolarização”
do candidato da Faria Lima, Tarcísio de Freitas, o Moderado. Aquele que
Malafaia e outros líderes bolsonaristas chamam oportunamente de “traidor”.
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Telecatch e não-acontecimento
Por que devemos considerar esses interrogatórios (em especial os
dessa semana) sobre a chamada “trama golpista” como um desvio da opinião
pública, um telecatch, um não-acontecimento?
(a) Passa uma mensagem tranquilizadora para a esquerda: as
instituições democráticas estão funcionando, os militares são frouxos etc.,
etc. ... mas, a extrema-direita e militares estão sempre no cio. A democracia
deve ser vigiada e defendida. Por isso, mais e mais a esquerda se apega ao
sistema, mudando a natureza da sus histórica práxis política: abandona as ruas
e a base social para terceirizar ou judicializar sua práxis política.
Não é por menos que se observa uma paradoxal inversão: para os mais
jovens, a extrema-direita cada vez mais parece ser a “rebelde”, disruptiva, “radical”
e “antissistema”. Diferente da esquerda.: abduzida pela pedagogia do medo,
alia-se com aqueles que outrora foram os seus algozes, tornando-se ironicamente
conservadora, mainstream etc.
(b) Também tranquiliza a esquerda porque oculta os deletérios
efeitos do golpe militar híbrido bem-sucedido: a capilarização do militarismo
na sociedade brasileira.
De cara, o primeiro efeito da vitória de Bolsonaro em 2018, foi a
conquista da máquina do Estado pelos militares: mais de seis mil militares
ocuparam a máquina administrativa, legado do governo Bolsonaro que o governo
Lula não enfrentou.
Sem falar na crescente capilarização da “família militar” na
sociedade: desde o serviço militar obrigatório (agora, voluntário para
mulheres) passando pela atraente estabilidade da profissão militar e policial
num país com relações trabalhistas cada vez mais precarizadas, até a
milicialização e militarização (a “meganhacização” ideológica) das polícias
militares, civis e guardas municipais.
Os militares nunca saíram da política brasileira, o que ocorreu é
que teve formas diferentes de atuação.
(c) Se há uma semelhança entre o golpe old fashion de 1964
e o híbrido atual, é a aliança com a burguesia. Lá em 1964, aliança com a burguesia
industrial, latifundiários e capital estrangeiro. E no golpe militar híbrido
atual, a burguesia financeira, agronegócio e capital rentista internacional.
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A transmissão ao vivo do interrogatório de Bolsonaro e outros
membros dos “cabeças” do golpe que não saiu da caderneta do General Heleno lembrou
a comoção que eram os últimos capítulos das novelas de Manoel Carlos na Globo.
Um conveniente telecatch para desviar a atenção das pressões da Faria Lima para
despolarizar a política brasileira, e, por consequência, acelerar o timing das
chamadas “reformas estruturais” neoliberais: primeiro, a redução do Estado à
sua função mínima, a repressiva – é sintomática, por exemplo, a visita do
prefeito de BH, Álvaro Damião, a Israel para conhecer “os modelos avançados de
segurança pública que possam ser adaptados para a capital mineira” – clique aqui.
Além disso, enquanto temos corações e mentes absorvidos pela trama
do golpe, a lenta agonia do Governo refém do arcabouço fiscal (um dos
principais resultados do golpe militar híbrido) acontece longe das telas da TV:
Haddad faz longas reuniões com as lideranças do Congresso em busca de
alternativas ao IOF que o mercado rejeitou – e propositalmente o Congresso quer
arrastar o ministro da Fazenda ao impasse.
E segundo, o apoio a um nome como Milei na Argentina, “libertário”,
anarcocapitalista e partidário do capitalismo de choque. E esse nome é Tarcísio
de Freitas que deve ser gestado e preparado longe da atenção das esquerdas,
hipnotizadas pela ação política judicializada.
E convenhamos, caro leitor desse Cinegnose. Nenhuma
revolução ou golpe militar será televisionado como fosse um thriller político
ou um emocionante confronto de inimigos. Se a grande mídia transmite ao vivo a
tentativa de golpe de 2003 e, depois, os interrogatórios dos seus mentores,
somente podemos entender como uma calculada estratégia criar um certo impacto
cognitivo na opinião pública.
Fatos com a verdadeira densidade histórica não são
televisionáveis, telegênicos ou transparentes. Eventos de natureza histórica
são tão disruptivos que ameaçam ao próprio sistema ao qual as grandes mídias
servem. Por isso, eventos históricos ou são ocultados ou ressemantizados por
meio da pesada retórica e artifícios semióticos.
Portanto, a História sempre foge da transparência midiática.
Deve estar acontecendo algo de muito errado quando vemos uma esquerda que fica parada, hipnotizada diante das telas de celulares e TV, acreditando estar testemunhando a História.