Imagine o filme “O Clube da Luta” filmado não em uma paisagem urbana decadente, mas em uma idílica e ensolarada praia na costa australiana. Esse é o filme “O Surfista” (The Surfer, 2024), mais uma produção em que Nicolas Cage faz um personagem que abandona a sua vida pequeno-burguesa para mergulhar no poço da loucura, surrealismo e estranheza. Um homem de meia-idade que busca se reconectar com suas raízes na esperança de comprar a antiga casa da família e mostrar ao filho adolescente as alegrias do surfe. Mas Cage é impedido e hostilizado por surfistas valentões guiados por um líder de uma espécie de seita exclusivista masculina cujo mote é “Surfar, Sofrer!” – através da dor e violência recuperar a essência masculinidade perdida numa sociedade que se tornou decadente, consumista e feminizou-se. A identidade masculina está em crise desde o Pós-Guerra. Mas no século XXI transformou-se em outra coisa: no machismo renitente.
A identidade masculina está em crise. Agoniza desde o Pós-Guerra
no século XX. E tudo começou com a consolidação da família nuclear (a família
reduzida debaixo de um mesmo teto, ao seu núcleo: pai, mãe e um ou dois filhos)
e as primeiras gerações que vivenciaram a ausência parental simbólica ou
presencial – reduzido os rendimentos salariais pelas rápidas transformações
corporativas, a mãe é também obrigada a trabalhar fora. Deixando os filhos
diante da tela de TV, a chamada “babá eletrônica”.
Para começar, a identidade masculina provedora é colocada em xeque,
com as mulheres tendo uma vida profissional e financeira autônoma. Também
colocando em xeque todo o arcabouço moral e de autoridade patriarcal.
A pílula anticoncepcional na década de 1960, separando no sexo o
desejo da reprodução, foi o golpe decisivo na masculinidade patriarcal – o
crescimento do feminismo e a busca da satisfação sexual da mulher.
A partir desse ponto, as rápidas transformações da cultura pop,
das relações familiares e das culturas corporativas continuaram a colocar a
identidade masculina em crise no trabalho, na família e no cinema e
audiovisual. A procura de um novo homem e das relações de gênero igualitárias.
O filme O Clube da Luta, de 1999, foi a resposta ambígua
para o mal-estar da masculinidade, apontando para uma identidade do macho
nostálgica e renitente que dominaria o século XXI: de uma lado, uma ácida
crítica do consumismo e alienação corporativa e social. E, do outro, a
figura de Tyler Durden que busca a
essência de uma masculinidade perdida em uma sociedade de que se feminilizou, usando o Clube da Luta para a recuperação da
identidade pela luta, força física e, principalmente, a dor como ferramenta
pedagógica.
![]() |
O Surfista (The Surfer,
2024), do diretor Lorcan Finnegan (Vivarium) é outra produção
cinematográfica que expõe essa masculinidade renitente e nostálgica. Mas de
forma ambígua e com um traço de ironia e estranheza. O Surfista é um
filme estranho sobre um herói anônimo que aos poucos afunda na alucinação e
loucura sob o sol escaldante da costa australiana. E o ator é, nada mais, nada
menos, do que Nicolas Cage – nos últimos anos ele vem se especializando em
roteiros estranhos e personagens instáveis e pouco confiáveis.
Cage, o surfista, faz o personagem-título, um homem de meia-idade
que busca se reconectar com suas raízes na costa australiana. Na esperança de
comprar a antiga casa da família e mostrar ao filho adolescente as alegrias do
surfe. Mas Cage é impedido e hostilizado por um grupo de moradores locais guiados
por um líder de uma espécie de seita (os “Bay Boys”), de fala mansa, mas ameaçador.
“Você não mora aqui, você não surfa aqui”, desafia um integrante
de uma seita exclusivista e masculina que ameaça qualquer um que queira surfar
nas ondas perfeitas daquela praia da infância de Cage. Uma seita cuja filosofia
é resumida num mantra que repetem em rituais noturnos em torno de uma fogueira
fumando ervas alucinógenas: “surfar, sofrer, surfar, sofrer!”. Repete o grupo
cuja pele é marcada o símbolo da seita com ferro em brasa, em um batismo de dor
e violência.
Clube da Luta se encontra
com o surfe. Os Bay Boys aterrorizam o surfista, despojando-o gradualmente de
seus bens que lhe conferem status — relógio, celular e carro — devolvendo-o
lentamente ao estado natural. E entre seus tormentos e o calor opressivo, o
surfista perde gradualmente o contato com a realidade, com o filme se
inclinando cada vez mais para visuais nebulosos, alucinantes e psicodélicos. Ao
ponto de nos perguntarmos: com um protagonista tão pouco confiável, será que
tudo é um produto da cabeça dele?
![]() |
Como na maioria de seus filmes, o principal fator que impulsiona O
Surfista é a atuação de Cage e a curiosidade sobre o quão exagerado estranho ele se tornará em seu mergulho no caos. Como também acontece na maioria desses
filmes, seu trabalho é o melhor de tudo. O filme é focado em mapear a angústia
de seu personagem por ter se reconstruído após uma tragédia humilhante do
passado, possivelmente perdendo tudo novamente. Sua determinação em impedir que
isso aconteça apenas acelera sua decadência.
O surfista é um homem decadente, humilhado pelo fracasso do seu
casamento e agora por um grupo de surfistas valentões detestáveis, de roupa de
mergulho, violentos e hostis a forasteiros. Justamente quando tenta comprar uma
casa de frente para a praia com um dinheiro que não tem, para tentar reconectar
sua identidade com uma infância idílica.
Assim como O Clube da Luta, O Surfista traz uma
mensagem ambígua: de um lado, oferece uma mensagem anticonsumismo (a oposição
entre a vida pequeno-burguesa de Cage e a fluidez das manobras do surfe), por
outro temos uma seita com um líder que reivindica os direitos masculinos contra
uma sociedade acomodada e decadente: “Se isso os impede de tirar o Botox das
esposas à força, que assim seja”, adverte o líder.
O Filme
Cage interpreta um homem que cresceu em uma pequena cidade no
litoral australiano até que uma tragédia familiar o mandou para os EUA por
várias décadas. No início do filme, ele finalmente voltou para casa e está
dirigindo com seu filho (Finn Little) com dois propósitos em mente: levar o
menino para surfar as ondas que ele costumava surfar há muito tempo e mostrar a
ele a casa que pertencia à sua família e que ele está atualmente negociando
para recomprar.
![]() |
O primeiro problema é que Cage não tem o dinheiro, e depende de
uma negociação de financiamento que ele tenta resolver pelo seu celular.
Enquanto um concorrente está oferecendo ao corretor o valor em dinheiro vivo.
Tenta convencer seu filho a surfar com ele, dirigindo por um
trecho da costa australiana enquanto profere um monólogo sobre a importância
existencial do surfe. Ao perceber a indiferença do filho (tudo o que ele quer é
voltar para casa) em tom de brincadeira, o repreende por não reagir com mais
veemência ao seu "melhor discurso sobre o surfe como metáfora da
vida".
Depois que o surfista e seu filho são expulsos da praia por um
grupo de surfistas membros locais de um grupo conhecidos como Bay Boys, nosso
herói passa o resto do filme andando furioso de um lado para o outro no
estacionamento da praia, em um impasse com esse bando de caras musculosos. O
surfista cresceu surfando nessas ondas, mas se mudou para os EUA há muito tempo
e voltou para reivindicar a casa que pertenceu ao seu avô.
Mas, embora ele ainda considere este lugar como "lar", o
filme logo enfatiza todas as pequenas coisas burguesas que agora o marcam: um
zoom acusatório em suas mãos enquanto elas ligam o ar-condicionado de seu Lexus
reluzente ou tocam em seu smartphone para pagar um café em um quiosque local.
Por que Cage quer tento reconectar-se com suas raízes? Porque sua
vida pequeno burguesa fracassou: sua esposa quer a separação e já está grávida
de outro homem, seu filho é distante, enquanto os anos dedicados ao trabalho
nos EUA deram em nada: fracasso familiar e depender de crédito para recomprar a
casa da sua infância.
![]() |
A narrativa é pontuada por imagens dos animais selvagens locais,
como lagartos, pássaros e serpentes. São como profecias daquilo que o espera.
Como aos poucos ele será destituído de todos os gadgets que o ligam à
civilização: o smartphone, o carro luxuoso, seu emprego etc., exposto à
insolação, sem dinheiro, tendo que revirar o lixo dos quiosques e,
ocasionalmente, lamber poças de cerveja derrubadas no piso do estacionamento. Ele
está retrocedendo à vida selvagem. Para se manter vivo para cumprir a sua ideia
obsessiva de vencer aquele grupo de valentões e comprar a casa de praia.
Os Bay Boys são uma espécie de seita corporativa, formada por
gerentes, executivos e policiais locais, em busca da “verdade”: reivindicar
seus direitos masculinos numa cultura politicamente correta. São uma horda
de guerreiros corporativos rosnadores e resmungões liderados por um tipo de líder
chamado Scally (Julian McMahon), que gosta de falar liricamente sobre a
necessidade dos homens modernos se reconectarem com sua natureza animalesca que
a sociedade os forçou a abandonar.
O ponto alto do filme (a especialidade de Nicolas Cage nesses últimos anos) é a progressiva perda de orientação e a descida à loucura quanto mais ele perde as conexões com a civilização tecnológica e consumista. Ao ponto dele (e por tabela o espectador) colocar em dúvida quem ele já foi: "será que realmente eu tive um emprego, um Lexus, um smartphone etc. Será que tudo é apenas alucinação?", o surfista chega a questionar a si próprio.
Essa sensação de desorientação é agravada pelo estilo de filmagem
de Finnegan, que evoca uma sensação semelhante de descontrole hiper-realista
por meio de closes com lentes grande-angulares, cinematografia supersaturada a
trilha sonora jazzística percussiva de François Tétaz. A tela cintila e ondula
com tensão e calor. Embora o final pareça um pouco improvisado, o filme, em sua
maior parte, proporciona emoções psicológicas precisamente ajustadas. É o
equivalente cinematográfico de uma insolação sob o sol da Austrália.
O Surfista é sobre até
onde um homem está disposto a ir para obter o que acredita ser seu por direito,
e a distorção da identidade de alguém diante de dificuldades e crueldade.
Começa previsível, com os seus clichês sobre o surfe. Mas vai ficado
cada vez mais estranho. Aparentemente interminável, as humilhações impostas ao
homem se tornam tão repetitivas que aguardamos um final que lembraria as cenas
finais de Taxi Driver combinando violência brutal e catarse irônica. Mas
o que vemos é completamente diferente.
O roteiro de Thomas Martin hesita, incapaz de decidir se nos oferece
uma demonstração de vingança sangrenta ou um final feliz com toques de ironia. Acaba
nos oferecendo ambos, nas não consegue se sair bem em nenhum deles.
Ainda assim, as explosões frenéticas de Cage são tão completamente
absurdas e tão sublimemente “estilo-Cage” que O Surfista consegue
surfar em uma onda de boas vibrações que compensa a conclusão imprecisa do
filme. Com uma atuação comprometida, louca e brilhantemente calibrada de Cage, no
final das contas O Surfista é um suspense febrilmente bom: surreal e estranho.
Mas ao mesmo tempo um alerta para a crise da identidade masculina
que nesse século transforma-se no machismo renitente, inconformado e
nostálgico que acaba se transformando em ferramenta política para criação de
cismogêneses e guerras culturais de extrema-direita.
Enquanto não entendermos que a crise da identidade masculina é
menos decorrente de algum tipo de complô
cultural contra a masculinidade e muito mais decorrente das transformações das
relações de trabalho e a pauperização da força de trabalho no Capitalismo, o
machismo renitente continuará sendo uma arma política de extrema-direita.
Ficha Técnica |
Título: O
Surfista |
Diretor: Lorcan Finnegan |
Roteiro: Thomas Martin |
Elenco: Nicolas Cage, Fin Little,
Rahel Romann, Julian McMahon |
Produção: Lionsgate |
Distribuição: Lionsgate |
Ano: 2024 |
País: Austrália, EUA |