Memes, fake news, boatos são formas parasitárias de um ecossistema de informação que por si só já cria desinformação. Em 1998 o filósofo francês Paul Virilio foi profético ao antever para esse século o fenômeno da “desinformação virtual” criado pela informação on line e em tempo real. Fenômeno confirmado pelo chamado “Efeito Dunning-Krueger” (a ignorância que ganha confiança na Internet) e o “Efeito Heisenberg” (a mídia que mostra nada mais do que os efeitos que sua própria cobertura provoca na sociedade). O episódio dos chamados “sommeliers de vacina” é apenas a ponta do iceberg de um fenômeno (des)informacional mais amplo: o da “pós-verdade”, fenômeno-pânico em que as bases deontológicas da verdade desapareceram pela suposta democratização da informação.
Lá nos anos 1950, já no final da sua vida, em entrevista Albert Einstein afirmou que no século XX três bombas explodiram no mundo: a primeira bomba teria sido a demográfica; a segunda, a nuclear; e a terceira bomba a das telecomunicações. Ele estava certo: essa última foi uma das mais impactantes do último século ao criar a revolução temporal do “ao vivo” e, mais tarde, com a revolução cibernética das telecomunicações, o “tempo real” e dos serviços “on line”.
O urbanista e filósofo francês Paul Virilio talvez seja o pensador que melhor entendeu esse diagnóstico de Einstein. Autor de numerosos livros e ensaios sobre tecnologia, guerra, logística e estética (mas principalmente como esses conceitos historicamente se inter-relacionam), na sua obra “A Bomba Informática” de 1998, Virilio foi profético em relação aos efeitos “radiativos” dessa bomba. Efeitos que testemunhamos no século XXI, com a ameaça da Democracia e da Política pelo tempo real cibernético global:
Com efeito, com a globalização em tempo real das telecomunicações, cujo modelo selvagem é a Internet, a revolução da informação revela-se como uma delação sistemática que provoca um fenômeno-pânico de boatos, suspeitas, o qual está prestes a minar as bases deontológicas da “verdade”, e, portanto, da liberdade de imprensa como todos puderam testemunhar no caso Clinton/Lewinsky: dúvidas sobre a veracidade dos fatos enunciados/denunciados, manipulação descontrolada das fontes e, portanto, da própria opinião pública, que constituem outras tantas mostras de que a revolução da informação real é igualmente a da desinformação virtual e, pois, da história que está sendo escrita.
Radioatividade dos elementos da matéria, interatividade dos componentes da informação , os danos da radiação são discretos e múltiplos até a contaminação geral. (VIRILIO, Paul. "A Bomba Informática", São Paulo: Estação Liberdade, 1999, p.106).
Para Virilio todo progresso tecnológico produz um novo tipo de acidente: se o trem produziu o descarrilamento e o avião o acidente aéreo, as tecnologias da informação em tempo real produzem a desinformação virtual nas suas mais diversas manifestações “radioativas”. Lá em 1998, boatos, efeito-pânico dos crashs financeiros. E aqui nesse século, o negacionismo, fake news, pós-verdades etc.
Porém, Virilio foi visionário ao vislumbrar a possibilidade da contaminação mais geral da crise das “bases deontológicas da verdade”, isto é, a crise do princípio lógico da sequência de atos ou meios que asseguram a verdade dos enunciados a fim de descobrir de evitar erros. Hoje, a contaminação generalizada que está levando à morte da verdade (científica, filosófica, semiótica etc.) dos enunciados, discursos e narrativas através do relativismo como arma de desconstrução como arma principalmente política do extremismo de direita alt-right.
Como a informação real produz o acidente da desinformação virtual? Um pequeno exemplo estamos acompanhando com o fenômeno dos chamados “sommeliers de vacina”, versão light do negacionismo hardcore – aqueles que querem escolher qual imunizante tomar contra a Covid-19. Com álibis dos mais variados: do pragmático (necessidade de viagem para o Exterior), ideológicos (vacinas “comunistas”) a conspiratórios (reação magnética após a dose).
Esse humilde blogueiro acompanhou as mais diversas campanhas de vacinação, desde a meningite nos anos 1970 (que a ditadura militar tentou encobrir até não mais conseguir pela gravidade da explosão de casos) e nunca testemunhou tal tipo de comportamento... vacina é vacina! Sempre se pensou dessa forma e a humanidade reagiu a prosperou diante de epidemias e pandemias.
Paul Virilio |
Hoje, com a globalização midiática e a circulação interativa das informações em tempo real, seria impossível esconder uma catástrofe sanitária. O mundo vem acompanhando, passo a passo, as informações do crescimento da pandemia COVID-19 desde o seu surgimento no início. “Politização das vacinas” é apenas a ponta do iceberg de uma questão mais profunda que Virilio define como efeito de “delação sistemática” produzida pela informação on line e em tempo real que pode ser explicada por dois efeitos: o Dunning-Kruger e o Heisenberg.
Efeito Dunning-Kruger
Indivíduos com pouco conhecimento sobre um assunto acreditam saber mais do que especialistas por estarem constantemente abastecidos midiaticamente por clichês, sofismas e frases prontas. O que reforça ainda mais a ignorância, ao ponto de se tornar incapaz em reconhecer o próprio erro, como demonstraram pesquisas na Universidade de Cornell em 1999. Esse é o chamado Efeito Dunning-Kruger – clique aqui.
É um mecanismo da ilusão de superioridade no qual paradoxalmente a ignorância gera confiança com mais frequência do que o conhecimento.
As informações disponíveis on line e em tempo real geraram uma distorção na relação informação-conhecimento. Enquanto no passado o conhecimento era produzido pela acumulação de informações numa linha euclidiana para produzir o conhecimento, hoje com a revolução das comunicações as informações circulam em movimento helicoidal – movem-se numa sobreposição circular em movimento helicoide onde essas frases feitas e sofismas repetem-se, mas ainda assim se movimentam no tempo. Criando a ilusão de acumulação de conhecimento.
Enquanto cientistas e especialistas orientam-se metodologicamente pela acumulação de dados e informações, os usuários da revolução cibernética circulam nesse espaço-tempo helicoidal.
Daí vem a paradoxal confiança ignorante, agravada ainda mais pelo efeito bolha em redes sociais e mecanismo de busca na Internet: os algoritmos apenas reforçam predisposições, criando uma ilusão de acumulação de conhecimento.
Esse é o “sommelier de vacina”, contaminado pela “radioatividade” da bomba informática. Ponta do fenômeno mais amplo da pós-verdade: a modelagem da opinião pública na qual os fatos têm menos influência do que o apelo às emoções e crenças pessoais.
Aparentemente isso pode não ser uma novidade, desde que Walter Lippmann publicou o livro “Opinião Pública” em 1922. Porém, o que temos nesse século é a quebra do eixo da simetria do tempo: da acumulação para a circulação na qual a velocidade em tempo real cria a ilusão de conhecimento.
Efeito Heisenberg
Mas a desinformação virtual descrita por Virilio tem um outro componente: o Efeito Heisenberg.
Conceito criado pelo jornalista e crítico cultural Neal Gabler, o “efeito Heisenberg” é uma referência ao princípio da incerteza da mecânica quântica de Werner Heisenberg (1901-1976): quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem influenciá-la.
Para Gabler o resultado da onipresença das mídias teria sido transformar a sociedade em um gigantesco Efeito Heisenberg. Nas palavras dele:
As mídias não estavam de fato relatando o que as pessoas faziam; estavam relatando o que as pessoas faziam para obter a atenção da mídia. Em outras palavras, à medida que a vida estava sendo vivida cada vez mais para a mídia, esta estava cada vez mais cobrindo a si mesma e o seu impacto sobre a vida” (GABLER, Neal. “Vida, O Filme”. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 97).
Pfizer, AstraZeneca, CoronaVac, Janssen... Diariamente os nomes dos imunizantes se sucedem em todas as mídias nos mais diversos contextos possíveis: científico, político, denúncias, controvérsias. Submetidos a essa nova simetria helicoidal do tempo, a recepção da informação é fragmentada. Muitas vezes seletiva, no limite do reforço das predisposições pessoais.
Todo o didatismo para explicar as tecnologias distintas de fabricação dos imunizantes (RNA mensageiro, mRNA, adenovírus, vírus inativado, porcentagens de eficácia, segurança etc.) resulta num efeito paradoxalmente contrário: a desinformação pelo excesso de informação circulante – nomes de imunizantes transformam-se em rótulos com valor especulativo de mercado como fossem mercadoria qualquer.
As informações na midiosfera não são acumulativas, numa forma didático-pedagógica, como fosse uma biblioteca na qual os volumes de informações são justapostos e indexados – a suposta função educativa da liberdade de imprensa na sociedade. Pelo contrário, as informações circulam, movem-se em espirais especulativas até perder à forma inicial, entrando em entropia, caos, cujo efeito residual é o boato, pânico etc.
“A mais alta pressão da informação corresponde a mais baixa pressão do acontecimento e do real”, dizia o pensador francês Jean Baudrillard. Vanish point em que a informação se transforma em desinformação.
Memes, boatos e fake news são apenas formas parasitárias de um ecossistema que os alimenta. Um ecossistema em que o eixo da simetria do tempo não produz mais conhecimento, mas apenas espirais especulativas. Move-se no tempo, porém sem acumular conhecimento.
Por isso, o escândalo moral da mídia diante do fenômeno dos “sommeliers de vacina” é tão falso quanto as fake news que supostamente combate. Porque esses “sommeliers” são nada mais do que um flagrante Efeito Heisenberg: as reportagens em tom de denúncia apenas registram o efeito da própria cobertura midiática de tudo que envolve a crise sanitária e a novela das vacinas.
No final, “sommeliers de vacina” não é uma notícia: é a mídia falando sobre si mesma.