segunda-feira, fevereiro 25, 2013
Wilson Roberto Vieira Ferreira
Premiado com o Oscar de melhor filme, roteiro adaptado e edição, o filme “Argo” (2012), dirigido e
estrelado por Ben Affleck, se integra a uma tendência atual de filmes voltados
aos anos 1970 (“Super 8”, “Um Olhar do Paraíso” etc.), dessa vez recriando a
trama real do resgate pela CIA de seis diplomatas americanos durante a revolução
iraniana de 1979 liderada por Ruhollah Khomeini. O filme parece confirmar uma
estratégia de resposta imaginária da indústria do entretenimento a cada crise:
se nos anos 80 reagiram com a nostalgia das décadas de 1950, agora diante da
crise financeira global temos a nostalgia pelos temas da década de 1970. Tudo
isso como espécie de reafirmação patriótica: “Sim! Ainda somos poderosos, mesmo
com toda crise financeira real ainda dominamos o mundo imaginário, a nossa
maior arma”.
A década de 1970 não foi fácil
para a política externa norte-americana: a humilhante retirada do Vietnã, a
escalada da crise do petróleo e, para culminar, a crise dos 52 diplomatas norte
americanos mantidos como reféns por 444 dias após a embaixada dos EUA no Irã
ser invadida por uma massa enfurecida em plena revolução iraniana de 1979.
Paralelo a esses problemas do
mundo real, sabemos que, mais do que qualquer outro lugar no mundo, os EUA
produziram uma cultura onde o entretenimento invadiu todos os setores da
sociedade até o momento em que as pessoas passam a ser felizes por reviverem
fragmentos do passado por meio das imagens ao invés de enfrentar a realidade
diária.
É notório como a indústria do
entretenimento norte-americana responde no plano do imaginário às crises
políticas e econômicas vividas pelo país desde os anos 1970: primeiro,
retornando a imagerie da década de
1950 como os anos dourados e míticos fundadores da autoconfiança americana –
desde à retro-fantasia de Star Wars, filmes como “De Volta para o Futuro”,
“Peggy Sue Got Married”, “Grease”, “American Graffity”, “Forrest Gump”,
“Pleasantville” etc. À crise de autoconfiança, a indústria do entretenimento
sugere uma nostalgia paradoxal: ter saudades de épocas que, afinal, não
vivemos.
Em resposta à crise financeira
global iniciada em 2008 após a explosão da bolha imobiliária nos EUA, Hollywood
empreende uma nova onda nostálgica, dessa vez voltada aos anos 1970-80: filmes
como “Super 8” (um mix de “Os Goonies” com “ET”), “Um Olha do Paraíso”, “Black
Dynamite”, “The Runways” e todo o pastiche dos anos 1970 de “Kill Bill” de
Quantin Tarantino.
O filme “Argo”, dirigido e
estrelado por Ben Affleck se insere nessa tendência ao explorar um fato real
que envolveu a crise dos reféns no Irã – o caso dos seis funcionários que
conseguiram fugir da embaixada dos EUA e se esconderam na casa do embaixador
canadense em Teerã. Como retirá-los em meio à crise da Revolução Iraniana e ameaçados
de execução pública se fossem localizados pelas milícias revolucionárias? A CIA
aceita a “a melhor pior ideia que temos” do agente secreto Tony Mendez (Ben
Affleck): a criação de um falso filme (uma ficção científica chamada “Argo”) a
partir de uma produtora fake criada
pela CIA em Hollywood dirigida por John Chambers (John Goodman, interpretando o
maquiador que ganhou o Oscar pelo trabalho em “Planeta dos Macacos” em 1969) e
um veterano produtor chamado Lester Siegel (Alan Arkin).
Equipes de produção
cinematográfica costumam viajar pelo mundo em busca de locações exóticas, o que
explicaria a suposta entrada e saída daquele grupo no Irã. A vida deles dependerá
de que interpretem de forma convincente os papéis de cenógrafos, produtores,
fotógrafos e iluminadores, para que enganem as autoridades iranianas e consigam
escapar pelo aeroporto. Tony Mendez chega ao Irã munido de passaportes
canadenses falsos, story boards e o
roteiro de um filme que jamais será feito.
As armas imaginárias
dos EUA
É visível o fascínio que a
década de 1970 exerce sobre o diretor em uma reconstituição visual perfeita: os
constantes planos fechados nas tecnologias analógicas de comunicação (telefones
fixos, teletipos, matrizes de impressão
de documentos na embaixada dos EUA, etc.) páginas da revista do show business “Variety”
como a principal fonte de informações dos iranianos sobre a autenticidade da
produção do suposto sci fi canadense “Argo”, os figurinos e as músicas na época
ouvida pelos personagens.
Aliás, essa estratégia de resgate
somente daria certo em um ambiente ainda estruturado por tecnologias analógicas
de comunicação. Fontes de informação on
line e em tempo real facilmente desmascarariam os planos da CIA. Por isso Bem
Affleck lança um olhar ideologicamente nostálgico para uma época em que
supostamente os esforços individuais e o idealismo superavam as tecnologias.
Mas “Argo” vai além: nas
entrelinhas mostra que a verdadeira e mais poderosa dos EUA sempre foram o
entretenimento e a ilusão. Desde que o Departamento de Estado se aliou à
Hollywood durante a Segunda Guerra Mundial, os EUA irradiaram para o mundo o vírus
das narrativas ficcionais que contaminaram as nossas percepções sobre a vida.
Isso é ironicamente demonstrado
no filme quando o agente Tony Mendez, travestido de produtor canadense com
story boards e o roteiro do filme “Argo” debaixo do braço, se apresenta a um
funcionário do Ministério da Cultura iraniano e explica a necessidade de busca
por locações históricas para rodar o filme: “lugares históricos, entendo! O
oriente exótico... cobras encantadas, tapetes voadores... a função do nosso
escritório é a purificação, mas também a promoção da arte. Vou levar isso ao
ministro”.
Um revolucionário muçulmano
xiita, que luta contra os filmes pornográficos que dominavam anteriormente o
Irã, fica fascinado com o pastiche de “Argo”, um mix de exotismo oriental
hollywoodiano com sci fi retro. Nessa
linha de diálogo está evidente o poder de penetração da sintaxe audiovisual da
indústria do entretenimento norte-americana: sem saberem, os revolucionários
sob o comando do aiatolá Khomeini já estavam derrotados desde o início por um
dispositivo mais insidioso que embaixadas, armas de fogo, força aérea e bombas:
o dispositivo subliminar de ficção audiovisual irradiado há décadas para
todo o planeta.
O verdadeiro poder dos EUA nunca
esteve na imposição de conteúdos (o
chamado “american way of life”), mas na globalização de uma forma de tradução audiovisual de toda e
qualquer cultura (o que chamamos hoje de “multiculturalismo”) por critérios
formais, abstratos e, por isso, adaptáveis a qualquer país: consumo
individualizado, personalização, exotismo, fotogenia, estereotipagem, estandartização
etc. (veja MATTELART, Armand. A
Globalização da Comunicação. Edusc, 2000).
O entretenimento passa a
contaminar a vida na medida em que passamos a perceber a nós mesmos e a cultura
a partir de estilizações anteriormente feitas pelas mídias.
Quando o Ministério da Cultura
do Irã vê os seus lugares históricos como “exóticos”, então todo o tempo
histórico foi pulverizado pelo tempo do entretenimento. Ou seja, a estratégia real
da CIA de resgate de americanos baseada em um filme fake canadense somente deu
certo, também, porque corações e mentes iranianos já foram desde muito tempo
conquistados pelo “multiculturalismo” hollywoodiano. Nem todo fundamentalismo
xiita do islamismo seria capaz de fazer frente à sedução audiovisual do
universo ficcional.
Nesse sentido, toda a
metalinguagem do filme “Argo” (um filme que fala sobre uma falsa produção
cinematográfica) é uma reafirmação patriótica dessa grande arma
norte-americana, a sua indústria do entretenimento, onde nos anos 1970 foi
capaz de resgatar americanos em um país longínquo e, agora, é a resposta à
crise financeira global: “Sim! Ainda somos poderosos, mesmo com toda crise
financeira no mundo real ainda dominamos o imaginário”, parece afirmar o filme “Argo”
a cada minuto.
A Vida Simula a
Ficção
Mas o que é estimulante à discussão no filme “Argo” é a
paradoxal situação onde o real tenta simular uma ficção, isto é, uma estratégia
de espionagem da CIA simula a produção de um filme de ficção científica. Não é
novidade dizer que todo o universo ficcional tenta simular a realidade por meio
da verossimilhança, da narrativa em realismo cinematográfico e efeitos
especiais. Mas o filme “Argo” apresenta uma tática inversa: um momento onde a
realidade pretende simular um evento ficcional.
Tal qual o filme “Mera
Coincidência” (Wag The Dog, 1997) onde um produtor de Hollywood cria uma guerra
falsa para ajudar a reeleger o presidente dos EUA, em “Argo” a imprensa tem um
papel fundamental para os planos da CIA: “Uma vez fiz um filme com Rock
Hudson... se quer vender uma mentira, deixe a Imprensa vendê-la para você”, diz o produtor Lester Siegel para ilustrar como a imprensa morde fácil qualquer isca oferecida, sem checar a autenticidade.
Uma coletiva de imprensa é
convocada, o roteiro de Argo é lido e os jornalistas divulgam como notícia. Se
foi noticiado, então é real! Nem os muçulmanos xiitas estão imunes a essa nova
ontologia da cultura midiática: quando a própria realidade começa a simular a
ficção, fecha-se um círculo infernal, um jogo de espelhos onde não sabemos mais
o que é o reflexo e o que é refletido. Na cultura pragmática midiática pouco
importa a verdade ou a mentira. O que importa é que produz efeitos reais.
Ficha Técnica
Título: Argo
Diretor: Ben Affleck
Roteiro:
Chris Terrio
Elenco: Ben
Affleck, John Goodman, Bryan Craston, Alan Arkin, Clea DuVall
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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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