segunda-feira, julho 27, 2020

De predador o alien se transforma em metáfora política no filme "Sputnik"


Aliens como criaturas que parasitam o corpo humano são famosos no gênero sci-fi desde o clássico “Alien” (1979), de Ridley Scott. Mas na produção russa “Sputnik” (2020), a criatura não é mais um predador, mas agora um sobrevivente. Para ganhar o status de uma poderosa metáfora política. No auge da Guerra Fria, cosmonautas soviéticos sofrem um estranho incidente em órbita, para um deles retornar carregando em seu corpo um parasita. Que se alimenta do medo (mais especificamente, o cortisol, hormônio produzido pelo cérebro), a matéria-prima de toda propaganda política, principalmente no regime totalitário soviético. Num planeta onde historicamente o medo sempre foi a principal emoção no qual se fundamenta a submissão política, a criatura extraterrestre encontrará uma alimentação farta... Filme sugerido pelo nosso leitor Alexandre Von Keuken.

Todo o movimento político, filosófico e econômico do Iluminismo no século XVIII buscava uma reforma da sociedade por meio do pensamento racional – jogar a luz da Razão sobre as trevas da ignorância, do medo e do ódio, condição e emoções sobre as quais se fundaram os poderes eclesiásticos e o teocentrismo como princípio organizador da sociedade.

Porém, por toda a História a raiva e o medo sempre foram mais potentes do que a Razão, principalmente com força aglutinadora e de submissão política. Embora a raiva seja politicamente mais potente do que o medo (p. ex. canalizar o ódio contra inimigos externos de um grupo), é o segundo tipo de emoção que domina o discurso político, principalmente na era da propaganda de massas.

O qualificador “temente a Deus”, comumente usado entre os cristãos, ilustra bem isso. No uso mais secular e político do medo, temos no “Leviatã” de Thomas Hobbes, o medo como ferramenta de autoridade política para as pessoas endossarem a autoridade do Estado – trocar a liberdade pela segurança.

A ascensão das técnicas da Propaganda e das Relações Públicas soterraram de vez a pretensão iluminista da Razão como princípio organizador social – a ascensão do nazi-fascismo e a Guerra Fria no século XX mostraram como o medo acaba submetendo as massas a qualquer plot político.

O estado permanente de medo e ansiedade mantém uma sociedade inteira mobilizada em manter um determinado status quo que pretensamente a protegeria. Esse é o efeito político-cognitivo. E o efeito neuronal é a produção de cortisol que inibe as sinapses da região do hipocampo, aumentando o tamanho e atividade da amígdala, responsável pelo processamento do medo, da percepção da ameaça e da reposta de luta ou fuga.

Esse mix de neurologia e política é o pressuposto da produção russa Sputnik (2020), um terror sci-fi ambientado em 1983 na extinta União Soviética. No filme o leitor encontrará ecos de Alien, de Ridley Scott. Só que esse alien russo não é um predador, mas um sobrevivente. 


Inadvertidamente, esse alien (com design que lembra bastante a criatura do filme Cloverfield) cai na Terra junto com cosmonautas soviéticos que retornam da órbita terrestre.  Rapidamente, a criatura descobre um alimento que o cérebro humano produz sob o medo: o cortisol. 

E o alien teve a sorte de cair em um sistema político gerido pela Guerra Fria cuja matéria-prima é justamente o medo – o regime totalitário soviético de prisões políticas, delações e ansiedade trazidas pela corrida espacial, armamentista e nuclear.

Não é necessário dizer que ele terá uma rica fonte de alimento para prosperar em nosso planeta.



Sputnik estava programado para ter sua estreia mundial na Seção da Meia-Noite no Festival de Cinema de Tribeca 2020. Mas a crise da pandemia COVID-19 adiou os planos e o filme acabou sendo lançado nas plataformas digitais russas em abril.

Sputnik é a expansão das ideias do curta The Passanger, do diretor Egor Abramenko, exibido no Fantastic Film Festival de 2017 em Austin, EUA.

O Filme

O filme abre com dois cosmonautas (como se chamavam os astronautas na URSS) em órbita da Terra em uma missão de rotina de manutenção de uma estação espacial. Kostantin (Pyotr Fyodorov) conversa descontraidamente com seu companheiro sobre seus projetos para quando chegar na Terra.

Mas sentem um tranco na nave, algo está saindo errado. Sentem a presença de alguma coisa caminhando pelo lado externo da nave.

Corta para uma área remota no Cazaquistão onde a cápsula pousa com um paraquedas. Curioso, um agricultor aproxima-se e vê no chão um dos astronautas horrivelmente mutilado fora da cápsula. E Kostantin, ferido mas ainda vivo e confuso.

Ele retornou para a Terra com lacunas de memória e nada consegue dizer sobre a desastrosa missão.  O problema é que Kostantin é um herói nacional para a propaganda política soviética. Ele não pode ser apresentado à nação naquele estado de confusão mental. Por isso, ele é levado para uma instalação governamental isolada, sob a vigilância de guardas armados e um psicólogo que tenta hipnotizar o cosmonauta para tentar cobrir as lacunas de memória. Tudo infrutífero.

Até que o militar no comando, Semidarov (Fedor Bordarchuk) decide convocar a psicóloga Tatyana Klimova (Oksana Akinshina) para tentar avaliar o caso de Kostantin, curar a amnésia e desvendar o mistério.

Mas cada vez mais Tatyana desconfia que há algo mais naquele caso, que a burocracia militar tenta esconder – afinal, o cosmonauta é um garoto propaganda do regime.




Claro que não é necessário esperar muito para a revelação: Kostantin não sabe, mas ele carrega dentro dele um parasita alienígena. Por isso ele é mantido em uma prisão de isolamento máximo.

Mas não espere algo como o filme clássico Alien de 1979, no qual o predador mata seu próprio hospedeiro para espalhar uma trilha de mortes e destruição. Esse alien é um sobrevivente e não um predador: utiliza o corpo do cosmonauta como uma espécie de “roupa espacial” para viver nesse novo mundo. Porém, à noite enquanto Kostantin dorme, a criatura sai pela boca para caminhar pelo novo ambiente.

Simbolismo político – alerta de spoilers à frente

Na verdade, o papel da psicóloga Tatyana deverá ser outro: determinar até que ponto a simbiose entre parasita e hospedeiro implica no domínio da mente de Kostantin. Logo, se a mente de Kostantin estiver sendo manipulada pelo hospedeiro, abre a possibilidade de controlar a criatura através do controle da mente de Kostantin.



Fica claro que os militares soviéticos vislumbram na criatura uma possível arma biológica para usar na guerra armamentista da Guerra Fria.

O filme é narrado em “slow burn” com uma excelente reconstituição de época – a tecnologia soviética, os ambientes austeros, os figurinos monocromáticos etc. A narrativa consegue criar uma sensação genuína de terror biológico, sempre mais perturbador do que o sobrenatural.

Mas perturbador mesmo é como parasita deverá ser mantido vivo pelos militares: trazendo vítimas durante as madrugadas para serem atacadas pela criatura em busca de medo e do cortisol liberado pelo cérebro. Logicamente, as vítimas são prisioneiros políticos do regime – ao invés de serem enviados para a Sibéria, viravam fonte do delicioso cortisol...

Sputnik trabalha com poderosos simbolismos: o monstro só sai do hospedeiro no momento do sono, como os sonhos do inconsciente. E a criatura vive da matéria-prima de todo regime político totalitário: o medo. O inconsciente de toda propaganda política.


 

 

Ficha Técnica 

Título: Sputnik

Diretor: Egor Abramenko

Roteiro: Oleg Malovichko, Andrei Zolotarev

Elenco: Oksana Akinshina, Fedor Bondarchuk, Pyotr Fyodorov

Produção: Art Pictures Studio, Vodorod

Distribuição:  IFC Midnight

Ano: 2020

País: Rússia

 

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