Na superfície, “No Limite do Amanhã” (“Edge of Tomorrow”, 2014, agora disponível na Netflix) é mais um sci-fi daqueles que gostam de heróis com armaduras robóticas enfrentando monstruosos aliens com muitas explosões em computação gráfica. De fato, Tom Cruise gasta os seus cinquenta anos, mais uma vez, tentando salvar o mundo. Mas, dessa vez, em um alto conceito presente no cinema desde os clássicos “Matadouro 5” (1972) e “O Feitiço do Tempo” (1993): um protagonista prisioneiro em um loop temporal, repetindo indefinidamente o mesmo dia até a sua morte. Porém, “No Limite do Amanhã” acrescenta o toque da mecânica quântica: a interpretação dos Muitos Mundos onde o simples fato de observar provocaria efeitos no mundo atômico – a bifurcação na qual todas as opções ocorrem, criando muitos mundos. Disso decorreria a hipótese do “biocentrismo”: nossa consciência persistiria nesses múltiplos mundos, criando uma imortalidade quântica.
Ideia central em diversos sistemas religiosos ou filosóficos, a reencarnação como crença de que alguma parte do ser sobrevive à morte do corpo físico é a maior expressão da aspiração humana pela imortalidade. Não importa o termo designado (transmigração da alma, metempsicose, re-devir etc.), em todos esses sistemas está a crença de que esse ciclo de renascimentos oferece ao ser a oportunidade de libertação ou iluminação espiritual – moksha, nirvana, kivali ou reforma íntima, entre os espíritas kardecistas.
Desde a década de 1960 há um grande esforço em dar bases científicas a essa crença, desde a parapsicologia a pesquisas médicas psiquiátricas e neurocientíficas envolvendo as EQM (Experiências de Quase Morte) que tenderiam a aumentar a crença na reencarnação – algum tipo de consciência ou energia resistiria à morte do corpo físico.
Uma delas é o Biocentrismo, teoria formulada pelo médico e filósofo norte-americano Robert Lanza fundamentada na mecânica quântica e na chamada hipóteses dos Muitos Mundos – a consciência como fundamental e criadora do Universo, contrariando a ideia clássica de que é o Universo que cria vida. A existência da alma como parte da nossa mente - leia LANZA, Robert, Beyond Biocentrism: Rethinking Time, Space, Consciousness and Ilusion of Death, 2000.
Fundamentando-se em conceitos quânticos, Lanza argumenta que dizer que alguém morreu é um paradoxo lógico pois é a consciência que determina os fenômenos quânticos (decaimento quântico e colapso de onda) – observador e observado formam um único conjunto, impossibilitando a descontinuidade da consciência: ela sempre estará consciente de alguma coisa, saltando de um canto a outro do cérebro, entrando em outros mundos nos quais ainda não se está morto.
Essa hipótese biocêntrica parece que sempre esteve por trás de argumentos de filmes com protagonistas presos em loops temporais, desde o clássico O Feitiço do Tempo (Groundhog Day, 1993 – clique aqui) – personagens condenados a repetirem sempre o mesmo dia, porém criando linhas de tempo alternativas. Garantindo a imortalidade da alma – e, de resto, o seu aprimoramento e elevação espiritual.
No Limite do Amanhã (Edge of Tomorrow, 2014) é um filme sci-fi com premissa semelhante ao O Feitiço do Tempo: Tom Cruise interpreta um soldado que, após ser morto em combate, acorda um dia antes da batalha para reviver indefinidamente o momento da sua morte.
Claro que, tal qual Bill Murray no filme clássico, Cruise descobrirá que poderá alterar a nova linha do tempo, empurrando o momento da sua morte mais para frente a cada loop. Porém sempre acaba morrendo.
Também é claro que também estamos falando de Tom Cruise, gastando seus cinquenta e poucos anos salvando mais uma vez a humanidade – em uma guerra contra seres alienígenas extradimensionais que estão invadindo o planeta a partir da Europa. Seres ferozes chamados de “miméticos” que mais lembram as “sentinelas” da Trilogia Matrix, controlados por uma Inteligência Artificial ao estilo mente-colmeia escondida em algum ponto no continente.
Baseado no livro de Hiroshi Sikurazaka “All You Need is Kill”, na superfície o filme é um veículo perfeito para Tom Cruise, ligado no modo salvador do mundo: usando macacões biônicos repletos de metralhadoras e outras armas, monstros, robôs e explosões geradas por computação gráfica.
Porém, saindo dessa superfície comercial há um alto conceito sendo desenvolvido, entre Feitiço do Tempo e a forma como Cruise lembra o protagonista Billy Pilgrim em Matadouro Cinco (Slaughterhouse Five, 1972 – clique aqui), baseado na obra de Kurt Vonegut.
A cada morte, o protagonista criará uma nova linha do tempo, criando, por assim dizer, uma imortalidade quântica que será a principal arma para enfrentar os alienígenas – que já levam a vantagem de, por serem extradimensionais, conseguem prever todos os movimentos dos exércitos aliados que tentarão tomar de volta a Europa num dia análogo ao Dia D da Segunda Guerra Mundial – não por acaso, o filme foi lançado no aniversário de 70 anos da vitória dos aliados na invasão da Normandia.
O Filme
As semelhanças com O Feitiço do Tempo começam com o personagem de Tom Cruise, o Major William Cage: um oficial de relações públicas do Exército, pusilânime, egoísta e arrogante (assim como Bill Murray), que tem uma reunião urgente em Londres com um general responsável pela maior operação contra os alienígenas, uma espécie de nova versão do Dia D, dessa vez contra os miméticos. O mundo está destruído pela guerra e milhões morreram. Em cidades reduzidas a cinzas.
Cage é encarregado em documentar o embarque nas tropas na França, e será enviado diretamente para a linha de frente. Assustado, Cage tenta chantagear o general para dissuadi-lo a enviá-lo para o front. Sob voz de prisão, Cage é rendido. Para acordar para uma base militar, horas antes da grande invasão que promete ser um massacre trágico para os humanos. Cage nunca esteve num campo de batalha, mas aprende forçado os rudimentos da ciber-armadura que deverá usar e, de forma previsível, morre no campo de batalha.
Para então iniciar o duro aprendizado de Cage: ele acorda no dia anterior da batalha para começar tudo de novo. Então ele morre novamente e começa de novo. Ele sempre sabe que já esteve ali antes, que conheceu aquelas pessoas, disse as mesmas coisas, fez aquelas coisas, fez a escolha errada e morreu. Ao redor, ninguém sabe da sua estranha condição temporal, assim como o herói de Matadouro Cinco, Billy Pilgrim.
Os únicos aliados de Cage são um cientista (Noah Taylor) que acredita que as criaturas estão vencendo a humanidade por meio de seu domínio do tempo, e Rita Vrataski (Emily Blunt), chamada de “Megera de Ferro”, uma heroína que é uma verdadeira máquina de matar. Usada pela propaganda militar para elevar o moral das forças armadas. Rita experimentou o mesmo deslocamento temporal que Cage está experimentando agora, mas em um determinado ponto parou. Ela pode, no entanto, oferecer orientação (e algumas informações importantes que definem sua situação) e acelerar a curva de aprendizado atirando na cabeça dele sempre que ficar óbvio que eles estão indo por um caminho errado que levará a o mesmo resultado fatal.
Cage segue estritamente as características do personagem gnóstico do “Viajante”: além de salvar a Terra, deve salvar a si mesmo. Um relações públicas bem sucedido, mas arrogante e covarde – ele deve se submeter a uma “viagem” para encontrar os valores verdadeiros e a reforma interior – empatia e sacrifício.
Muitos Mundos
Em No Limite do Amanhã, não temos propriamente um mesmo dia que se repete, mas diferentes linhas do tempo que se abrem a partir de diferentes escolhas do protagonista na medida em que a narrativa avança. Em termos de mecânica quântica, temos sucessivamente função de onda e colapso de função de onda – argumento central da hipótese do biocentrismo: a união entre Universo e consciência.
O Biocentrismo parte do experimento da dupla fenda, onde o elétron ora é determinado como partícula quando medido, ora como elétron comportando-se como ondas de possibilidades, até o momento em que se procura saber a sua localização exata. Tal experimento deu origem ao chamado de Princípio da Incerteza, onde as nossas observações provocariam algum efeito, no mundo atômico.
Na década de 1920, Niels Bohr ofereceu o que ficou conhecido como a interpretação de Copenhague, que dizia essencialmente que todas as possibilidades pairavam invisivelmente na forma de uma “função de onda”. Ao observarmos essa onda, provocamos o colapso dessa função de onda, o que significa que as múltiplas possibilidades desaparecem repentinamente em favor de um resultado definitivo.
Foi em 1957 que Hugh Everett propôs radical interpretação: na verdade nenhum colapso específico precisa ocorrer – porque na verdade todas as opções ocorrem. Ele postulou que, em vez do colapso da função de onda, o universo se ramifica em bifurcações separadas para que todas as possibilidades se desdobrem. É a chamada interpretação dos Muitos Mundos – veja links abaixo.
Para o biocentrismo a questão da morte deve ser entendida dentro dessa interpretação de como a nossa consciência nunca morre: ela apenas migraria para nossos diversos “eus” existentes nas inúmeras bifurcações (linhas do tempo) criadas por diversos “colapsos de função de onda” – escolhas pontuais em nossas existências.
Na morte, haveria uma quebra do fluxo linear de consciência e, portanto, uma quebra na conexão linear de tempos e lugares. Mas o biocentrismo sugere que a consciência é múltipla e abrange muitos desses ramos de possibilidade. A morte realmente não existe em nenhum desses muitos mundos; todos os ramos existem simultaneamente e continuam existindo independentemente do que aconteça em qualquer um deles.
O que chamamos de “eu” seria a energia operando no cérebro, uma energia que nunca morre e não pode ser destruída, já que o Universo só existe a partir da nossa consciência – observar cria colapso de função de onda e decaimentos quânticos. Ou seja, a própria realidade para a nossa consciência.
Na verdade, Major Cage nunca morre no filme: sua consciência migraria para outro dos inúmeros “eus” quânticos em muitos mundos.
De certa forma, o biocentrismo é uma alternativa científica (ou pseudocientífica, para muitos críticos de Robert Lanza) à ideia religiosa da reencarnação. Mas, do ponto de vista gnóstico, a questão do cosmos material como uma prisão demiúrgica continua: esse Universo necessita da nossa consciência para existir, nos condenando a uma existência de sucessivos loops: seja reencarnação ou imortalidade quântica.
Certamente, o escritor Stephen King acertou em cheio: o inferno é a repetição.
Ficha Técnica |
Título: No Limite do Amanhã |
Diretor: Doug Liman |
Roteiro: Christopher McQuarrie e Jez Butterworth |
Elenco: Tom Cruise, Emily Blunt, Brendan Gleeson, Bill Paxton |
Produção: Warner Bros., Village Roadshow Pictures |
Distribuição: Warner Bros. |
Ano: 2014 |
País: EUA |