O que tem a ver
os filmes de faroeste de Hollywood com um parque temático no interior gelado da
Suécia chamado “High Chaparral” e refugiados sírios? Muitos vezes a ironia faz
a realidade superar a própria ficção. Dois documentários curta-metragem, “High
Chaparral” (2016) e “Return to High Chaparral” (2017) mostram como um parque
temático sobre o Velho Oeste dos filmes hollywoodianos se transformou em abrigo
para 500 refugiados sírios no inverno sueco. Vítimas do mundo real encontrando
abrigo na hiper-realidade criada pelo “soft power” norte-americano. Um parque
temático, que encena histórias de heróis com grandes armas derrotando vilões,
dá abrigo a vítimas dessas mesmas armas, só que no mundo real. Refugiados de um
país distante pouco familiarizados com filmes de faroeste, mas que, mesmo assim,
ficam fascinados ao verem atores suecos repetindo narrativas hollywoodianas
semelhantes àquelas deixadas em seus países destruídos.
Um parque
temático sobre o Velho Oeste dos EUA tal como conhecemos nos filmes
hollywoodianos no interior de uma floresta na Suécia e refugiados libaneses e sírios
à procura de um abrigo para fugir da guerra. É difícil imaginar qual a relação
entre esses dois mundos, mas muitas vezes a realidade consegue ser mais
surpreendente do que a ficção.
Pessoas que
foram obrigadas a fugir das suas pátrias embarcam para uma fronteira
desconhecida. E vão encontrar refúgio em salões falsos do Velho Oeste e currais
de cavalos que participam de tiroteios encenados nos shows para turistas.
Há algo de
irônico e ridiculamente poético nessa situação. É o que aborda o documentário
curta-metragem High Chaparral (2016)
e sua continuação Return to High
Chaparral (2017) do diretor
norte-americano David Freid. Enquanto os documentários e matérias jornalísticas
sobre a crise humanitária no Oriente Médio e a fuga dos refugiados apresentam
sempre histórias angustiantes, David Freid quis contar uma história que mistura
peculiaridade e sentimento.
Pistoleiros, índios e Forte Apache
High Chaparral
é um parque temático em Kulltorp, no interior da Suécia, aberto em 1966 por
empresário chamado Big Bengt. Em 1956, em uma viagem aos EUA, Bengt cobriu em
quatro meses quatro mil quilômetros. Ele voltou para a Suécia fascinado pelo
Oeste dos EUA e o imaginário dos filmes de Hollywood de faroeste.
Coberto de neve
durante o inverno, no verão o parque abre para diversos shows nos quais são
encenadas as cenas clássicas do cinema: duelos, tiroteios, pistoleiros
assaltando bancos, o xerife colocando ordem na cidade e índios atacando
caravanas e o famoso Forte Apache.
Enquanto para
os outros países europeus os refugiados são um problema político, na Suécia é
apenas uma questão de logística: onde abriga-los? Então, o neto de Bengt (Emil
Erlandsson), que faz o papel do xerife nos shows e administra o parque,
resolveu fazer a sua parte: deu abrigo a 500 refugiados sírios no congelado
inverno sueco, transformando sua cabanas e salões em abrigo humanitário.
Os refugiados
ficaram seis meses abrigados em High Chaparral, até o verão chegar e o parque
ser reaberto aos turistas. Então, qual seria o destino desses 500 sírios? Esse
é o tema da continuação Return to High
Chaparral liberada nesse ano – assista ao final dessa postagem.
Um rei diante das câmeras
A maioria
partiu e encontrou trabalho no norte do país. Mas alguns ficaram no parque para
conhecer o Velho Oeste e até atuar como atores nos shows.
“Sinto-me como
um mexicano e um rei diante das câmeras”, diz um sírio que atualmente atua nos
shows.
Mas a fala do
dublê de xerife e administrador Emil Erladsson é o toque de ironia que percorre
os dois curtas: “Acho que todos os filme no final tratam de heróis. Os filmes
de faroeste representam o que a América significa hoje. Você sabe... os rapazes
chegam e bang! bang!... Explodem tudo e o vilão desaparece. Tudo se trata de
grandes armas”.
Um pequeno
grupo de refugiados permanece no local, excitados com a possibilidade de um dia
se tornarem estrelas de cinema.
A ironia pode
ser poética (um parque temático no interior da Suécia dando sua contribuição
humanitária), mas tem uma flagrante dimensão política e ideológica – até onde
chega o soft power do poder
norte-americano. Isto é, como a indústria do entretenimento dos EUA tornou-se
tão invisivelmente globalizada ao ponto não só vermos franquias hollywoodianas
num rincão gelado em um país nórdico, como as próprias vítimas das “grandes
armas” da máquina bélica norte-americana encontrarem refúgio naquilo que é o
símbolo daquilo que fez abandonarem suas pátrias.
E ainda alguns
deles anseiam estrelar em filmes sobre as “grandes armas” que nesse momento
destroem seus países. Síndrome de Estocolmo? – aquela síndrome na qual a vítima
se torna agradecida com o próprio opressor.
O diretor David
Freid se dizia “fatigado pelas más notícias” e pretendeu fazer um documentário
que mostrasse o lado de esperança e humanidade em toda a tragédia. Mas mostrou
muito mais: a ironia que atravessa os dois documentário é mostrar vítimas reais
encontrando abrigo na hiper-realidade criada pelo próprio algoz de sírios e
libaneses.
Hiper-realidade:
quando uma representação representa outra representação. Como todo parque
temático, não é uma representação do seu tema (Velho Oeste, Roma Antiga,
dinossauros etc.) mas a representação do que o cinema já fez sobre todos esses
temas. Cópia da cópia.
O momento em
que o simulacro toma conta da realidade e se transforma em cidades, bairros e
parques temáticos – de Campos de Jordão que emula as vilas alpinas do cinema e
publicidade a coisas como Beto Carrero World no Brasil ou High Chaparral na
Suécia que simulam outras simulações.
Hiper-realidade numa solução humanitária
É ao mesmo
tempo irônico, beirando ao completo non
sense, ver vítimas do mundo real encontrando abrigo no soft power da hiper-realidade criada por Hollywood e irradiada para
todo o planeta. Um poder tão pernicioso e invisível que, mesmo nas soluções
humanitárias para uma crise criada pelos próprios EUA, a guerra persiste,
passando do mundo real para o imaginário – a conquista dos corações e mentes
dos próprios refugiados.
O que torna
ainda mais curiosa essa situação é que nos documentários os refugiados
demonstram ter um conhecimento apenas genérico sobre os filmes western. Alguns
dizem ter visto na infância, com lembrança apenas vaga. Enquanto outros apenas
se lembram do filme Brokeback Mountain,
premiado com o Oscar em 2006. Produção onde os cânones do gênero já estavam
diluídos ou desaparecidos.
Isso significa
que o soft power norte-americano
chegou ao, digamos assim, estado da arte: transcendeu do campo da memória para
ingressar no terreno do inconsciente coletivo, do arquétipo.
O maior
pensador sobre a teoria dos simulacros, o francês Jean Baudrillard, acreditava
que na História os simulacros evoluíram em quatro etapas: (a) quando os signos
representavam a realidade; (b) quando os signos mentiam – a dissimulação, a
ideologia e a manipulação; (c) quando os signos simulavam a realidade –
realidade virtual ou computação gráfica.
E (d) a última,
a mais perigosa e atual: o momento do simulacro puro, a hiper-realidade – a
simulação substitui o real e passamos a viver nele como fosse a própria
realidade, já que transformou-se em cidades, moda, parques, trabalho e lazer.
Esses curtas
comprovam que já estamos nessa última etapa: o hiper-real ocupou o inconsciente
coletivo. A consciência aderiu à inconsciência.
Nesse momento
nem mais uma Psicanálise é mais possível. Somente algo como uma
Meta-Psicanálise que mostre como a realidade transformou-se na imagem de uma
cobra que morde o próprio rabo – o hiper-real destrói o real e, desesperados,
buscamos abrigo no próprio hiper-real.
Assista aos
curtas abaixo. Legendas disponíveis em espanhol e inglês.
Ficha Técnica |
Título: High
Chaparral e Return to High Chaparral
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Diretor:
David Freid
|
Roteiro: David Freid
|
Elenco: David Freid
(narração)
|
Produção: Mel Films
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Distribuição:
On line
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Ano: 2016-17
|
País: EUA
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