terça-feira, maio 30, 2017

Curta da Semana: "High Chaparral" - refugiados sírios perdidos na hiper-realidade


O que tem a ver os filmes de faroeste de Hollywood com um parque temático no interior gelado da Suécia chamado “High Chaparral” e refugiados sírios? Muitos vezes a ironia faz a realidade superar a própria ficção. Dois documentários curta-metragem, “High Chaparral” (2016) e “Return to High Chaparral” (2017) mostram como um parque temático sobre o Velho Oeste dos filmes hollywoodianos se transformou em abrigo para 500 refugiados sírios no inverno sueco. Vítimas do mundo real encontrando abrigo na hiper-realidade criada pelo “soft power” norte-americano. Um parque temático, que encena histórias de heróis com grandes armas derrotando vilões, dá abrigo a vítimas dessas mesmas armas, só que no mundo real. Refugiados de um país distante pouco familiarizados com filmes de faroeste, mas que, mesmo assim, ficam fascinados ao verem atores suecos repetindo narrativas hollywoodianas semelhantes àquelas deixadas em seus países destruídos.

Um parque temático sobre o Velho Oeste dos EUA tal como conhecemos nos filmes hollywoodianos no interior de uma floresta na Suécia e refugiados libaneses e sírios à procura de um abrigo para fugir da guerra. É difícil imaginar qual a relação entre esses dois mundos, mas muitas vezes a realidade consegue ser mais surpreendente do que a ficção.

Pessoas que foram obrigadas a fugir das suas pátrias embarcam para uma fronteira desconhecida. E vão encontrar refúgio em salões falsos do Velho Oeste e currais de cavalos que participam de tiroteios encenados nos shows para turistas.

Há algo de irônico e ridiculamente poético nessa situação. É o que aborda o documentário curta-metragem High Chaparral (2016) e sua continuação Return to High Chaparral (2017)  do diretor norte-americano David Freid. Enquanto os documentários e matérias jornalísticas sobre a crise humanitária no Oriente Médio e a fuga dos refugiados apresentam sempre histórias angustiantes, David Freid quis contar uma história que mistura peculiaridade e sentimento.


Pistoleiros, índios e Forte Apache


High Chaparral é um parque temático em Kulltorp, no interior da Suécia, aberto em 1966 por empresário chamado Big Bengt. Em 1956, em uma viagem aos EUA, Bengt cobriu em quatro meses quatro mil quilômetros. Ele voltou para a Suécia fascinado pelo Oeste dos EUA e o imaginário dos filmes de Hollywood de faroeste.

Coberto de neve durante o inverno, no verão o parque abre para diversos shows nos quais são encenadas as cenas clássicas do cinema: duelos, tiroteios, pistoleiros assaltando bancos, o xerife colocando ordem na cidade e índios atacando caravanas e o famoso Forte Apache.

Enquanto para os outros países europeus os refugiados são um problema político, na Suécia é apenas uma questão de logística: onde abriga-los? Então, o neto de Bengt (Emil Erlandsson), que faz o papel do xerife nos shows e administra o parque, resolveu fazer a sua parte: deu abrigo a 500 refugiados sírios no congelado inverno sueco, transformando sua cabanas e salões em abrigo humanitário.

Os refugiados ficaram seis meses abrigados em High Chaparral, até o verão chegar e o parque ser reaberto aos turistas. Então, qual seria o destino desses 500 sírios? Esse é o tema da continuação Return to High Chaparral liberada nesse ano – assista ao final dessa postagem.


Um rei diante das câmeras


A maioria partiu e encontrou trabalho no norte do país. Mas alguns ficaram no parque para conhecer o Velho Oeste e até atuar como atores nos shows.

“Sinto-me como um mexicano e um rei diante das câmeras”, diz um sírio que atualmente atua nos shows.

Mas a fala do dublê de xerife e administrador Emil Erladsson é o toque de ironia que percorre os dois curtas: “Acho que todos os filme no final tratam de heróis. Os filmes de faroeste representam o que a América significa hoje. Você sabe... os rapazes chegam e bang! bang!... Explodem tudo e o vilão desaparece. Tudo se trata de grandes armas”.

Um pequeno grupo de refugiados permanece no local, excitados com a possibilidade de um dia se tornarem estrelas de cinema.

A ironia pode ser poética (um parque temático no interior da Suécia dando sua contribuição humanitária), mas tem uma flagrante dimensão política e ideológica – até onde chega o soft power do poder norte-americano. Isto é, como a indústria do entretenimento dos EUA tornou-se tão invisivelmente globalizada ao ponto não só vermos franquias hollywoodianas num rincão gelado em um país nórdico, como as próprias vítimas das “grandes armas” da máquina bélica norte-americana encontrarem refúgio naquilo que é o símbolo daquilo que fez abandonarem suas pátrias.

E ainda alguns deles anseiam estrelar em filmes sobre as “grandes armas” que nesse momento destroem seus países. Síndrome de Estocolmo? – aquela síndrome na qual a vítima se torna agradecida com o próprio opressor.

O diretor David Freid se dizia “fatigado pelas más notícias” e pretendeu fazer um documentário que mostrasse o lado de esperança e humanidade em toda a tragédia. Mas mostrou muito mais: a ironia que atravessa os dois documentário é mostrar vítimas reais encontrando abrigo na hiper-realidade criada pelo próprio algoz de sírios e libaneses.


Hiper-realidade: quando uma representação representa outra representação. Como todo parque temático, não é uma representação do seu tema (Velho Oeste, Roma Antiga, dinossauros etc.) mas a representação do que o cinema já fez sobre todos esses temas. Cópia da cópia.

O momento em que o simulacro toma conta da realidade e se transforma em cidades, bairros e parques temáticos – de Campos de Jordão que emula as vilas alpinas do cinema e publicidade a coisas como Beto Carrero World no Brasil ou High Chaparral na Suécia que simulam outras simulações.

Hiper-realidade numa solução humanitária


É ao mesmo tempo irônico, beirando ao completo non sense, ver vítimas do mundo real encontrando abrigo no soft power da hiper-realidade criada por Hollywood e irradiada para todo o planeta. Um poder tão pernicioso e invisível que, mesmo nas soluções humanitárias para uma crise criada pelos próprios EUA, a guerra persiste, passando do mundo real para o imaginário – a conquista dos corações e mentes dos próprios refugiados.

O que torna ainda mais curiosa essa situação é que nos documentários os refugiados demonstram ter um conhecimento apenas genérico sobre os filmes western. Alguns dizem ter visto na infância, com lembrança apenas vaga. Enquanto outros apenas se lembram do filme Brokeback Mountain, premiado com o Oscar em 2006. Produção onde os cânones do gênero já estavam diluídos ou desaparecidos.


Isso significa que o soft power norte-americano chegou ao, digamos assim, estado da arte: transcendeu do campo da memória para ingressar no terreno do inconsciente coletivo, do arquétipo.

O maior pensador sobre a teoria dos simulacros, o francês Jean Baudrillard, acreditava que na História os simulacros evoluíram em quatro etapas: (a) quando os signos representavam a realidade; (b) quando os signos mentiam – a dissimulação, a ideologia e a manipulação; (c) quando os signos simulavam a realidade – realidade virtual ou computação gráfica.

E (d) a última, a mais perigosa e atual: o momento do simulacro puro, a hiper-realidade – a simulação substitui o real e passamos a viver nele como fosse a própria realidade, já que transformou-se em cidades, moda, parques, trabalho e lazer.

Esses curtas comprovam que já estamos nessa última etapa: o hiper-real ocupou o inconsciente coletivo. A consciência aderiu à inconsciência.

Nesse momento nem mais uma Psicanálise é mais possível. Somente algo como uma Meta-Psicanálise que mostre como a realidade transformou-se na imagem de uma cobra que morde o próprio rabo – o hiper-real destrói o real e, desesperados, buscamos abrigo no próprio hiper-real.

Assista aos curtas abaixo. Legendas disponíveis em espanhol e inglês.








Ficha Técnica

Título: High Chaparral e Return to High Chaparral
Diretor: David Freid
Roteiro:  David Freid
Elenco:  David Freid (narração)
Produção: Mel Films
Distribuição: On line
Ano: 2016-17
País: EUA

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