Lá nos distantes dos anos 1980-90 tínhamos os jovens profissionais urbanos de sucesso chamados “Yuppies” – agressivos, amorais e politicamente incorretos, cujo ícone é Donald Trump. Hoje, foram substituídos pelos noviços das startups tecnológicas, éticos e sustentáveis. Mas com um forte filtro linguístico de eufemismos e jargões que obscurecem o imediatismo nada sustentável e ético dos financiadores. O filme sueco “A Hipnose” (Hypnosen, 2023, disponível na MUBI) é uma sátira sombria desse universo. Antes de participar de um evento nacional de startups, Vera decide deixar de fumar através de uma terapia por hipnose. Junto com seu parceiro André, vão ao evento apresentar o seu aplicativo de saúde para “países emergentes” aos ricos financiadores. Mas ela está diferente: mais assertiva, crítica, dando vazão a sua “criança interior”. Colocando em xeque a falsa autenticidade daquele universo.
É conhecida a presunção dos personagens do mercado, das startups, principalmente tecnológicas: falam o tempo inteiro em ideias “disruptivas” (a palavra “revolucionário” caiu de moda por ser ter uma excessiva conotação política), negócios com “tração”, programas “aceleradores”, empreendimento com “escalabilidade”, startup “Unicórnio”, “Bode” etc.
Esse universo é cada vez mais acariciado diligentemente pelo capital de risco (o “Venture Capital”) do mercado financeiro – afinal, o universo startup com suas feiras de inovações e web summits ganham espaço midiático cada vez maior, como a face “premium” da ideologia do empreendedorismo neoliberal.
Por isso, surgem estrelas e lideranças que ajudam a criar um jargão cada vez mais inescrutável e esotérico. De forma estudada e calculada, com a ajuda de jornalistas especializados e coachs, assumem a aura de gurus e visionários. Ganham espaço midiático, atraindo o capital especulativo – afinal, o valor de face de uma startup conta muito com a ressonância midiática.
Aparecer e ser reconhecido se misturam com a obsessão da autorrealização, que depende principalmente da performance e da maneira “disruptiva” como se apresenta para os investidores em potencial nesses eventos.
Dessa maneira, a síndrome de FOMO (“Fear of Missing Out”), ou seja, o medo de perder oportunidades, especialmente no contexto de investimentos em startups com alto potencial de crescimento, passa a ser o grande mal-estar – medo de não aparecer, de não ser notado, de ser esquecido. Então, a performance, a apresentação, a necessidade do impacto tornam-se até mais importante do que o produto/serviço oferecido.
O filme sueco A Hipnose (Hypnosen, 2023), estreia do diretor Ernst De Geer, é uma sátira desse universo que segue bastante o estilo de crítica social de outra produção sueca: Sick of Myself, 2022 – um humor negro que mostra até que ponto podemos chegar para chamarmos a atenção dos outros na cultura dos influencers nas mídias sociais.
Treinadores, gurus, startups de novas tecnologias, workshops que envolvem discursos repletos de eufemismos e jargão hermético formam o pano de fundo de uma história banal que começa a gerar efeitos imprevisíveis.
Uma jovem sócia de uma startup tecnológica está às vésperas de um grande acontecimento: ela e seu parceiro profissional e romântico foram convidados a participar de uma feira competitiva nacional de startups, com grande potencial para atrair investidores europeus.
Mas ante decide fazer uma consulta a uma hipnoterapeuta em busca de uma cura para seu vício em fumar, mas o tratamento vem com um efeito colateral: também faz com que ela perca suas inibições sociais.
Participar de oficinas e fazer apresentações em um ambiente tão linguisticamente controlado sem os filtros necessários a transforma numa usina geradora de gafes carregadas de muito humor negro.
The Hypnosis faz lembrar de um subgênero que ascendeu nos anos 1980: o “desconstruindo o Yuppie” – After Hours, Procura-se Susan Desesperadamente, Totalmente Selvagem, Férias Frustradas, Antes Só do Que Mal Acompanhado, Crazy People etc., são filmes em que um protagonista certinho, careta e profissionalmente bem-sucedido tem a sua rotina quebrada por uma figura feminina ou sequência descontrolada de eventos que o desorienta e o desconstrói.
Aqui repete-se o argumento de forma inesperada: o efeito colateral de libertar a “criança interior” torna a protagonista mais assertiva e politicamente incorreta. Num ambiente que exatamente exige muita conformidade e controle.
O Filme
Os dois protagonistas (sócios e namorados) são André (Herbert Nordrum) e Vera (Asta Kamma August), um jovem casal de classe média que está lançando um aplicativo de bem-estar reprodutivo feminino chamado Epione, em homenagem à deusa grega da saúde. Um aplicativo voltado para países emergentes, cuja estrutura pública de saúde é precária, colocando em risco a vida de mulheres por ocorrências prosaicas. Como, por exemplo, uma corriqueira menstruação.
A dupla está animada por ser convidada para um evento de final de semana chamado Shake Up, administrado pelo paternalista e carismático guru tecnológico Julian (David Fukamachi Regnfors). Lá terão a chance de apresentar seu projeto a um painel de potenciais apoiadores ricos.
Na verdade, foi a mãe de Vera, uma profissional bem-sucedida e tuteladora da carreira da filha, que mexeu ou pauzinhos e arrumou para ela e seu namorado uma vaga na Skake Up.
Vera vê nesse momento a oportunidade de abordar o seu hábito de fumar – afinal, vai passar um final de semana inteiro confinada num evento em um hotel.
Então decide fazer uma consulta com uma terapeuta hipnotizadora para a cura do seu vício. “Isso não é uma bobagem?”, pergunta o cético André. Na verdade, a pergunta do namorado revela a condição atual de Vera nos seus relacionamentos, sejam amorosos ou familiares: ela tem uma personalidade introvertida, submetendo-se à mãe controladora e deixando André sempre dar a última palavra. Em síntese, Vera nunca teve voz ativa.
Depois de uma anamnese com a terapeuta, Vera é surpreendida pelo diagnóstico: o problema de Vera não é o cigarro. Que, aliás, é um sintoma de algo mais profundo. Vera nunca deu voz a sua “criança interior”, resultando numa passividade crônica na vida adulta.
Vera submete-se a sessão de hipnose para “acolher a criança interior”. O tratamento parece funcionar: Vera aparentemente não quer mais fumar. E a dupla vai para a conferência. Lá Vera revela estar muito diferente e viva, acabando por ser um sucesso na sua parte da apresentação. Enquanto o ansioso André se depara, nas palavras mordazes do guru que está treinando os candidatos para o dia oficial das apresentações, com a crítica de que ele é “um parque de diversões de gestos nervosos”.
A princípio, Vera se mostra altamente popular com seus colegas participantes, enquanto André nem é convidado para confraternizações mais festivas. Mas seu comportamento começa a se tornar cada vez mais errático, desde servir uma bebida no bar do hotel fingindo ser um bar tender e ir embora sem pagar, ou fingir ter um cão chihuahua invisível diante de todos.
André fica cada vez mais agitado e preocupado: ele está acostumado a se relacionar com uma Vera mais maleável. Assertiva e crítica, Vera começa a se recusar a performar uma história introdutória da apresentação por ser mentirosa.
Então André dá o passo mais drástico. Decide nocauteá-la com pílulas para dormir misturadas em sua bebida para que ele possa fazer a apresentação sozinho. As coisas não dão muito certo, fazendo Vera entrar no modo vingança: improvisa uma performance para deixar André cada vez mais constrangido diante de todos. Principalmente do ídolo de André, o guru tecnológico Julian.
Os Yuppies atuais (os “jovens profissionais urbanos de sucesso”, como no informa o acrônomo em inglês) são esses noviços das startups. Um conformismo de novo tipo, ético e sustentável (diferente dos tubarões politicamente incorretos e desbocados dos anos 80-90, cujo Donald Trump é o principal ícone), foi criado na atualidade, com um forte filtro linguístico que obscurece os verdadeiros interesses imediatistas do mercado financeiro.
Um aplicativo preocupado com a saúde das mulheres de países emergentes nos recônditos do planeta é o negócio perfeito para gerar lucro “sustentável”.
A “criança interior” liberada de Vera graças à hipnose denuncia a hipocrisia politicamente correta desses workshops dos visionários da Big Techs. Claro que a resposta de André é a mais machista de todas: a culpa é da hipnose – assim como a “histeria” era o diagnóstico dos sintomas do mal-estar feminino na claustrofobia moral da era vitoriana.
Mas A Hipnose vai além disso. É um conto de transformação pessoal de André – a “desconstrução do Yuppie”. Porém, como sempre, com um final ambíguo que sugere um retorno à ordem depois das crescentes quebras ao longo do filme: a contagem regressiva final em off sugerindo o fim do efeito hipnótico em Vera. E o possível retorno da “criança interior” à prisão do inconsciente.
Ficha Técnica |
Título: A Hipnose |
Diretor: Ernst De Geer |
Roteiro: Ernst De Geer, Mads Steeger |
Elenco: Asta Kamma August, Herbert Nordrum, Andrea Edwards |
Produção: Garagefilm International |
Distribuição: MUBI |
Ano: 2023 |
País: Suécia |