Imagine um
diretor fascinado pelos filmes e séries sci-fi e de terror B dos anos 1950 como
“Além da Imaginação” que produz um filme com mix da atmosfera dos filmes noir e
do hotel Overloock de “O Iluminado”. O resultado é um filme estranho, fora da
curva dos atuais thrillers de horror. É o filme “Los Parecidos” do diretor
mexicano Isaac Ezban que vem conquistando prêmios no circuito internacional de
festivais do fantástico e do horror. Em uma noite de forte tempestade, em 1968
no México, um grupo fica preso em uma pequena e remota estação rodoviária, à
espera de um ônibus que nunca chega. Estranhas notícias pelo rádio dão conta
que aquele temporal não é comum: o que cai do céu junto com a chuva provoca
estranhas mudanças comportamentais, e suspeita-se de um fenômeno global. O
filme utiliza elementos do fantástico para discutir um tema muito sério: se a
nossa identidade é o resultado do jogo da percepção (o olhar de um para o
outro), como isso pode ser moldado por influências externas? Mídia? Uma
inteligência alienígena? Ou apenas o resultado da paranoia mútua?
Los parecidos é um filme muito estranho e esquisito. Um diretor que teve a
coragem de produzir um roteiro tão maluco que utiliza elementos do fantástico
para refletir sobre um tema real, merece o respeito desse Cinegnose.
Trata-se do
diretor mexicano Isaac Ezban, fascinado pelos filmes B dos anos 1950 e séries
como Além da Imaginação e Amazing Stories sobre como o fantástico
e o inexplicável podem furtivamente invadir o cotidiano sem nos darmos conta. E
quando percebemos, já é muito tarde.
Mas,
principalmente, Ezban é fascinado pela atmosfera dos filmes de terror e sci fi
dos anos 1960 onde os elementos do fantástico eram usados como metáforas de
problemas bem humanos, políticos e sociais do momento. Como, por exemplo, A Noite dos Mortos Vivos (1968) de
George Romero com o pano de fundo dos conflitos raciais que explodiam nos EUA
naquela década – os zumbis como uma incisiva metáfora de um levante racial.
No caso de Los Parecidos (disponível no Netflix), temos
um thriller sobrenatural que tem como pano de fundo os protestos estudantis no
México e a matança em Tlatelolco em 1968 no qual mais de mil manifestantes
foram mortos por forças do exército. Além da explosão da contracultura na
cultura pop: hippies, drogas alucinógenas e o rock.
Apesar de
filmado com câmera digital, Los Parecidos
emula a fotografia de película dos filmes preto e branco da época, numa
caprichada reconstituição dos figurinos e objetos. Um perfeito trabalho de fotografia que também busca referência
nos filmes noir dos anos 40 e 50
(escuridão, fortes contrastes, luzes indiretas etc.), com todos os cânones
desse gênero: narração em of, chuva, sombras, paranoia etc.
Liquidificador vintage
E ainda nesse
liquidificador vintage, o argumento de Los
Parecidos ainda faz referência a O
Iluminado de Kubrick, com um estranho menino paranormal em cenas de
corredores que lembram a atmosfera sinistra do Hotel Overloock.
O ponto de
partida é simples e toda a trama se passa na madrugada de 2 de outubro de 1968
(data do fatídico massacre de Tlatelolco) onde sete pessoas estão presas (além
do bilheteiro) em uma estação de ônibus numa noite em que cai uma terrível
tempestade. Todos têm pressa para chegar na Cidade do México pelos mais
variados motivos, mas todas as linhas estão atrasadas, sem poderem chegar na
estação em virtude das fortes chuvas.
Ezban quer
discutir no filme o problema da identidade em um mundo onde tantas vezes nos
sentimos iguais devido a influência massiva dos meios de comunicação de massa e
da educação – e nos anos 1960, foi um dos momentos onde os movimentos contra
culturais mais tematizaram essa questão.
Como pessoas
diferentes, com suas preocupações, vidas e destinos diferentes, podem se tornar
“parecidos” ou similares em uma estação de ônibus perdida no meio do nada. E se
essa “massificação” cultural deixar o campo da metáfora e ingressar na dimensão
do sobrenatural e do fantástico?
Além disso, Los
Parecidos explora o arquetípico e gnóstico personagem do “Viajante”, no filme tanto
literal como metaforicamente – são pessoas absorvidas, cada um com seus
próprios problemas, que são submetidas involuntariamente em um jogo no qual
aprenderão, da pior maneira possível, que existe um mundo real e ao mesmo tempo
estranho em torno deles.
O Filme
Oito personagens
à espera de um ônibus que nunca chega em uma pequena e remota estação
rodoviária em uma madrugada de terrível temporal. Cada um imerso em seus
próprios problemas e com motivos diferentes para chegar o mais rápido possível
na Cidade do México.
Um engenheiro
de minas (Ulisses – Gustavo Parra), uma empresária e seu filho com um rara
doença (Gertrudes - Carmen Beato, e o menino Ignácio – Santiago Torres), um
estudante de Medicina (Álvaro – Humberto Busto), uma mulher grávida que foge de
um companheiro violento (Irene – Cassandra Ciangherotti), uma idosa indígena
(uma xamã?) e mais um homem com estranhas ataduras em volta do seu rosto com
sua companheira desesperada e o bilheteiro Martín (Fernando Becerril) – um
senhor solitário que vive naquela estação há 30 anos, cercado de revistas
pornográficas e pôsteres de James Bond, Marilyn Monroe e Os Beatles.
Um
estranho fenômeno começa a suceder: entre muita estática, ouve-se no rádio que
aquela tempestade parece ser um fenômeno global que atinge outros países da América,
chegando na Europa.
Enquanto cresce
a tensão naquele grupo confinado em um pequeno saguão, as notícias pelo rádio
informam estranhos fenômenos associados à chuva, ondas de pânico e alterações
comportamentais – nesse ponto Los Parecidos lembra bastante a narrativa do
conto fantástico “Neblina Sobre Xebico” (“Night Wire”) de H.F. Arnold, já discutido pelo Cinegnose – clique aqui.
Parece que o
que cai dos céus na tempestade não é água, mas algo viral e extraterrestre,
contaminando as pessoas e tornando-as... iguais ou parecidas!
Um por um na
estação começa a ver, um no outro, o estranho sintoma de transformação: homens
e mulheres, todos de barba e um farto cabelo escuro. E o mais estranho: nas próprias
revistas e pôsteres nas paredes, todos estão com o mesmo rosto – o que cria
situações bizarras como a tradicional foto de Marilyn Monroe com o vestido
levantando com um rosto de barba e cabeleira negra.
Há um evidente
humor negro a partir desse momento, mas as coisas ficarão mais sinistras quando
o menino Ignácio tornar-se o pivô dos acontecimentos, assim como o menino no
filme O Iluminado.
O problema é
que a paranoia começa a dominar a todos: tudo aquilo é real ou será alguma
experiência do Governo envolvendo drogas alucinógenas? Qual deles é o agente
infiltrado para comandar a experiência? – essa é bem a atmosfera política
paranoica da era da Guerra Fria nos anos 1960.
Identidade, percepção e mídia
Porém, tudo
isso é colocado como pano de fundo para uma discussão mais profunda: o que é a
identidade? Ezban introduz essa questão a partir de um interessante jogo de
olhares e espelhos: cada um olha para o outros, mas poucos conseguem olhar para
si mesmos. A não ser em um velho espelho no sujo banheiro da estação.
Sem nos darmos
conta, nossa identidade pode ser silenciosamente construída a partir do que
achamos que os outros estão vendo em nós. Assim como olhamos para os outros e
esperamos encontrar as expectativas que temos de nós mesmos.
A identidade é a resultante desse jogo de
percepções com o qual o diretor brinca através dos personagens naquela remota
estação rodoviária: todos obrigados a ficarem confinados em um pequeno espaço,
um olhando para os outros e percebendo a estranha transformação no rosto de
cada um.
Essa
expectativa que temos de nós mesmos baseadas em uma percepção sobre aquilo que
achamos que os outros esperam de nós, é alimentada por um importante elemento
que no filme entra sutilmente: as revistas pornográficas e pôsteres de
celebridades da cultura pop do bilheteiro Martín.
As próprias
imagens, estáticas nas fotografias, começam a sofrer transformações, causando
horror e pânico em todos.
Na verdade esse
é um processo cotidiano que não nos damos conta: como nossa identidade e
percepção é moldada por esses verdadeiros espelhos oferecidos para nós pela
cultura pop.
A virtude de Los Parecidos é desconstruir essa jogo
da identidade e percepção através da entrada de um elemento dissonante: de
repente, todos, homens e mulheres, começam a ficar parecidos com rosto barbudo
e uma farta cabeleira negra – um típico rosto latino-americano que cria
dissonância com os modelos hollywoodianos de beleza com os quais estamos
acostumados.
Como em todo
filme estranho, por trás da bizarrice e do estranho humor negro de Los
Parecidos, está uma séria discussão: identidade e a construção midiática da
percepção.
Como em todos
os filmes que exploram o arquetípico personagem do Viajante, a submissão
compulsória a uma jogo que embaralha a ficção e a realidade transformará a vida
interior dos protagonistas. Mas em Los
Parecidos, será muita tarde para todos eles. Mas não para o espectador.
Ficha Técnica |
Título: Los
Parecidos
|
Diretor:
Isaac Ezban
|
Roteiro: Isaac Ezban
|
Elenco: Fernando
Becerril, Humberto Busto, Cassandra Ciangherotti, Gustavo Sanches Parra,
Santiago Torres
|
Produção: Red Elephant, Morbido Films
|
Distribuição:
Netflix
|
Ano: 2015
|
País: México
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