Como Noé conseguiu colocar a cadeia alimentar
completa de animais dentro da Arca e por 40 dias todos viveram em paz e
harmonia enquanto o planeta era punido pelo Dilúvio? O produtor, diretor e
animador Sol Friedman, notório pelas suas produções que profanam contos
sagrados e tradições religiosas de todo o mundo, no curta de animação “Day 40”
(2014) apresenta com muito humor negro uma arca bíblica que mais parece um
navio de piratas amotinados. Um lugar tão pecaminoso quanto o mundo deixado
para trás e afogado pelo Dilúvio. Em muitos aspectos o curta lembra a leitura
gnóstica que Darren Aronofsky fez em “Noah” (2014). “Day 40” não é uma produção
aconselhada para pessoas religiosamente mais sensíveis.
Se o escritor William Blake (1757-1827) estiver certo de que a Natureza foi
obra de um demônio (porque sempre condenada à queda, morte, entropia, sem
nenhum propósito e totalmente hostil ao homem) podemos indagar: então, como Noé
conseguiu colocar uma cadeia alimentar completa dentro da Arca e sobreviver ao
Dilúvio bíblico? Como os animais conseguiram viver harmoniosamente, em um lugar
fechado, por 40 dias e 40 noites? A Natureza e os animais têm assim tão boa
índole? Ou Deus impôs uma, por assim dizer, “licença poética” para os animais
esquecerem temporariamente suas origens selvagens?
O curta Day 40 é outra
incursão de Sol Friedman como um anti-evangélico com o dom especial de profanar
contos sagrados e tradições religiosas de todo o mundo – Bacon and God’s Wrath, Love Songs for an Android, Beats in the Real
World etc. Friedman parte dessa questão que lembra bastante os aforismos
sombrios de Blake para mostrar nessa animação a Arca bíblica não mais como um
lugar de paz, harmonia e fé, mas algo muito mais parecido com um navio pirata.
Um lugar não menos comportado do que o mundo deixado para trás e
supostamente punido por Deus pelo Dilúvio universal.
A Arca e o motim
O curta é inteiramente narrado em of por uma voz em tom monótono (no final do curta descobrimos o porquê) que
descreve a Criação no livro do Gênesis até a colocação do homem no Paraíso, “à
imagem de Deus”. Rapidamente descreve a Queda humana no pecado, misturando
alusões bíblicas com referências e atitudes modernas, conferindo ao curta uma
curiosa atemporalidade – é um conto bíblico, mas poderia muito bem ser a
atualidade.
Noé é apresentado como um nerd simplório, com um boné de
caminhoneiro com a palavra “GOD” em destaque. Juntamente com a sua entediada
esposa (ela não aguenta mais as insistentes apologias sobre Deus), constrói a
Arca e junta no seu interior todos os animais. Nos primeiros dias, tudo parece
bem, em paz e harmonia. Até que os dias passam e a paciência das espécies
acaba.
A partir daí os animais se amotinam: começam a praticar todos os
pecados humanos (jogo, devassidão, violência, vícios etc.) até que amarram Noé
para deixa-lo morrer em um canto qualquer. Enquanto a mulher de Noé é poupada
para os animais... bom, deixemos os detalhes sórdidos para o leitor ver...
Essa animação é o tipo de coisa que certamente fará o leitor se
sentir culpado de tanto rir. E, por isso, não é indicada para espectadores com
o sentimento religioso mais sensível.
Segundo o diretor Sol Friedman, “os textos religiosos nunca foram
interpretados literalmente”. Para ele, a busca de interpretações simbólicas faz
esquecermos de quanto as situações descritas são loucas ou surreais.
Friedman parece partilhar da mesma opinião do corrosivo cartunista
Robert Crumb (autor de uma versão em quadrinhos dos 50 capítulo do Gênesis – clique aqui): “A Bíblia não é a palavra
de Deus, é a palavra dos homens. A ideia de milhões de pessoas tomando a Bíblia
tão seriamente é totalmente louca. A Bíblia não precisa ser satirizada. Ela já
é totalmente louca”.
O curta Day 40 em muitos
aspectos lembra a adaptação feita por Darren Aronofsky sobre o drama de Noé no
filme Noah (2014): o mundo terrestre
decadente na qual Noé insistentemente pede respostas ao “Criador” (jamais é
usada a palavra “Deus” naquele filme, sugerindo a interpretação gnóstica da
divindade como um Demiurgo) e jamais obtém respostas. Tudo parece sem propósito
e caótico, onde a serpente parece ser a única entidade de Luz diante de um
Criador homicida e ciumento – clique aqui.
O intrigante, e totalmente blasfemo na animação Day 40, é que ao final do Dilúvio não há
arco-íris e a pomba que traz um ramo em seu bico com as boas notícias é
cruelmente comida pelos animais amotinados.
Apesar de toda a blasfêmia, heresia e do humor negro como trata um
conto bíblico, o curta nos obriga a questionar os mitos da Criação que nos
ensinam desde a infância. Day 40 é
mais um exemplo que os filmes não precisam necessariamente ser sérios e
dramáticos para suscitar questões filosóficas.
O arquétipo do Zumbi - alerta de spoilers à frente
As águas baixam deixando revelar a escala de destruição e os
mortos que se transformam em um exército de zumbis. E levantam-se em busca de vingança, prontos
para atacar os animais da Arca: para quê serviu toda a destruição se os
sobreviventes poupados pela ira divina parecem ser piores do que aqueles que
foram castigados pelas águas? Tudo o que zumbis querem agora é um acerto de
contas com Deus.
E mais uma vez o fascínio pelos zumbis na cinematografia atual.
Como já discutimos em postagem anterior, os zumbis deixaram de ser personagens trashs de produções B para se
transformarem em um verdadeiro arquétipo contemporâneo.
O fascínio
pelos zumbis viria dessa estranha condição de “estrangeiros” que eles parecem
inspirar, fazendo-nos recordar da nossa própria condição humana: nem vivos e
nem mortos, lembranças familiares nos fazem vagar por esse mundo, mas, ao mesmo
tempo, a dor e a fome tornam esse mundo hostil, como se não fizéssemos parte
dele.
A revolta
deles vai além da crítica social e política. Há uma revolta metafísica e
gnóstica: nem a vida e nem a morte. O zumbi nos faz lembrar que a morte não é
libertação: em um sentido gnóstico apenas nos faz retornar a esse mundo por
meio da reencarnação, reproduzindo um ciclo vicioso infernal.
Os zumbis
parecem sempre nos lembrar que jamais escaparemos do passado, de todas as
histórias que nos causaram dor e que demonstram a nossa condição “estrangeira”
em um cosmos hostil.