Com ironia e com humor negro, "Almas à Venda" (Cold Souls, 2009), tematiza criticamente como o mundo dos negócios (management + tecnologias do espírito) invade nossa última morada que ainda tenta resistir: a alma. No mundo atual dominado pelo paradigma da financeirização na qual qualquer coisa (ações, títulos, carros, pessoas, sentimentos e até a alma) tem que ser submetida aos princípios da liquidez e mercantilização totais, um homem descobre a chave do sucesso: o "Armazém de Almas" - clínica especializada em estocar a sua alma para substituir por outra de um doador anônimo, mais bem sucedido. Mas o protagonista descobre algo mais: quando estamos vazios e sem alma conseguimos ser mais bem sucedidos profissionalmente.
A “alma do
tempo” e o “tempo da alma”. É nesse jogo de palavras que Alessandra Ageda (no
seu texto “Tio Vânia de Anton Tchekov, com direção de Celso
Frateschi” no site Cineminha) sintetiza as reflexões da peça teatral
Tio Vânia de Anton Tchekov: o que fazer com o tempo que nos resta? A questão
sobre o que fazer com nossas vidas, nossos desejos, não se restringe apenas a
um assunto de foro íntimo.
Nossas
questões do íntimo da alma são atravessadas pela alma do tempo, trazendo
imanência (concretude, história etc) a uma entidade metafísica que aspira
transcendência: a alma.
O filme Almas à Venda (Could Souls, 2009)
é uma comédia dramática instigante e com uma ácida ironia apresentando como
“alma do tempo” atravessa a forma como lidamos com os problemas da alma.
E qual é
a alma do nosso tempo? A hegemonia das ideias do management, com conceitos
vindos do mundo dos negócios. O cálculo das relações custo-benefício como forma
de pensar generalizada que vai do mundo corporativo até nossos amores e
amizades, trazendo a necessidade do ajuste fino das nossas almas a esse
paradigma de performance e desempenho.
A fim de
nos adaptarmos ao management, entra em ação toda a agenda científica
tecnognóstica das tecnologias do espírito (neurociências) que, como vimos em
postagens anterioras (veja links abaixo), procuram fazer uma verdadeira
cartografia e topografia da mente, na esperança de localizar a fonte última das
nossas motivações, sentimentos, emoções e impressões. E o cinema, de Vanilla Sky" até A Origem vem refletindo essa agenda, ou a “alma do nosso tempo”.
Almas à Venda não
apenas reflete essa agenda atual como faz uma reflexão crítica com muita ironia
e non sense. O filme faz lembrar produções como Quero Ser John Malkovich e Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, mas vai além na crítica.
Enquanto
os filmes anteriores são verdadeiras fábulas (narrativas com características
genéricas e ahistóricas), em Almas à
Venda o contexto
histórico, econômico e político é bem delineado: o mundo globalizado e o
neo-liberalismo dominado pelo paradigma da financeirização onde qualquer coisa
(ações, títulos, carros, pessoas, sentimentos e até a alma) tem que ser
submetida aos princípios da liquidez e mercantilização totais.
O Filme
O filme
começa com uma epígrafe impactante, que sintetiza bem a alma do nosso tempo: “A
Alma localiza-se em uma pequena glândula no centro do nosso cérebro”, Rene
Descartes, The Passion of Souls, 1649.
Em
seguida, vemos Paul Giamatti fazendo o papel do ator ... Paul Giamatti nas
cenas iniciais, tentando interpretar o personagem Tio Vânia em um ensaio da
peça homônima de Tchekov. A peça está prestes a entrar em cartaz e ele enfrenta
dificuldades com o papel: progressivamente sua vida pessoal confunde-se com a
do personagem e, por isso, está atormentado e amargurado com a vida.
Seu
agente indica um artigo na revista New Yorker sobre
um serviço que seria a solução dos seus problemas: o “Armazém de Almas”, uma
clínica na qual seus pacientes podem retirar sua alma e estocá-la e, até,
substituir por outra alma de um doador anônimo. Sem a alma, Paul se descobre um
homem mais leve, assertivo e sem angústia.
Mas se
achava que tinha encontrado a solução para suas angústias e tormentos, Paul
encontra mais problemas: sem a alma não consegue interpretar Tio Vânia ou fazer
sexo com sua esposa.
Consternado,
retorna à clínica e decide experimentar a alma de um poeta russo. Mas logo
percebe que essa alma é nobre e complexa demais para ocupar seu corpo e não
consegue dar conta de toda a sua complexidade. Decide, então, reaver sua
própria alma, estocada no depósito.
Desesperado,
descobre que ela foi roubada e levada para a Rússia em um empreendimento sem
escrúpulos e cruel: um empresário com ares de mafioso mantém um negócio em São
Petersburgo de aliciamento cruel de doadores e tráfico de almas que são
enviadas para os Estados Unidos no interior do corpo da “mula” Nina.
Paul vai
com ela à Russia para recuperar sua alma. No final do filme, Paul retorna à
clínica onde descobre que a instituição foi vendida para um fundo de investimento.
Sensibilizado
pelo drama pessoal da “mula” Nina (um corpo sem alma que carrega almas alheias
no esquema do tráfico internacional) tenta reaver a alma dela no depósito.
Descobre ser impossível porque os acionistas do fundo estão avaliando os
“ativos” e definindo novas políticas de preço com base no risco associado ao
investimento realizado.
Non sense total!
O que torna a atmosfera surreal do filme é a absoluta naturalidade como os
personagens lidam com a questão do “Armazém de Almas”: sem espanto, tudo verossímel,
natural e rotineiro, como mais um exemplo de criatividade e empreendedorismo no
mundo dos negócios.
Onde está a alma?
A
epígrafe que abre o filme com a citação de Descartes é a chave para entender a
“alma do tempo” e toda a crítica corrosiva do filme. É inacreditável perceber
que a agenda tecnognóstica atual procura materializar por meio das tecnologias
contemporâneas (neurológicas, fisiológicas, digitais e computacionais) um
anseio secular do imaginário científico racionalista expresso na frase de
Descartes no século XVII.
O
Gnosticismo cabalístico nutre uma profunda aversão ao corpo, ao biológico e ao
existencial, considerados limitações para as potencialidades do Eu. Em cada
livro de auto-ajuda, em cada linha de textos motivacionais, esconde-se essa
percepção profunda de que somente por meio dos códigos do management poderemos
nos libertar desses resíduos corporais.
Se
nossos sentimentos e emoções, na verdade, não passam de complexas reações
bio-químicas, poderiam, então, ser rastreadas, localizadas e isoladas em áreas
do cérebro. Finalmente, todos os esforços filosóficos, teológicos e esotéricos
estariam terminados com uma simples cartada tecno-científica: a localização
física da alma.
Almas à Venda leva
esse tema ao paroxismo, criando situações tragicômicas e, muitas vezes, de
absoluto humor negro - como o fato de Paul ver, decepcionado, que a sua alma
extraída tem aspecto de um grão de bico e, mais tarde, num restaurante, sem a
sua alma, recusar uma salada de grão de bico.
Management e a "vida sem culpas"
A ironia
do filme é de grande felicidade ao aproximar Tchekov e Rússia ao drama de Paul
Giamatti (será que o filme é auto-biográfico?). Talvez a Rússia seja um dos
países que mais dramaticamente experimenta as mazelas das políticas radicais do
Neo-Liberalismo trazidas ao país com o fim do Comunismo: a privatização total
do Estado e da vida pública por meio de cartéis mafiosos
narco-financeiros.
De um
lado a história e o sentimento da alma russa do passado em Tchekov. Do outro, a
atualidade do capitalismo narco-financeiro sem escrúpulos que mercantiliza e
trafica qualquer coisa.
Paul
Giamatti é vítima de um negócio que prospera a partir de uma descoberta
tecnognóstica desejada, no mínimo, desde o século XVII. Um negócio que vai ao
encontro do anseio do cidadão comum influenciado pelo paradigma do management: quem não quer ser mais leve e assertivo
para conduzir sua vida sem culpas, mágoas ou arrependimentos?
Mas Almas à Venda confronta tudo isso com o Gnosticismo
Alquímico: a alma não deve ser simplesmente descartada, mas confrontada num
processo alquímico de transformação. Ao ser extraída, Paul se recusa a olhar
sua alma “por dentro” através de óculos especiais. Ele quer apenas se livrar
dela. No final do filme, ao reencontrar sua alma e tentar re-implantá-la, ela
resiste. Paul, então, é obrigado a olhá-la por dentro, resultando numa
sequência em que a sucessão de imagens metonímicas e simbólicas são
apresentadas como a redenção e compreensão finais dos dramas da sua alma. Nada
mais freudiano, nada mais europeu e nada mais anti-americano.
Por trás
do paradigma do management da alma do nosso tempo esconde-se essa
agenda tecnognóstica da tecnologias do espírito: o descarte de almas para a
libertação das potencialidades do nosso Eu. O pior é que isso vira mais um
mercado a ser explorado pelo empreendedorismo e criatividade dos “novos padres”
do mundo dos negócios.
Ficha Técnica |
Título: Almas à Venda
|
Diretor: Sophia Barthes
|
Roteiro: Sophia Barthes
|
Elenco: Paul Giamatti,
Dina Korzum, David Strathairn, Emily Watson, Armand Schultz
|
Produção: Samuel Goldwyn Films
|
Distribuição: Europa Filmes
(Brasil)
|
Ano: 2009
|
País: EUA, França
|
Postagens Relacionadas |
Remake
de "O Prisioneiro" Adapta-se à Agenda Tecnognóstica
|
Da
NASA à Hollywood: o Cinema Reflete a Agenda Tecnognóstica
|
Filme
"A Origem": Nolan cai sob o Fascínio das Neurociências
|
Dicionário
de Comunicação apresente o verbete "Tecnognose"
|