quinta-feira, junho 01, 2017

O horror e a patologia humana no filme "A Cura"


À primeira vista parece um gigantesco pastiche de duas horas e meia de referencias a filmes como “Ilha do Medo”, “O Iluminado”, “Drácula” e filmes B de terror. Mas tudo isso é uma superfície narrativa. “A Cura” (“A Cure for Wellness”, 2016) trata de como o homem tirou Deus do seu altar de adoração e pôs no lugar a Ambição, gerando a patologia do homem moderno. O que garantirá uma inesgotável matéria-prima para um experimento que mistura geneticismo e horror. Um jovem agressivo e ambicioso corretor do mundo financeiro vai resgatar um CEO da sua empresa em um spa nos Alpes suíços famoso pelas suas águas terapêuticas. Para ali encontrar uma jornada pelo horror e o fantástico que exigirá a verdadeira cura: a transformação interior. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

“A ignorância, Sr. Lockhart, é a maior inimiga da Ciência”. Essa frase dita pelo Dr. Volmer quando, mais uma vez, captura Lockhart que tenta fugir do sinistro spa/sanatório localizado nas montanhas dos Alpes, é a síntese da mensagem do filme A Cura (A Cure for Wellness, 2016). Dirigida por um senso de Verdade e Justiça, a Ciência considera que, fora dela, não há salvação: só existe a escuridão da ignorância.

Mas as luzes da Ciência também produzem áreas de sombras: a amoralidade e a frieza, localizadas acima do Bem e do Mal.

As maiores atrocidades da História foram feitas tanto em nome da Religião quanto da Ciência: na primeira, o senso de Divino e Salvação condenou milhões à morte e aos infernos; e na segunda, a Verdade e o Conhecimento produziram a amoralidade por trás das guerras e do Progresso que condena milhões à morte, pobreza e obsolescência.

A Cura, do diretor Gore Verbinski (O Chamado, Piratas do Caribe) a princípio parece um gigantesco pastiche de duas horas e meia: encontramos referências a Drácula (um Castelo no alto das montanhas onde chega inadvertidamente um jovem), O Iluminado (o enquadramento geométrico e estilizado do spa/sanatório), Ilha do Medo de Scorsese (referencias a algum tipo de conspiração hospitalar e jogos de ilusões), além de toda uma cenografia e fotografia embalada na atmosfera dos filmes clássicos de terror B e a insistência em reviravoltas clichês como o enigma das palavras cruzadas ou o token da bailarina.

Mas o leitor não deve se perder nessa enxurrada de alusões. É apenas a superfície narrativa de temas bem profundos, todos em torno do eixo dos personagens oponentes Lockart e Volmer.


O primeiro, um jovem corretor do mercado financeiro agressivo, amoral e cínico; e o segundo, com as mesmas “qualidades”, porém voltadas à pesquisa científica que mistura geneticismo e horror.

Como naquele quadro do Goya O Sono da Razão, cada um deles é uma prova de como o pensamento racional pode produzir monstros: de um lado a racionalidade do mercado de títulos e câmbio. E do outro, a racionalidade científica capaz de gerar o Mal. E produzir a patologia do homem moderno que até agora não foi encontrada a cura: a amoralidade e frieza.

A virtude do filme é que no início não há mocinhos ou bandidos: não conseguimos sentir a menor empatia pelos dois oponentes, até descobrirmos que estamos acompanhando uma jornada de transformação e “cura” gnóstica – a jornada do herói que parte do mundo ordinário, para mergulhar no Outro mundo (do horror e do fantástico) para sair de lá transformado de volta ao mundo ordinário, rompendo com ele.

O Filme


Lockart (Dane DeHaan) é um jovem operador do mercado financeiro ambicioso e agressivo em meio a uma complexa e decisiva operação de fusão milionária de empresas. Mas há algo de errado e ilegal nessa operação. A Comissão de Títulos e Câmbio vai investigar a operação o que poderá incriminar todo o conselho da empresa.

Os parceiros da operação precisam que o CEO da empresa, Roland Pembroke, esteja presente. Porém já há algum tempo, após um colapso nervoso, Pembroke (Harry Groener) foi para um retiro remoto nos Alpes suíços, local famoso entre os milionários pelas suas águas milagrosas provenientes de um aquífero abaixo do spa.

De lá, Pembroke enviou uma estranha carta dizendo que estava transformado e alheio ao mundo exterior. Dificilmente ele retornaria para o mundo dos negócios.


Então, Lockart é enviado para lá. De cara conhecemos a sinistra história que envolve o spa: ele foi construído sobre as ruínas de um castelo incendiado pelos aldeões locais há 200 anos. O barão desejava um herdeiro de sangue puro e resolveu casar com sua própria irmã. Quando descobriu que ela era infértil, iniciou uma série de pesquisas e experimentos infernais capturando camponeses como cobaias. O experimento foi bem sucedido. Porém, revoltados, os camponeses queimaram o castelo e capturaram a irmã do Barão grávida, para arrancar-lhe o feto do ventre e queimá-la no incêndio. O feto foi jogado no aquífero sob o castelo.

Depois desse horrível relato dos moradores locais, e entre uma hidroterapia e outra, Lockart suspeitará que a tal “cura” através das águas locais está envolta em algum experimento sinistro.

E o tratamento produz um estranho “bem estar”: nenhum dos pacientes quer mais sair dali, embora todos pareçam piorar quanto mais tempo permanecem no spa.

Mas de todos os pacientes milionários internados no local (que mais parecem zumbis jogando cartas e cricket) uma chama a atenção de Lockart: uma adolescente chamada Hannah (Mia Goth), com roupas e um appeal entre o romantismo e o gótico. Ela é tratada com particular cuidado e devoção pelo Dr. Volmer (Jason Isaacs) que a submete a um tratamento com “vitaminas” dada por ele em conta-gotas.


Instituições totais


Assim como filme Ilha do Medo (analisado pelo Cinegnose, clique aqui), A Cura trata de um protagonista preso em uma “instituição total” (manicômios, hospitais, presídios, conventos etc.), instituição criada para disciplinar os indivíduos considerados não socializáveis, tal como estudada por nomes como Goffman e Foucault.

Goffman destacou o aspecto central dessas instituições: ruptura de barreiras e a união disciplinar das esferas do dormir, brincar e trabalhar.

Enquanto Foucault destacou a expansão do chamado biopoder: a unificação disciplinar do corpo e da mente – corpos individualizados e dóceis e a mente que que aceita a vigilância e a disciplina.

Porém, todas essas pesquisas limitam-se a descrever os mecanismos de disciplina e capilarização do poder que submete os indivíduos. Mas não respondem uma questão ontológica: para quê existem essas instituições? Para quê controle e disciplina? Poder pelo poder? Roubar dos indivíduos apenas a sua liberdade?


No filme A Cura são mostrados todas as características das instituições totais (controle total do corpo por meio do discurso da doença, e da mente por meio da incapacitação cognitiva). Mas ao acrescentar o toque CosmoGnóstico na narrativa, A Cura passa para o campo ontológico ou metafísico: qual o propósito daquele spa/sanatório?

Uma armadilha CosmoGnóstica – aviso de spoilers à frente


Como um demiurgo, Volmer mantém todos prisioneiros graças a uma ilusão terapêutica de cura para destilar dos corpos e mentes a matéria-prima do elixir da sua própria imortalidade. Nada mais CosmoGnóstico, assim como em Matrix (onde os corpos humanos fornecem energia para a manutenção da ilusão virtual da Matrix) ou em Cidade das Sombras (Dark City, 1998) - no qual humanos são confinados em uma cidade-laboratório para alienígenas de uma raça em extinção extraírem das cobaias a essência da alma.

E ironicamente, para Volmer a matéria-prima do seu macabro experimento é inesgotável, como afirma a certa altura do filme: no altar da adoração, o homem retirou Deus e colocou no lugar a ambição, produzindo uma inesgotável doença que faz milionários irem para aquele local: o mal-estar da frieza e do esgotamento psíquico, que conduz gente como o CEO Pembroke para os Alpes suíços em busca de um tratamento que na verdade é uma armadilha.

O protagonista Lockart é o clássico personagem do Viajante: alguém bem sucedido no topo de uma empresa do mundo financeiro de Nova York que mergulhará em um jogo que embaralha realidade e ilusão para se transformar interiormente.


A bicicleta e a Jornada do Herói


A fuga final do protagonista, de bicicleta (o simbolismo fílmico moderno da transgressão e liberdade – clique aqui), resgatando a jovem Hannah é o clássico retorno do herói ao mundo ordinário. O herói não só transformado interiormente, mas que rompe com a própria ordem do mundo que deixou – uma releitura gnóstica contemporânea da tradicional Jornada do Herói de Joseph Campbell na mitografia e de Christopher Vogler no cinema.

Mas no filme A Cura há também um estranho senso de justiça: Volmer confina e extrai o pingo de humanidade que ainda resta de uma elite (milionários e CEOs de empresas), a classe dominante que domina e explora o restante dos humanos do planeta.

Se no filme CosmoGnóstico pessoas comuns são prisioneiras em armadilhas cosmológicas (realidade virtual, reality show etc.) ironicamente em A Cura as vítimas são outros demiurgos que também exploram outros seres humanos. A isca é a promessa de cura da doença humana da ambição. Pessoas tão frias e agressivas que restou muito pouco de humanidade.

Por isso, Volmer (e toda a sua parafernália de máquinas de transfusões e tanques) terá que espremer muito bem o bagaço. Até jogar o que restou no aquífero, à espera de mais cobaias que nunca acabam.


Ficha Técnica

Título: A Cura
Diretor: Gore Verbinski
Roteiro:  Justin Haythe
Elenco:  Dane DeHaan, Jason Isaacs, Mia Goth, Ivo Nandi, Adrian Schiller
Produção: Regency Enterprises
Distribuição: 20th Century Fox
Ano: 2016
País: EUA/Alemanha

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