À primeira
vista parece um gigantesco pastiche de duas horas e meia de referencias a
filmes como “Ilha do Medo”, “O Iluminado”, “Drácula” e filmes B de terror. Mas
tudo isso é uma superfície narrativa. “A Cura” (“A Cure for Wellness”, 2016)
trata de como o homem tirou Deus do seu altar de adoração e pôs no lugar a
Ambição, gerando a patologia do homem moderno. O que garantirá uma inesgotável
matéria-prima para um experimento que mistura geneticismo e horror. Um jovem
agressivo e ambicioso corretor do mundo financeiro vai resgatar um CEO da sua
empresa em um spa nos Alpes suíços famoso pelas suas águas terapêuticas. Para ali encontrar uma jornada pelo horror
e o fantástico que exigirá a verdadeira cura: a transformação interior. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.
“A ignorância,
Sr. Lockhart, é a maior inimiga da Ciência”. Essa frase dita pelo Dr. Volmer
quando, mais uma vez, captura Lockhart que tenta fugir do sinistro
spa/sanatório localizado nas montanhas dos Alpes, é a síntese da mensagem do
filme A Cura (A Cure for Wellness, 2016). Dirigida por um senso de Verdade e
Justiça, a Ciência considera que, fora dela, não há salvação: só existe a
escuridão da ignorância.
Mas as luzes da
Ciência também produzem áreas de sombras: a amoralidade e a frieza, localizadas
acima do Bem e do Mal.
As maiores
atrocidades da História foram feitas tanto em nome da Religião quanto da
Ciência: na primeira, o senso de Divino e Salvação condenou milhões à morte e
aos infernos; e na segunda, a Verdade e o Conhecimento produziram a amoralidade
por trás das guerras e do Progresso que condena milhões à morte, pobreza e
obsolescência.
A Cura, do diretor Gore Verbinski (O
Chamado, Piratas do Caribe) a
princípio parece um gigantesco pastiche de duas horas e meia: encontramos referências
a Drácula (um Castelo no alto das
montanhas onde chega inadvertidamente um jovem), O Iluminado (o enquadramento geométrico e estilizado do
spa/sanatório), Ilha do Medo de
Scorsese (referencias a algum tipo de conspiração hospitalar e jogos de
ilusões), além de toda uma cenografia e fotografia embalada na atmosfera dos
filmes clássicos de terror B e a insistência em reviravoltas clichês como o
enigma das palavras cruzadas ou o token
da bailarina.
Mas o leitor
não deve se perder nessa enxurrada de alusões. É apenas a superfície narrativa
de temas bem profundos, todos em torno do eixo dos personagens oponentes
Lockart e Volmer.
O primeiro, um
jovem corretor do mercado financeiro agressivo, amoral e cínico; e o segundo,
com as mesmas “qualidades”, porém voltadas à pesquisa científica que mistura
geneticismo e horror.
Como naquele quadro
do Goya O Sono da Razão, cada um
deles é uma prova de como o pensamento racional pode produzir monstros: de um
lado a racionalidade do mercado de títulos e câmbio. E do outro, a
racionalidade científica capaz de gerar o Mal. E produzir a patologia do homem
moderno que até agora não foi encontrada a cura: a amoralidade e frieza.
A virtude do
filme é que no início não há mocinhos ou bandidos: não conseguimos sentir a
menor empatia pelos dois oponentes, até descobrirmos que estamos acompanhando
uma jornada de transformação e “cura” gnóstica – a jornada do herói que parte
do mundo ordinário, para mergulhar no Outro mundo (do horror e do fantástico)
para sair de lá transformado de volta ao mundo ordinário, rompendo com ele.
O Filme
Lockart (Dane
DeHaan) é um jovem operador do mercado financeiro ambicioso e agressivo em meio
a uma complexa e decisiva operação de fusão milionária de empresas. Mas há algo
de errado e ilegal nessa operação. A Comissão de Títulos e Câmbio vai
investigar a operação o que poderá incriminar todo o conselho da empresa.
Os parceiros da
operação precisam que o CEO da empresa, Roland Pembroke, esteja presente. Porém
já há algum tempo, após um colapso nervoso, Pembroke (Harry Groener) foi para
um retiro remoto nos Alpes suíços, local famoso entre os milionários pelas suas
águas milagrosas provenientes de um aquífero abaixo do spa.
De lá, Pembroke
enviou uma estranha carta dizendo que estava transformado e alheio ao mundo
exterior. Dificilmente ele retornaria para o mundo dos negócios.
Então, Lockart
é enviado para lá. De cara conhecemos a sinistra história que envolve o spa:
ele foi construído sobre as ruínas de um castelo incendiado pelos aldeões
locais há 200 anos. O barão desejava um herdeiro de sangue puro e resolveu
casar com sua própria irmã. Quando descobriu que ela era infértil, iniciou uma
série de pesquisas e experimentos infernais capturando camponeses como cobaias.
O experimento foi bem sucedido. Porém, revoltados, os camponeses queimaram o
castelo e capturaram a irmã do Barão grávida, para arrancar-lhe o feto do
ventre e queimá-la no incêndio. O feto foi jogado no aquífero sob o castelo.
Depois desse
horrível relato dos moradores locais, e entre uma hidroterapia e outra, Lockart
suspeitará que a tal “cura” através das águas locais está envolta em algum
experimento sinistro.
E o tratamento
produz um estranho “bem estar”: nenhum dos pacientes quer mais sair dali,
embora todos pareçam piorar quanto mais tempo permanecem no spa.
Mas de todos os
pacientes milionários internados no local (que mais parecem zumbis jogando
cartas e cricket) uma chama a atenção de Lockart: uma adolescente chamada
Hannah (Mia Goth), com roupas e um appeal
entre o romantismo e o gótico. Ela é tratada com particular cuidado e devoção
pelo Dr. Volmer (Jason Isaacs) que a submete a um tratamento com “vitaminas”
dada por ele em conta-gotas.
Instituições totais
Assim como
filme Ilha do Medo (analisado pelo
Cinegnose, clique aqui), A Cura trata de um protagonista preso em uma “instituição total”
(manicômios, hospitais, presídios, conventos etc.), instituição criada para
disciplinar os indivíduos considerados não socializáveis, tal como estudada por
nomes como Goffman e Foucault.
Goffman
destacou o aspecto central dessas instituições: ruptura de barreiras e a união
disciplinar das esferas do dormir, brincar e trabalhar.
Enquanto
Foucault destacou a expansão do chamado biopoder: a unificação disciplinar do
corpo e da mente – corpos individualizados e dóceis e a mente que que aceita a
vigilância e a disciplina.
Porém, todas
essas pesquisas limitam-se a descrever os mecanismos de disciplina e
capilarização do poder que submete os indivíduos. Mas não respondem uma questão
ontológica: para quê existem essas instituições? Para quê controle e
disciplina? Poder pelo poder? Roubar dos indivíduos apenas a sua liberdade?
No filme A
Cura são mostrados todas as características das instituições totais
(controle total do corpo por meio do discurso da doença, e da mente por meio da
incapacitação cognitiva). Mas ao acrescentar o toque CosmoGnóstico na
narrativa, A Cura passa para o campo ontológico ou metafísico: qual o propósito
daquele spa/sanatório?
Uma armadilha CosmoGnóstica – aviso de spoilers à frente
Como um
demiurgo, Volmer mantém todos prisioneiros graças a uma ilusão terapêutica de
cura para destilar dos corpos e mentes a matéria-prima do elixir da sua própria
imortalidade. Nada mais CosmoGnóstico, assim como em Matrix (onde os corpos humanos fornecem energia para a manutenção
da ilusão virtual da Matrix) ou em Cidade
das Sombras (Dark City, 1998) -
no qual humanos são confinados em uma cidade-laboratório para alienígenas de
uma raça em extinção extraírem das cobaias a essência da alma.
E ironicamente,
para Volmer a matéria-prima do seu macabro experimento é inesgotável, como
afirma a certa altura do filme: no altar da adoração, o homem retirou Deus e
colocou no lugar a ambição, produzindo uma inesgotável doença que faz milionários
irem para aquele local: o mal-estar da frieza e do esgotamento psíquico, que
conduz gente como o CEO Pembroke para os Alpes suíços em busca de um tratamento
que na verdade é uma armadilha.
O protagonista
Lockart é o clássico personagem do Viajante: alguém bem sucedido no topo de uma
empresa do mundo financeiro de Nova York que mergulhará em um jogo que
embaralha realidade e ilusão para se transformar interiormente.
A bicicleta e a Jornada do Herói
A fuga final do
protagonista, de bicicleta (o simbolismo fílmico moderno da transgressão e
liberdade – clique aqui), resgatando a jovem Hannah
é o clássico retorno do herói ao mundo ordinário. O herói não só transformado
interiormente, mas que rompe com a própria ordem do mundo que deixou – uma
releitura gnóstica contemporânea da tradicional Jornada do Herói de Joseph
Campbell na mitografia e de Christopher Vogler no cinema.
Mas no filme A Cura há também um estranho senso de
justiça: Volmer confina e extrai o pingo de humanidade que ainda resta de uma elite
(milionários e CEOs de empresas), a classe dominante que domina e explora o
restante dos humanos do planeta.
Se no filme
CosmoGnóstico pessoas comuns são prisioneiras em armadilhas cosmológicas
(realidade virtual, reality show etc.) ironicamente em A Cura as vítimas são outros demiurgos que também exploram outros
seres humanos. A isca é a promessa de cura da doença humana da ambição. Pessoas
tão frias e agressivas que restou muito pouco de humanidade.
Por isso,
Volmer (e toda a sua parafernália de máquinas de transfusões e tanques) terá
que espremer muito bem o bagaço. Até jogar o que restou no aquífero, à espera
de mais cobaias que nunca acabam.
Ficha Técnica |
Título: A Cura
|
Diretor:
Gore Verbinski
|
Roteiro: Justin Haythe
|
Elenco: Dane DeHaan,
Jason Isaacs, Mia Goth, Ivo Nandi, Adrian Schiller
|
Produção: Regency Enterprises
|
Distribuição:
20th Century Fox
|
Ano: 2016
|
País: EUA/Alemanha
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