“Relaxe, tudo está sob controle” é o que sempre parecem nos dizer as
máquinas e as tecnologias. Por isso elas nos fascinam e nos gratificam a ponto
de se tornarem modernas religiões. É o que nos mostra a série com cinco curtas de
animação “Bendito Machine” (2006-2014). Produzida pelo estúdio espanhol
Zumbakamera, cada episódio apresenta máquinas que sempre parecem “defecar” pequenas
criaturas globulares com olhos que nos controlam por meio da oferta dos
prazeres da ambição e gula. Em tempos de apps virais como o Pokémon GO chegando
em terras brasileiras, assistir a essa série é obrigatório.
O homem é
controlado e corrompido pela sociedade. Mas a sociedade é feita pelos homens.
Quando falamos em sociedade, Estado, corporações, parece que falamos sobre
abstrações. Afinal, todas essas instituições são feitas pelos próprios homens.
O homem é vítima ou é o culpado?
Marx avaliava
que a sociedade capitalista da luta de classes e dominada por uma classe
exploradora era a culpada. Mas o Estruturalismo, tanto na antropologia, linguística
e psicanálise, falava em uma “estrutura inconsciente” simbólica que estaria
acima dos próprios homens, subjugando-os.
Adorno e
Horkheimer juntaram tudo isso na interpretação do drama de Ulisses na Odisseia
de Homero na famosa narrativa da ameaça
das sereias ao navio do herói: Ulisses se deixa amarrar no mastro da sua nau
enquanto os remadores estão com os ouvidos tampados com cera para não ouvirem o
perigoso canto das sereias que fazia afundar navios. Ulisses amarrado à
embarcação e os remadores surdos era para a dupla de pensadores a metáfora da
elite e trabalhadores de todas as épocas amarrados às estruturas da civilização
que segue o rumo inexorável – sobre isso leia o livro ADORNO, Theodor e HORKHEIMER, Max, Dialética do
Esclarecimento, Zahar, 1985.
A série de cinco curtas de animação Bendito Machine (2006-2014), do estúdio
espanhol Zumbakamera, entra nesse debate. Para o diretor Jossie Malis existem
estruturas de dominação, exploração e poderes invisíveis. Mas tudo surge de
estranhas máquinas: cada episódio narra o catastrófico surgimento de uma nova
raça de máquinas e seus insólitos vínculos humanos com a tecnologia. Uma
relação de amor e ódio que se transforma em espelho daquilo que nós somos.
São animações feitas em Flash que nos oferece
reminiscências do primitivo teatro de sombras. Os episódios fazem uma mescla de
maquinismo industrial, cultura tribal, pré-história enquanto os humanos
enfrentam sua própria “evolução” à mercê de guerras, avanço tecnológico e
forças desconhecidas.
Os episódios
O primeiro episódio lança os conceitos mais
gerais que nortearão todos os outros episódios da série. Vemos uma tribo
primitiva que idolatra uma máquina que “produz” (na verdade parece que defeca,
como todas as outras máquinas que virão) criaturas globulares com imensos olhos
que são recolhidos e levados para a aldeia.
Um dia, uma aldeia rival “modernista” destrói
a máquina, para construir uma máquina maior que produz “olhos” com muito mais rapidez. Logo a máquina
transforma-se numa indústria que enriquece a aldeia, produzindo uma nova elite
e uma estrutura de classes.
Esse primeiro episódio contém uma série
potencial de simbolismos. A velha tribo representa uma religião primitiva,
destruída por uma nova religião: a indústria e o comércio.
Máquinas que defecam olhos que, depois, serão
comercializados ou vendidos é um conceito presente em todos os episódios. As
máquinas parecem alimentar seus usuários primeiro com a fé, na religião
primitiva. Depois, com ganância e gula que torna a moderna religião muito
maior, até encontrar a sua decadência.
A primeira associação que o leitor poderá
fazer com essas criaturas globulares é o olhar da vigilância e controle. Mas a
série acrescenta uma nova interpretação a esse imaginário Big Brother: as
máquinas e as criaturas com imensos olhos vigiam e controlam, mas também nos
fascinam porque nos dão prazeres. Em consequência geram controle por
dependência.
No segundo episódio Bendito Machine 2 (2008) uma espécie de vaca acoplada a outra
máquina sagrada é tomada para das suas tetas produzir um leite em escala
industrial que produz divertida alucinação coletiva nos habitantes da aldeia,
enquanto o dono da caixa registradora enriquece – a analogia com a Coca-Cola é
irresistível.
Como sempre, há ascensão e queda, mas nunca
superação: uma nova “vaca sagrada” é criada que produzirá agora novas pequenas
criaturas globulares com olhos que perpetuam no futuro a ganância e gulodice.
Em Bendito
Machine 3 (2009) o tema são as máquinas de comunicação que se tornam deuses
tecnológicos. São adorados um após outro. Cada um deles oferece gratificação e
entretenimento. Até cada um deles tornar-se obsoleto para, então, ser jogado em
um lixão tecnológico. Vemos a sucessão do rádio, TV e Internet. A máquina-TV é
agressiva, impõe modismos, assusta crianças, cria guerras e violência. Até ser
jogada no lixão e entrar a máquina-Internet-discada. Que rapidamente é
substituída pela máquina-internet-banda-larga, uma máquina ameaçadora e
tentacular.
Bendito
Machine 4 (2012) nos mostra as
máquinas produzidas pela matriz energética do petróleo: poluição, catástrofe
ecológica são ignoradas diante da adoração e fascínio pela nova religião dos
derivados do petróleo. A religião é tão poderosa que os seus discípulos
pretendem expandir o domínio para outros planetas pelas viagens espaciais. Mas,
como sempre, a humanidade encontra a sua queda numa sequência que lembrará uma
antiga animação francesa chamada Planeta
Fantástico (La Planèt Sauvage,
1973) – analisado pelo blog, clique aqui.
Bendito
Machine 5 (2014) apresenta uma visão
condensada da história humana, testemunhada por um pobre ET que chega ao
planeta em meio às guerras do império romano. Acaba aprisionado e esquecido.
Contra a vontade, acaba testemunhando toda a história humana evoluindo das
armas mais primitivas à destruição nuclear.
Agora o Estúdio Zumbakamera prepara o
episódio 6 que pretende ser o episódio final: narrará a viagem de uma solitária
máquina perdida nos confins do Universo em busca de respostas. Encontrará uma
força suprema (que ao longo da série parece existir, sempre interferindo em
momentos decisivos a partir do alto) que inevitavelmente mudará a existência
para nos levar a um ponto de retorno trágico e hilariante.
Ao longo dos anos, a série foi selecionada em 500 festivais ao redor do mundo e recebeu 86 prêmios pelo público e por jurados.
Ao longo dos anos, a série foi selecionada em 500 festivais ao redor do mundo e recebeu 86 prêmios pelo público e por jurados.