O filme “Matrix” e o conto “Sobre o Rigor da Ciência” do argentino Jorge
Luís Borges ajudam bastante a entender a atual febre em torno do jogo Pokémon
GO. Não a compreender o jogo em si (de forma positiva ajuda a nos familiarizar com o ambiente urbano e nos
tira do sedentarismo, a velha crítica contra os tradicionais games de
computadores e consoles) mas a elucidar para qual futuro ele aponta. Realidade
aumentada é a união da representação com a tecnologia, do mapa com o
território, do virtual com o real. Mas se no conto de Borges pedaços do mapa
ficaram grudados ao real, no mundo Matrix é o real que vira um deserto e se
agarra na virtualidade. Por enquanto programas como Pokémon GO são metafóricos,
anedóticos e, por isso, divertidos. Mas a tecnologia da realidade aumentada vai
muito além do que ajudar a compreensão da realidade: pode desertificá-la.
Já sei o que
muitos leitores devem estar pensando: mais um intelectual querendo falar mal do
Pokémon GO! Pelo menos prometo fazer uma análise imparcial desse game.
Não há como
negar que o game é uma resposta a tantas críticas sobre a alienação dos jogos
por computadores – isolamento, sedentarismo dos corpos estáticos com olhos
grudados e as mão nervosas em um console, gente esquecendo das próprias
necessidades fisiológicas como fome e sede, afundado em uma cadeira de uma Lan
House etc.
Pelo contrário,
agora as pessoas caminham pela cidade com cenas comoventes de pais jogando com
seus filhos em parques, a dopamina à toda alimentando a caça aos Pokemons, a
aleatoriedade ambiental que o jogo impõe aos jogadores, incentivando-os a
explorar os arredores, sair pelas ruas etc.
Conheci o Pokémon
GO através do meu filho mais velho. Acompanhando-o no jogo para entender a
mecânica percebi que possui muitas nuances como Pokégyms, Pokébolas,
Pokéstops... Aliás, um desses Pokéstops faria a alegria de teóricos da
conspiração.
Esses pontos
(para onde o jogador deve se dirigir para obter mais Pokébolas, ovos, incensos
etc.) localizam-se em praças públicas e endereços culturais da cidade. Um deles
ficava em frente a uma grande Estrela de David estilizada de uma marmoraria que
fornece o material para um cemitério israelita em São Paulo – já imaginei
paranoicos vendo mais uma conspiração judaico-iluminati da Nova Ordem
Mundial...
Pokémons, mapas e desertos
Pokémon GO é um
game que permite aos jogadores capturar uma variedade de criaturas digitais que
se sobrepõem caprichosamente sobre paisagens reais familiares capturadas por
uma câmera de smartphone. Locais do mundo real, vistos através da tela,
tornam-se o habitat dessas criaturas.
É um jogo que
explora a tecnologia de realidade aumentada – técnica para unir o mundo real
com o virtual, inserindo objetos virtuais no mundo físico em tempo real usando
a interface para manipular objetos reais e virtuais. Filosoficamente, a
realidade aumentada é uma confluência entre representação e tecnologia.
Olhando a
interface do jogo, mostrando um mapa dos arredores a partir da localização do
usuário, fez-me imediatamente lembrar de um conto do escritor surrealista Jorge
Luís Borges chamado Sobre o Rigor da Ciência que farei um breve resumo.
Era uma vez um
reino obcecado por cartografia, cujos cidadãos queriam fazer um mapa perfeito
do seu território. Insatisfeitos com a exatidão de suas tentativas, passaram a
criar mapas atrás de mapas em escalas cada vez maiores e com detalhes mais
exatos.
Finalmente,
chegaram ao mapa perfeito em uma escala 1:1 – era tão minucioso que replicava a
própria paisagem. Ficou do tamanho do império, como um cobertor que cobria toda
a terra.
Logo os cartógrafos
perceberam quão inútil era esse mapa e o abandonaram nos desertos ocidentais do
reino. Ainda seria possível ver antigos pedaços desse mapa agarrando-se à
realidade.
O mapa não é o território
Qual a lição que
podemos tirar desse conto? De que a representação (o “signo”) nunca será a
própria coisa. A representação é uma tecnologia que signaliza a realidade. Por
isso, sempre houve uma desconfiança dos avanços tecnológicos pela ambivalência
dos símbolos, imagens e toda uma gama de formas de representar a realidade:
podem ser mentiras, simulações, dissimulações, simulacros ou idolatria – como
bem nos mostrou a exploração política das imagens pela Igreja Católica desde o
Barroco.
A palavra é a
tecnologia de representação mais antiga – exige uma colaboração entre leitor e
escritor para criar uma ficção da realidade. Ler a palavra (técnica) e
imaginar o objeto representado – aquilo
que chamamos de imaginário.
Já na
antiguidade clássica Platão olhava com desconfiança atores, artistas e poetas
de pretenderem fazer um fac-símile da realidade. Em A República Platão
acusava-os de fazerem uma mera imitação da realidade, no mesmo estilo sugerido
por Jorge Luís Borges e seus mapas.
Desde Platão,
séculos se passaram e percebe-se que o avanço da tecnologia vai na direção de
borrar as fronteiras entre a técnica (a representação) e o real, ou entre real
e imaginário. O mapa não é o território, o virtual não é o real. Porém, cada
desenvolvimento tecnológico faz com que seja mais difícil estabelecer essas
distinções.
Aliás, um dos
sintomas clínicos da esquizofrenia é tomar a representação como a própria
coisa. Algo como entrar em um restaurante, pedir o cardápio e comê-lo achando
que a foto do filé a parmegiana seja o próprio prato servido.
Se nas imagens
tecnológicas clássicas como a fotografia e o cinema esse emaranhado
representação/realidade já estava presente (como nas lendas de que a fotografia
roubava nossa alma ou no susto da audiência com as imagens de um trem em
movimento no primeiro cinema), agora com o ao vivo, on line, tempo real e
tecnologias imersivas como 3D, 4D, realidade virtual e realidade aumentada as
fronteiras tendem a desaparecer na percepção.
Curta "Hyper-Reality" |
Realidade aumentada e hiper-realidade
Em si não há
nada de perturbador sobre o Pokémon GO – a não ser as denúncias coleta ilegal
de dados pessoais e de que o Niantic Labs (desenvolvedor do game) é
gerenciado por John Hanke, homem
responsável pelo maior escândalo de privacidade na Internet nos seus tempos de
Google: os carros de rastreamento do Google Street View copiou secretamente
tráficos de internet de redes domésticas, coletando senhas, e-mails,
informações financeiras etc., segundo The Intercept – clique aqui.
Em termos de
tecnologia, o jogo apenas arranha a superfície das possibilidades futuras da
realidade aumentada. Essa talvez seja o principal ponto para ser discutido:
assim como foi o velho ICQ nos anos 1990, que preparou toda uma nova geração
para o uso massivo de programas de comunicação instantâneas no trabalho e lazer
no século XXI.
A realidade
aumentada promete ir muito além do rigor cartográfico daquele reino descrito
por Jorge Luís Borges. Está muito mais próximo da metáfora do filme Matrix: o
mapa superando o próprio território – se, como dizem as neurociências, a
experiência da realidade nada mais é do que uma configuração de reações
químicas e disparos de neurônios no cérebro, as imagens deixarão de ser apenas
representações ou cartografias do território.
Superarão a
realidade de tal forma que teremos apenas os farrapos do mundo real se
agarrando ao mapa.
Como exemplifica
o curta Hyper-Reality de Keiich Matsuda (analisado pelo Cinegnose, clique aqui) onde o protagonista
caminha pelas ruas de Medelin, Colombia, com um Google Glass no qual a cidade é
coberta por camadas e camadas de dados,
interfaces, menus de opções, animações, pop ups, etc.
A realidade
aumentada do data-glass amplifica ou hiper-realiza o real (as ruas e edifícios
ficam melhores, mais coloridos, as pessoas mais interessantes, tudo fica
divertido e interativo), enquanto lá fora, do outro lado das camadas de dados,
está o deserto do real.
Vivemos uma
época na qual a tecnologia tem produzido representações cada vez mais
divorciadas da realidade.
Pokémon GO faz o
jogador despender um esforço real e tempo para capturar os animaizinhos
digitais. Faz até nos tornar mais familiarizados com os nossos ambiente
urbanos, mas apenas dentro do contexto de interação do jogo.
Em toda a
História, as representações da realidade nos tocaram, fizeram a gente pensar e
enobreceu a espécie através das artes e das comunicações. Porém, Pokémon GO é
um exemplar ainda muito incipiente (e, por isso, divertido) da futura
desertificação do real – o momento em que as representações tornam-se apresentações,
isto é, suplantam a própria realidade.
Por enquanto,
programas como Pokémon GO são apenas metafóricos e anedóticos. Sua tecnologia
não tende a melhorar a compreensão da realidade, mas desertificá-la.
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