domingo, fevereiro 28, 2010

Gnose e estados alterados de consciência em filmes

Melhor que qualquer outro meio artístico, o cinema dilui as fronteiras entre o mito e a realidade. É partindo dessa idéia que o livro The Secret Life of Movies - Schizophrenic and Shamanic Journeys in American Cinema de Jason Horsley explora não apenas o reino do insconsciente social mas, principalmente, a potencialidade desse meio proporcionar a experiência da gnose.

Este livro examina cineastas e filmes que se centram em torno de temas da alienação esquizofrênica, paranóia, discriminação, fantasia, sonhos, a demência e a violência. A perda da identidade individual, tal como refletida nos filmes, é investigada, assim como a potencial "viagem xamânica" ou a gnose inerente ao tema.

No programa radiofônico norte-americano Aeon Byte Gnostic Radio Show (veja o link na nossa lista de blogs recomendados), Jason Horsley foi entrevistado e fez a seguinte observação sobre o gnosticismo no cinema:

Se a vida imita a arte, o meio mais popular para a arte nos dias de hoje expõe uma civilização que se tornou cada vez mais fragmentada, sem contato com realidades mais profundas, e lutando para encontrar individuação. Além do aparente aumento de filmes com temática gnóstica, os grandes filmes culturais, atores e diretores de nossa era levantam um espelho para a humanidade expondo uma luta desesperada pela sobrevivência em um mundo pós-moderno, a paranóia que envolve as conquistas modernas e instituições, e o medo pela existência de um universo vazio governado por poderes das trevas. No entanto, o espelho também lança a possibilidade de uma iniciação alquímica que inicie uma viagem de regresso do homem à sua origem espiritual, escondida no meio da aridez das narrativas esquizofrênicas. Desde o niilismo de Hitchcock ao Logos existencial de 'The Matrix', da desolação do cinema western at até as entregas sombrias de Johnny Depp, buscamos essa centelha de redenção e gnose em suas mensagens junguianas.


O livro de Horsley corrobora com nossas pesquisas sobre a recorrência dos temas e simbolismos gnósticos no cinema. A gnose como uma abertura para uma realidade transcendente por meio de estados alterados de consciência (suspensão, melancolia e paranóia, como descreveram os grandes pensadores gnósticos do início da era cristã como Basilides, Mani e Valentim) é descrita por ele nos termos de uma jornada xamânica. Levanta um importante aspecto sobre a experiência do sagrado tal qual dessenvolvemos nos termos de uma Teologia Negativa: o sagrado é uma experiência alquímica que se inicia no mal estar e na dor que a Totalidade impinge ao indivíduo. Ao invés de negada (terapeutizada ou racionalizada) ela deve ser aprofundada ao ponto que se torne num estado alterado de consciência, a abertura para a gnose e a transcendência. Como salienta Horsley em seu livro, o cinema é o principal meio artístico para expressar essa experiência.

Jason Horsley foi por muito tempo crítico de cinema. Além disso é autor de um romance, roteiros e vários livros de não-ficção sobre o cinema moderno. Seus projetos incluem a produção dos filmes The God Game, Beauty Fool e Being The One. De origem inglesa, vive atualmente no Canadá.

sábado, fevereiro 27, 2010

Gnosticismo Cabalístico e Tecnognose: o atalho para a Gnose

O início de todas as nossas pesquisas e reflexões em torno da recorrência do Gnosticismo no Cinema e Audiovisual partiu da paradoxal confluência entre misticismo e novas tecnologias: a Tecnognose. Ao contrário do gnosticismo no cinema onde a gnose é apresentada como a alma que cresce e se refina a partir do corpo, na Tecnognose a matéria é um golem disforme que precisa da ordem do espírito para ganhar vida. As consequências são o totalitarismo e o solipsismo.

A secreta aliança entre misticismo e ciência floresce no século XX com o ressurgimento do mito cabalístico do Golem nos meios científicos e acadêmicos com a construção da moderna utopia tecnológica: a rota tecnologicamente traçada por uma benevolente elite que permita a superação das ruínas de um mundo material caótico e imperfeito e resgate o anthopos presente na humanidade, o retorno à pureza adâmica aprisionada pela mortalidade.

Cabala e o mito do Golem

O Golem floresceu na mitologia judaica durante a Idade Média e Renascimento, mas tem seus fundamentos no segundo e terceiro séculos quando o gnosticismo criou o mito do perfeito anthropos que caiu na imperfeição. Este mito do declínio é descrito em uma narrativa básica: emanação, erro e aprisionamento. Nos evangelhos cópticos o anthropos é a primeira manifestação do deus verdadeiro e superior ao Demiurgo. Dentro dele, está contido todo o universo, partículas de luz para, através delas, redimir esse mundo material e imperfeito. Porém, ele é ostensivamente derrotado pelas forças do Demiurgo e mantido aprisionado nos círculos materiais. Depois desse aparente declínio, o anthropos ouve o chamado do Deus da Luz, retornando. Mas parte da sua alma é deixada para trás, aprisionada. Partículas de luz dessa porção prisioneira criam o cosmos material tal como conhecemos. A cada momento, pessoas ouvem o chamado da luz, liberando partículas aprisionadas. Quando todos tiverem apreendido este chamado, o Anthropos (o Homem Primal) estará totalmente preenchido e a matéria aniquilada.

Mas como retornar para o imaterial Anthropos se habitamos este cosmos físico? Os Gnósticos responderam que a maneira de buscar esse perfeito Adão seria através do ascetismo ou a morte. Mas há outro caminho, em um sentido inverso: descer ao mundo da matéria. Cabalistas medievais desenvolveram esse método, a saber, o da redenção por meio de intensas experiências com a matéria, nos seus mais tenebrosos reinos. Se antes das ruínas havia perfeição, cabe ao cabalista revolver a matéria para organizar os fragmentos que se conectam com o todo perdido. Teogonia harmonizando-se com a Cosmogonia.

Esta saída produz o Golem (“não-formado”), o retorno a um estado da matéria disforme e imperfeito, antes de Deus dar forma e perfeição. O Talmud afirma que Adão, antes de receber alma e linguagem, era um Golem. Deus ordena a matéria por meio de códigos, construindo um mundo formado a partir de letras. É a base da teourgia da Cabala. A única coisa que nos separa de Deus é o pecado. Se a criação divina é feita a partir de códigos, um ser sem pecados pode fazer o mesmo. Uma pessoa que pratica esta mágica divina não viola o sagrado, mas realiza o potencial do espírito. As antigas discussões sobre o Golem nos séculos XII e XIII giram em torno desta questão primária: pode um mago criar um ser igual ou superior ao humano? É possível trazer de volta Anthropos? Para os proponentes medievais da “cabala extática” a criação do Golem seria a culminação de uma experiência mística, um símbolo de união com Deus: a criação da vida a partir da recitação de letras sagradas.

O Atalho para a Gnose

Se no século XX a Física e a Cosmologia descrevem um cenários de caos e improbabilidade (Deus parece que joga dados com o universo através da formulação da Teoria do Caos de N. Bohr e o Princípio da Incerteza de Heisenberg), a partir dessa confirmação da secreta crença gnóstica da primária imperfeição do cosmos, a mística cabalística vai introduzir-se na Ciência para dar forma a uma nova biologia constituída a partir de uma peculiar relação entre a biologia e a ciência computacional.

A Teoria da Informação e o modelo do código binário computacional vão oferecer um modelo para a concepção do DNA na década de 1950. A vida passa a ser vista como uma espécie de biocomputador. O DNA é uma forma de processamento de dados, assim como o computador, podendo esse instrumento de processamento, portanto, ser encarado como uma forma de vida emergente. Alguns já admitem que estejamos perto do momento da criação de novos chips para computadores constituídos de DNA-RNA.

Robert Jawstron, da NASA, foi um dos primeiros a propor o advento da “inteligência descorporificada”. Ele antevê o dia em que nos tornaremos uma “raça de imortais” baseados em uma mente computadorizada.


“Um dia um cientista será capaz de retirar o conteúdo da sua mente e
transferi-lo para a memória do computador. Porque a mente é a essência do ser, podemos dizer que tal cientista entrou no computador e passou a habitá-lo. No mínimo podemos afirmar que a partir do momento que o cérebro humano habita um computador ele está liberado da fraqueza da carne mortal ... Ele está no controle do seu próprio destino. A máquina é seu corpo, ele é a mente da máquina
... Esta parece ser para mim a forma mais inteligente e madura de vida no universo. Habitar placas de silício e não mais limitado pela duração da vida no interior do ciclo mortal de um organismo biológico. Tal espécie de ser viverá para sempre.” (Robert Jastrow, The Enchanted Loom: Mind in the Universe, New York, Simon and Schuster, 1984, pp. 166-67

Golem, a matéria disforme e entrópica, modelado pelos códigos binários sagrados. Se o DNA comprova a codificação divina da matéria através de letras, a informação será a sintaxe que afastará o ruído e a entropia do organismo que habita um cosmos falho.

Criador da realidade virtual, Jaron Lernier acredita que tal motivação mística torna-se o principal atrativo do ciberespaço. Para ele, muitos hackers têm a esperança de um dia viverem para sempre após um upload final para o interior de um computador. Lerneir caracteriza essa fantasia como o início de uma “cultura de zumbis” dominado por ex-humanos que “estão preparados para deixar tudo para trás imaginando viverem em um disco rígido, interagindo unicamente com outras mentes e demais elementos de um ambiente que existe somente em um software” Portanto, a essência do ser, a mente (ou a partícula de luz que nos liga à nossa casa originária, a Pleroma), pode ser digitalizada como informação.

Este é o atalho para a gnose: a tecnologia como a via mais rápida para a realização do projeto de redimir a humanidade exilada e aprisionada nos círculos materiais.

Esta antiga busca gnóstica em transcender a carne é o emocional subtexto por trás da eufórica reação a cada novidade em informática no mercado e a cada website ou blog com frivolidades que é lançado. Lernier chega a sugerir uma nova categoria psicológica de usuários: a “nerdice”: intelectualmente busca digitalizar qualquer distinção de qualidade, sentimento e afeto. Emocionalmente, procura abrigo que o proteja da intimidade humana e das demandas corporais.
Alegremente, o sujeito se despoja do corpo para viver uma fantasia de poder sem limites.

Erick Felinto vai nomear este sujeito das ciberutopias como “sujeito pneumático”, uma forma de subjetividade que se pretende libertar dos limites do corpo, um self quase divino e de natureza espiritual (pneuma). Este sujeito pneumático teria as seguintes características: a comunicação total (como anjos incorpóreos vagando pelo ciberespaço sem barreiras para comunicar-se), por meio da “hipermediação que equivale à imediação das mídias digitais” e a mobilidade total:


“Imerso em um mundo sem fronteiras, sem limites, o ciberanjo desfruta da mais absoluta liberdade de movimentos. Como subjetividade pneumática, pode deslocar-se ou estender-se à vontade; pode até mesmo almejar a ubiqüidade. Na verdade, não se trata apenas de mobilidade, senão da possibilidade de modelar o “espaço” circundante.” (FELINTO, Erick, “A Tecnoreligião e o sujeito pneumático no imaginário da cibercultura”, In: Revista Alceu v.6 - n.12 - p. 115 a 125 - jan./jun. 2006, p. 120)

Como Felinto observa, a aparente variedade identitária na Internet e a multiplicidade de “eus” nas redes esconde um enfraquecimento ou fragmentação da subjetividade. Como conclui: “Numa perspectiva bastante sombria, o sujeito coletivo das redes seria assim um eu absoluto, que deseja constituir-se em oposição mesmo às expressões da alteridade. Esse sujeito muitas vezes limita-se a ratificar o mesmo, no sentido em que, como conclui um estudo de etnografia da internet citado por Rüdiger, “os internautas, em sua maioria, não conseguem abrir-se ao outro”

O indivíduo na rede torna-se um nódulo que apenas ratifica o que lhe é externo. Como afirma Christopher Lasch, a aparência narcísica de um ego grandioso (pneumático, espiritual) encobre um esvaziamento da própria subjetividade que, sitiado, adapta-se e reproduz mimeticamente o entorno para sobreviver. É o sujeito fractal, como um fragmento que reproduz dentro de si, infinitamente, o padrão do todo (Veja o livro de Lasch O Mínimo Eu).

Se as fronteiras entre o Eu e ou Outro desaparecem, primeiro pela imediação das redes (o tempo real criar sensação de que o mapa é o território), segundo, pela permeabilidade do ego e, terceiro, por uma subjetividade que pretende libertar-se dos limites do corpo, entra em crise a percepção da alteridade.


Gnosticismo Alquímico versus Gnosticismo Cabalístico

Enquanto o gnosticismo cabalístico, através da tecnologia e da linguagem, vê a matéria como prisão, confinamento e limitação dos potenciais do espírito, o gnosticismo alquímico procura o espírito por trás da matéria, a vida que emerge da morte, a ordem que surge do caos, a alma que cresce a partir do corpo. Em síntese, o gnosticismo alquímico busca a transmutação e não a transcodificação cabalística. Enquanto na tendência cabalística a matéria é um golem disforme e sem vida que precisa da ordem do espírito para ganhar vida (tecnologia e o código binário da informação), a tendência alquímica encoraja a metamorfose e a redenção do espírito através da existência material. A primeira é digital e abstrata; a segunda é analógica e sensual.

Se o gnosticismo cabalístico procura através do atalho da tecnologia e da linguagem o caminho mais rápido para o espírito abandonar a matéria, o viés alquímico procura a Grande Negação, o tertium quid, a terceira alternativa entre a ilusão e a realidade. Se a verdade sobre Deus está além do conhecimento humano, a negação do conhecimento é o sagrado caminho. O homem acolhe os objetos do saber e as palavras como fossem veículos do conhecimento na esperança de que possam revelar a verdade das coisas.

Em um mundo de ilusões o conhecimento dele só poderá ser também ilusão. Nem a ilusão (criada por um cosmo imperfeito) e nem a realidade (Conhecimento, Ciência e Linguagem), mas o sagrado, a experiência que conduza o indivíduo para além dessas oposições.

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sábado, fevereiro 20, 2010

Em busca da Negativade do Sagrado

Devemos buscar na experiência fílmica os momentos onde a narrativa não retorna à ordem, onde os conflitos não são conciliados, onde as sequências finais do filme não se integrem a uma totalidade (retorno à ordem), mas deixe ao espectador o vazio cognitivo, a ambigüidade.


Para esse blog o conceito de sagrado deve ser buscado a partir do referencial de uma Teologia Negativa. Por que?

Assistimos neste início de século a uma onda de filmes documentários ou ficcionais que falam em nome de uma experiência sagrada, jornada espirituais de auto-conhecimento etc. que ou vão de encontro ao universo da auto-ajuda e do espiritualismo new age ou, mais filosoficamente elaborados, falam de uma unificação entre Ciência e Religião e a unificação de todos os dualismos presentes nos discursos religiosos ou científicos.

O problema é que tanto essa concepção do sagrado associado ao espiritualismo como o discurso da crítica aos dualismos da Ciência e Religião partem de uma mesma matriz teológica: a Teologia Positiva. Ao contrário da Metafísica, a Teologia, como sabemos, acredita na realidade transcendente como já existente. E este transmundo sagrado ou divino só pode ser uma totalidade, que antecede a existência individual. Enquanto esta possui uma existência descontínua marcada pela morte, aquela é eterna, e, por isso, verdadeira.

Diferente disso, a metafísica traria potenciais elementos negativos para a formação de uma Teologia negativa. Vejamos essa distinção entre Metafísica e Teologia feita por Eduardo Losso a partir de um texto de Adorno:
“A diferença entre a metafísica e a religião consiste no fato de aquela não se dirigir a um deus pessoal ou a um elemento transcendente existente. Não é uma ciência, antes, procura pensar algo “atrás do mundo”, ou um outro mundo oculto, acentuando a diferença entre essência e aparência. Se a religião possui uma essência divina e absoluta, a metafísica pensa no problema da relação entre esse sentido anterior , dessa essencialidade com o mundo da aparência. (...) A metafísica não postula a divindade e não dá a ela uma forma determinada como os teólogos.(...) Adorno não disfarça uma defesa da metafísica, precisamente nesse aspecto, ao afirmar que ela possui a qualidade de não se contentar com o que é, nem dizer que o que não é existe. Se religiosos precisam da segurança de afirmar a existência do não-existente, o metafísico, bem mais realista e idealista, recusando por isso mesmo ilusões, deseja o não-existente sem afirmá-lo.” (LOSSO, Eduardo Guerreiro B. Teologia Negativa e Adorno – A secularização da mística na arte moderna. Tese Doutorado Faculdade de Letras da UFRJ, 2007, p.112-3)


“Desejar o não-existente sem afirmá-lo” é, talvez, a essência da Teologia Negativa que se contrapõe à positividade tanto da teologia quanto do sagrado.
A Positividade tanto da ciência como da religião partem de uma ordem supra (a totalidade divina ou natural) já existente, cabendo à ciência (por meio do método) reconstituí-la ou a religião (por meio da fé) possibilitar a experiência do sagrado. Nesse sentido, o Sagrado passa a significar uma experiência mística ou de fé que se apodera do indivíduo, fazendo-o vislumbrar sua conexão com o Todo ou a Verdade.

Ao contrário, ao “desejar o não-existente sem afirmá-lo”, temos uma reversão tanto da metafísica quanto da teologia, a negação da totalidade diante da experiência concreta do indivíduo. A experiência negativa do sagrado passa a ser não a anulação do indivíduo ao conectar-se com um Todo (“somos todos um”, slogan totalitário da espiritualidade New Age), mas, diferente disso, somente pode ser a experiência dolorosa de ruptura com uma totalidade falsa e inautêntica. Enquanto a religião transmite uma suposta segurança de que estamos amparados por uma totalidade que nos consola, a negatividade sagrada eleva ao nível do conceito o mal estar e a dor do indivíduo integrado forçosamente a totalidades ou sistemas (social, político, religioso, metafísico etc.).

Buscar a negatividade da experiência do Sagrado é buscar esses momentos onde o indivíduo eleva o mal-estar no mundo ao nível do conceito (gnose?). Vanish points, momentos em que pressentimos a inexistência dessa totalidade simultaneamente autoritária e confortadora. Esses momentos são aqueles de ruptura e transformação originados em estados alterados de consciência: suspensão, paranóia ou melancolia. Enquanto a consciência moral positiva, a religião ou simplesmente o bom senso qualificam a dor individual como limitações de potenciais, erros, pecados, fraquezas, é precisamente aí, no aparente niilismo, na negação de todo e qualquer sentido totalizante que reside a verdadeira experiência transcendente. Lá onde tudo parece indicar precariedade, insuficiência está a verdadeira transcendência onde o espírito anseia elevar sua existência física a uma supra-realidade ainda não existente.

A experiência do sagrado, nesse sentido, é muito mais o desejo individual por transcendência do que a transcendência já existente, elevação para uma dimensão já pré-existente ao indivíduo. Assim como a Teologia negativa afirma a existência de Deus pela sua negação (“Se Deus está ausente é porque é necessário que exista; se ele não existisse não poderia estar ausente”), a negatividade do sagrado nega uma transcendência já existente em nome do desejo por uma supra-existência que ainda não existe.

O discurso do sagrado que invade a produção audiovisual e cinematográfica atual confunde imanência com transcendência. Produções como “Somos Todos Um”, “Quem Somos Nós” vendem uma suposta transcendência ao falar de busca de um propósito, sentido para a vida, conexão com um todo, consciência cósmica. Essa abstração somente pode ser a das totalidades bem conhecidas (mercado, sociedade, corporação etc.) às quais o indivíduo deve se integrar forçosamente, superando seus “medos” e “limitações”. É aí que reside o aspecto crítico da negatividade do sagrado: o desejo por transcendência só pode significar a ruptura com essas totalidades.

Por isso devemos buscar na experiência fílmica os momentos onde a narrativa não retorna à ordem, onde os conflitos não são conciliados, onde as sequências finais do filme não se integrem a uma totalidade (retorno à ordem), mas deixe ao espectador o vazio cognitivo, a ambigüidade. Onde a experiência de retorno à realidade após serem acesas as luzes da sala de exibição não seja de reconfortadora harmonia após ver protagonistas que abandonaram o desejável pelo possível, justificando a resignação individual em relação à vida. Momentos onde o mal-estar individual em relação ao mundo seja elevado ao conceito e se expresse por meio das alterações de consciência (suspensão, paranóia e melancolia) que vislumbre a possibilidade de uma existência inteiramente outra, o desejo pela transcendência.

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terça-feira, fevereiro 16, 2010

Perfume: o assassinato do indivíduo pelo Sagrado

Perfume: a História de um Assassino (Das Parfum, 2006) supera as dificuldades de adaptação do livro à linguagem cinematográfica e faz uma fábula da condição do indivíduo diante de uma suposta experiência do Sagrado que liquida o individual em nome de um Absoluto.

“Perfume: a história de um assassino” é um filme baseado no livro Perfume de Patrick Süskind de 1985. Vendeu mais de 15 milhões de cópias e foi traduzido para quarenta línguas. Süskind acreditava que somente dois diretores de cinema poderiam fazer justiça a seu filme: Stanley Kubrick e Milos Forman. Mas o livro foi considerado inadaptável para a linguagem cinematográfica. No depoimento do roteirista do filme Bernd Eichinger: “o protagonista da estória não se expressa. Um escritor pode usar a narrativa para compensar isso; mas não é possível em um filme. O espectador só pode ter algum sentimento por um personagem se ele fala.”

Isso porque o protagonista (Jean-Baptiste Grenouille) é a própria encarnação do Absoluto no sentido metafísico.

Jean-Baptiste nasceu com um poder espacial: o sentido do olfato apuradíssimo, capaz de distinguir flagrâncias as mais refinadas e etérias em meio ao caos de percepções do cotidiano. Ele tinha um olfato extremamente desenvolvido, o que lhe permitia reconhecer os odores mais imperceptíveis. Conseguia cheirá–los por mais longe que estivessem e armazenava–os todos em sua memória, também excepcional para relembrar aromas. Nascido em um fétido mercado de peixes de Paris e jogado pela mãe, ainda recém-nascido, no meio de vísceras e escamas apodrecidas, o poder do protagonista é dotado de um simbolismo: a necessidade da transcendência do humano em meio ao caos disforme da matéria bruta.

Embora o filme tenha a alquimia como o pano de fundo dos processos de destilação para as descobertas das essências dos perfumes, não parece ser esse o tema do filme. A Alquimia busca não apenas transcender a matéria, mas redimi-la. Buscar no material a quintessência que refina o espírito. Ao contrário, a ambição de Jean-Baptiste é buscar preservar a flagrância para além da destilação. Aprender a preservar a flagrância para nunca mais perder tal sublime beleza. Ganancioso, seu objetivo era o de possuir tudo o que o mundo lhe pudesse oferecer no que diz respeito a odores.

Para ele, não importava os indivíduos, reduzidos a meros recipientes de algo mais refinado: a flagrância. De pesquisador torna-se um assassino em série, obcecado pela busca da flagrância que seria a síntese sublime e espiritual de todos os odores das mais belas mulheres do mundo. Ao contrário da Alquimia, sua experiência de Sagrado advém de uma Teologia Positiva. Jean-Baptiste está mais próximo da Ciência moderna e do racionalismo do que do misticismo alquímico. O assassinato ritual das vítimas corresponde à liquidação do indivíduo ou da parte pela Totalidade no racionalismo. O sacrifício de meros espécimes para se confirmar a Verdade que está no Todo. Em síntese: Jean-Baptiste Grenouille é o arauto dos novos tempos que estão por vir, os tempos atuais do racionalismo científico onde o indivíduo é esvaziado de sentido para se encaixar dentro de uma ordem totalitária.

A morte do perfumeiro Baldinni (Dustin Hoffman) é simbólica no filme: representa o fim de uma era em que os processos alquímicos implicavam em humildade e ética, para serem superados pela fúria faustiana de Jean-Baptiste onde os fins justificam os meios.

A sequência final da execução de Jean-Baptiste é emblemática. Caminhando para o cadafalso, secretamente trazia em seu bolso o frasco com o perfume resultante da busca da sua vida: a quintessência do odor dos corpos de todas as belas mulheres. Através de um lenço, espalha a flagrância por toda a praça onde se concentrava a multidão sedenta por assistir o espetáculo da execução do assassino. Inebriados pela flagrância sagrada, todos vêem Jean-Baptiste como um anjo, clamam pela sua inocência e a praça inteira converte-se numa imensa orgia. Os planos gerais que mostram centenas de corpos nus participando da frenética orgia são simbólicos: os corpos individuais se anulam dentro de um imenso conjunto de corpos comandado pelo perfume, síntese resultante de uma série de assassinatos.

Essa opressão da parte pelo todo lembra a irônica pergunta de Baudrillard: em meio a uma orgia um homem pergunta para uma mulher “O que você vai fazer depois da orgia?”

Essa experiência de um certo tipo de Sagrado (uma concepção de Sagrado proveniente de uma Teologia Positiva como a experiência da conexão de uma parte a um Todo, negando toda e qualquer experiência individual como caminho para transcendência) poderia trazer um poder infinito para Jean-Baptiste: todos os reinos e países cairiam de joelhos diante dele, confundindo-o com um enviado de Deus e a experiência de sua flagrância como a verdadeira experiência do Sagrado.

Mas ele descobre que jamais será amado por isso. Submetido a vida inteira a uma auto-anulação, confinado a uma existência suprimida, miserável, onde seus desejos individuais nada representavam diante da ambição sagrada pela utopia dos odores, ao final manda tudo para o inferno. Retorna ao local onde nasceu (o mercado de peixes) e lá se deixa ser destroçado pela massa de mendigos: joga todo o recipiente do sagrado perfume sobre si, atraindo a fúria do extase de todos ao redor. Todos se jogam sobre ele, tentando arrancar a todo custo um pouco da flagrância sagrada. Final simbólico: diante do vazio da abstração dessa experiência sagrada (não há amor ou concreticidade, apenas a anonimata Totalidade) a metafísica entra em queda – o Todo é absorvido pelas partes, a entidade abstrata é destruída pela concreção. E nada mais simbólico do que tudo esse desfecho acontecer num fétido mercado de peixes: a vingança do físico, do vital contra uma totalidade abstrata.

O verdadeiro tema do filme não é a utopia dos odores ou a dimensão sagrada por trás da sensibilidade olfativa. Apesar de Jean-Baptiste ser movido por um talento instintivo e selvagem, a ambição fáustica pelo poder faz ele entrar no lado escuro do movimento da razão e do conceito: quanto mais tenta apreender o objeto mais o destrói. De Marquês de Sade a Adorno e Horkheimer essa é a Dialética do Esclarecimento: o movimento cada vez mais abstrato do conceito conduz à frieza progressiva do sujeito que vê nos objetos simples espécimes que devem comprovar uma verdade universal. A liquidação do objeto é o sacrifício necessário dentro desse ritual da adoração de uma entidade sagrada secularizada em conhecimento abstrato.

Esse é o verdadeiro tema do filme “Perfume”: no século XVIII Jean-Baptiste é o arauto dos novos tempos – a dialética do esclarecimento presentes tanto na religião como na ciência.

Ficha Técnica:

  • Direção: Tom Tykwer.
  • Roteiro: Andrew Birkin, Tom Tykwer, Bernd Eichinger.
  • Produção: Bernd Eichinger.
  • Edição: Alexander Berner.
  • Música: Johnny Klimek, Reinhold Heil e Tom Tykwer.
  • Elenco: Alan Rickman (Antoine Richis), Ben Whishaw (Jean-Baptiste Grenouille), Dustin Hoffman (Giuseppe Baldini), John Hurt (Narrador), Karoline Herfurth, Michael Smiley (Porter), Perry Millward (Marcel), Rachel Hurd-Wood (Laura Richis), Ramón Pujol (Lucien).
  • Distribuidora: Paris Filmes
  • Ano: 2006
  • País: Alemanha, França, Espanha, EUA.

Trailer do filme Perfume: a História de um Assassino

sábado, fevereiro 13, 2010

Fonte da Vida surpreende ao utilizar uma simbologia Gnóstica e Alquímica

Fonte da Vida (The Fountain, 2006) surpreende ao apresentar a jornada de elevação espiritual com simbolismos do Gnosticismo Hermético e Alquimia, diferenciando-se dos clichês dos filmes de espiritualismo New Age e de auto-ajuda.

***
Não conhecia esse filme. Zapeando a TV de madrugada, minha esposa descobriu o filme “A Fonte da Vida” em um desses “corujões”. Sabendo das minhas pesquisas em torno de cinema e religião, ela falou: “eu acho que esse filme é gnóstico!”. Confesso que assisti ao filme com um pé atrás: achava que um filme com esse título só poderia ser mais um filme New Age sobre espiritualismo, autoconhecimento, auto-ajuda... Mas acabei sendo surpreendido. Darren Aronofsky, diretor e autor da estória, trabalha com profundos simbolismos gnósticos e alquímicos, tornando um filme diferenciado em relação à onda atual de filmes “espiritualistas”.

O filme se inicia com uma citação da bíblia, uma epígrafe relativa à árvore do conhecimento e à árvore da vida.

O enredo se desenvolve em três épocas, sem definição nítida de limites entre realidade e ficção. Na Espanha do século XVI, o conquistador Tomas Creo parte para o Novo Mundo em busca da lendária árvore da vida que salvará a a rainha Isabel da fúria do Inquisidor da Igreja que vê heresia nessa busca.

Nos tempos atuais a mulher do pesquisador Tommy Creo (Izzy) está morrendo de câncer, mas ele procura desesperadamente a cura. Sua esposa, fascinada pela civilização maia, está escrevendo um manuscrito que conta a história de Tomas Creo e da Rainha Isabel.

Uma terceira história une as duas primeiras: no século XXVI, o astronauta Tom finalmente consegue a resposta para as questões fundamentais da existência.
O astronauta realiza durante sua jornada diversas posturas de meditação associadas às práticas de Yoga e pratica Tai Chi Chuan.


Toda a jornada espiritual do protagonista é estimulada é dirigida pela rainha Isabel e pela esposa Izzy de uma forma paradoxal. Se no século XVI a rainha da Espanha comete heresia contra a Igreja ao enviar seu “conquistador” para a América Central para buscar a mítica árvore da fonte da vida para alcançar a imortalidade (para o Inquisidor devemos morrer para nos libertarmos dos grilhões do corpo), nos tempos atuais, ao contrário, Izzy tenta convencer se marido Tommy de que a fonte da vida é a morte, que devemos aceitá-la em paz para conseguirmos a ascensão espiritual. Inconformado, e usando todos os recursos da Ciência, Tommy acredita que a morte é uma doença, precisa ser “curada”.

Esse paradoxo está relacionado com um profundo simbolismo que o filme trabalha: o “casamento alquímico”. Tanto a Rainha Isabel como Izzy revelam a Tomas/Tommy que no final (ao encontrar a árvore da vida ou após a morte) se unirão em um casamento eterno.

Matéria e espírito, indivíduo e totalidade não são colocados no filme como opostos ou em um nível hierárquico. No final, ambos se casam, a matéria é redimida e não simplesmente liquidada. O processo de evolução espiritual não é um simples processo de descarte do corpo em busca da Totalidade, mas de elevação no corpo, a partir de todas as suas experiências sensoriais.



Casamento Alquímico


O que é o simbolismo do “casamento alquímico”? Alquimistas medievais e renascentistas basearam suas idéias na tradição gnóstica, porém com uma diferença: enquanto os antigos gnósticos queriam transcender a matéria os alquimistas queriam redimi-la. O processo alquímico clássico envolve a dissolução de elementos até o caos para, por meio desse estado, separar massas indiferenciadas em espírito e matéria, unindo essas oposições em uma espécie de casamento alquímico – do qual surge a pedra filosofal. Essa atividade alquímica reencenaria a atividade de Deus que separou o caos em elementos distintos para, mais tarde, reunificar essas antinomias na Revelação. Estes aspectos simbolizariam o processo através do qual o adepto consegue refinar a sua alma.

Temos aqui os passos para a transformação psicológica por meio da narrativa mítica da transformação por meio de uma jornada cíclica: Plenitude gnóstica, Queda e Retorno; Matéria Primal, a Divisão e o Casamento. Não há transcendência sem a redenção da matéria.

Magistralmente, “Fonte da Vida” desenvolve esses aspectos. E, mais do que isso, o filme trabalha o profundo significado do personagem gnóstico de Sophia. Contraponde-se ao conhecimento da Religião e da Ciência (que estruturam o cosmos material que aprisiona o protagonista) Sophia/Rainha Isabel/Izzy oferece um outro conhecimento: a gnose. O protagonista aprenderá que a matéria/corpo não deve ser negada ou descartada (como quer a Religião – corpo como grilhão – ou como quer a Ciência – corpo que necessita de uma cura para escapar da morte). A verdadeira elevação espiritual está no aprendizado com o corpo e a matéria, tanto no caos, prazer e morte. A elevação através de experiências que somente a existencial material pode proporcionar.

Dessa forma “Fonte da Vida” demonstra ser um filme surpreendente. Embora trabalhe com muitos elementos iconográficos clichês dos filmes que pretendem ser espiritualistas (nebulosas, pessoas em posição de lótus, elementos flutuando, cabeças raspadas, trajes de monges e posturas de Tai-Chi-Chuan), o fnilme vai muito além da dualidade corpo/matéria, indivíduo/cosmos, parte/todo. Aliás, coerente com o ponto de vista gnóstico, o moneto final do casamento alquímico, as núpcias, é representado no filme como não sendo nesse cosmos ou universo conhecido. Vai além da Totalidade da Religião e da Ciência, para além do nosso cosmos que aprisiona o protagonista.



O Princípio da Correspondência


O filme apresenta um curioso recurso fílmico que, claramente, constitui-se num simbolismo alquímico que, afinal, parece estruturar toda a narrativa. A câmera parte de um close em um detalhe para avançar e, depois, inverter e seguir em frente, mostrando que o primeiro detalhe, aparentemente correto, estava de ponta-cabeça.

A narrativa faz uma simbólica referência a um dos princípios do Gnosticismo Hermético de Hermes Trimegisto: “O que está em cima é como está embaixo, e o que está em baixo é como está em cima”. É o princípio da Correspondência aplicado tanto na Astronomia na antiguidade como na Alquimia. Na verdade, um princípio hermético influenciado pela metafísica platônica (para Platão, o mundo percebido pelos sentidos é uma reprodução distorcida das formas puras existentes no mundo das Idéias).

Hermes Trimesgisto, “sábio três vezes”, foi quem primeiro transmitiu o conhecimento divino e celeste por escrito: Filosofia, Química e Cabala. Alguns afirmam que ele teria sido faraó egípcio. Outros que ele teria escrito seus ensinamentos em hebraico, o que faz com que se suponha que fosse hebreu.

Viveu durante a época de Moisés, e sendo faraó, foi iniciado nos mistérios do sacerdócio, preparado para exercer as funções de rei. Também Hermes é associado à Thot, deus egípcio que era representado por um íbis. Thot simbolizava a escrita, o dom da fala e tinha também o dom de vivificar, pois teria curado o olho do deus Horus.

Ficha Técnica

  • titulo original: (The Fountain)
  • lançamento: 2006 (EUA)
  • direção: Darren Aronofsky
  • Roteiro: Darren Aronofsky e Ari Handel
  • Atores: Hugh Jackman , Rachel Weisz , Marcello Bezina , Alexander Bisping , Ellen Burstyn
  • titulo original: (The Fountain)
  • duração: 96 min
  • Estúdio:Warner Bros. Pictures / Protozoa Pictures / New Regency Pictures / Epsilon Motion Pictures
  • Distribuidora:Warner Bros. / Fox Film do Brasil

    Trailer do filme Fonte da Vida

quinta-feira, fevereiro 11, 2010

Grupo de Pesquisas sobre Cinema e Audiovisual realiza seu primeiro encontro



O Grupo de Pesquisas sobre Religião e Sagrado no Cinema e Audiovisual, da Universidade Anhembi Morumbi, realizou seu primeiro encontro que definiu as linhas de pesquisa, a sistemática de trabalhos e forma de publicação dos resultados das pesquisas




Realizou-se no dia 06/02 a primeira reunião do Grupo de Pesquisas formado na Universidade Anhembi Morumbi sobre “Religião e o Sagrado no Cinema e Audiovisual”. Contou com a participação do Prof. Dr. Luiz Vadico do Programa de Mestrado da Universidade (expondo seu tema sobre o desenvolvimento dos filmes sobre Cristo e o desenvolvimento do conceito de “filme religioso”, da Profa. Ilca Moya da UAM (apresentando sua proposta de estudos sobre as relações entre o Sagrado e o Sexo a partir das idéias de Bataille),da mestranda da UAM Karyna Berenger (expondo sua proposta de aprofundar as relações da religião e do sagrado na obra cinematográfica de Andrei Tarkovsk), do aluno do curso de Rádio e TV da UAM Clever Cardoso Teixeira de Oliveira (que expôs a sua proposta sobre uma ontologia do cinema a partir de Gilles Deleuze e, também, uma discussão teológica a partir de Santo Agostinho e a relação com o cinema de Win Wenders – principalmente “Asas do Desejo”), Marcos Aleksander Brandão (apresentando sua proposta a partir da sua dissertação defendida no mestrado da UAM – “Transtextualidade Remixada em Moulin Rouge” – com a discussão da aceleração das imagens no cinema e o sagrado e o profano, e Wilson Roberto V. Ferreira (expondo as pesquisas em torno do tema Gnosticismo e Cinema e suas relações com a Teologia Negativa em T. Adorno).

Até o final do ano, o grupo de pesquisa pretende reunir o resultado das pesquisas individuais dos componentes em uma coletânea a ser publicada.

Como proposta de sistemática de trabalho, a cada encontro mensal ocorrerá a apresentação de dois seminários com os participantes do Grupo. Para o próximo encontro, dia 06/03, Clever de Oliveira e Wilson Ferreira farão as primeiras exposições e discussões dentro do programa de seminários.

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domingo, fevereiro 07, 2010

O Gnosticismo pop em Philip K. Dick

Reproduzimos nesse espaço o texto da postagem de Larissa Douglass, professora e escritora da Universidade de Oxford, publicado no site de estudos e pesquisa inglês "Intute”. O texto desenvolve as conexões entre o escritor de ficção-científica Philip K. Dick com o gnosticismo e o cinema. Esse texto é de 2006, quando foi lançado o filme A Scanner Darkly (no Brasil, O Homem Duplo). Podemos localizar na obra de K. Dick a recorrência de muitos temas gnósticos: o absurdo (malícia, crueldade, perversidade) do mundo; o desejo de fugir (através do amor, da morte, etc.) da infernal permanência terrestre; a sensação de ser um estranho entre semelhantes; a viscosa presença do mal; a redenção pelo pecado; o tempo como o resultado de um cosmos defeituoso que confina o espírito, etc.

Philip K. Dick e Gonosticismo
Por Larissa Douglass, Oxford University


A Scanner Darkly, recente filme baseado na sombria visão de futuro de Philip K. Dick, aborda a discrepância entre a experiênciasubjetiva ou pessoal e a experiência objetiva. Esta última forma de experiência seria fornecida por meio de câmeras que observam processos.
Essa discrepância é uma característica de uma série de histórias e romances de Philip K. Dick, jogando com a noção de que os meios que utilizamos para aprimorar a compreensão da realidade também podem minar e obscurecê-la. Essa confusa realidade subjetiva é, então, associada a um exterior, uma perspectiva objetiva (por meio de scanners: um espelho, uma câmera ou outro meio de vigilância ou dispositivo de gravação) que relaciona-se com a “verdadeira” realidade. O choque resultante aguarda o espectador quando é revelada a discrepância existente entre a narrativa do protagonista e a que aparentemente é a real. O uso de câmeras como um “terceiro olho” tem sido cada vez mais empregado em filmes recentes para revelar uma desconexão entre a percepção dramática dos personagens e acontecimentos reais. Em última análise, que a perspectiva objetiva deve ser colocada em dúvida.


Philip K. Dick, autor

Embora a narrativa subjetiva de Scanner Darkly e em outro romance, The Three Stigmata of Palmer Eldricht, tenha origem no vício por drogas, em outras histórias Dick oferece cifras alternadas num jogo simultâneo de expansão e distorção da percepção. Quando apressentadas em conflito com uma narrativa objetiva, força a consciência humana a níveis cada vez mais altos de vigília do espaço e tempo. Por exemplo, Dick utilizou:

• Robôs em Do Androids Dream of Eletric Sheep? (que deu origem ao filme Blade Runner) para comparar a relatividade humana sobre o “real” e “falsos” seres humanos;
• Colonização de outros planetas, isolamento e doença terminal na história “Chains of Air, Web of Aether”;
• Precognição confundida com autismo ou esquizofrenia em “Martian Time-Slip e a história “A World of Talent”;
• Sono criogênico de humanos em máquinas sencientes e espaçonaves em “Divine Invasion” e na estória “I Hope I Shall Arrive Soon”.

Gnosticismo
Não importa o expediente utilizado, essas estórias, especialmente a última de Philip K. Dick, “Valis”, inspiram-se em no moderno renascimento da antiga heresia cristã do Gnosticismo. Ela pode ser definida mais simplesmente pela Catholic Encyclopedia como “a doutrina da salvação através do conhecimento”. A única verdadeira religião gnóstica que sobreviveu diretamente da Antiguidade tardia é a seita Mandean no Iraque (ou madianitas Mandaeism). Mais ligações tênues são rastreadas na Idade Média, Renascimento e na história do Iluminismo. Um sentido de continuidade histórica foi reforçada pela descoberta arqueológica do século em torno de 1945 de cerca de quatro textos gnósticos em Nag-Hammadi, no Egito.
Com esse pano de fundo, o moderno gnosticismo popular refere-se,a grosso modo, as idéias que incluem:

• Alienação espiritual no mundo material
• Um conhecimento especial, “gnosis”, que pode despertar os seres humanos do estado atual, a falta de consciência semelhante ao sono;
• Uma separação entre os aspectos divinos da existência espiritual e a realidade material, caracterizado por qualidades femininas e masculinas;
• E uma hierarquia de expansão do entendimento através desse conhecimento especial, que pode finalmente curar a cisão entre divindades masculinas e femininas.
Literatura Comparada e Lingüística

Da obra de Dick se originou um mix de novelas, pulp fiction, música popular, vídeo games, animação e filmes cujas referências baseiam-se em muitas idéias gnósticas. Os filmes mais conhecidos incluem a trilogia de Matrix, Dark City (Cidade das Sombras), Vanilla Sky e eXinsteZ e novelas que incluem O Código Da Vinci de Dan Brown. Autores como Umberto Eco e Jorge Luis Borges trouxeram este tema para as fronteiras da literatura comparada e lingüística.
Gnosticismo (Variantes modernas)

Tais exemplos contemporâneos têm raízes culturais no século XIX e no fin-de-siècle, com os aficionados mais notáveis como o psicólogo Carl Jung e o ocultista Aleister Crowley. Crowley se refere ao Gnosticismo, Alquimia, Maçonaria e Cabala para formar suas teorias ocultas, que por sua vez influenciaram L. Ron Hubbard, o fundador da Igreja da Cientologia. Mais provocativo, o cientista político Eric Voegelin, em sua obra “Science, Politics and Gnosticism” (1958), sugeriu que as ideologias do comunismo e do nazismo eram gnósticas, com efeito, heresias cristãs. O escritor Tobias Churton alegou que as idéias gnósticas foram sendo reveladas no campo da física quântica. E com focos sobre o "real" e o "artificial", e os do sexo masculino e feminino, o gnosticismo pode ter uma influência sobre as teorias pós-modernas e feministas. Assim, o gnosticismo demonstra ser uma gama sincrética de "espiritismo", Nova Era ",de teorias de conspiração e investigação séria. Tais idéias manifestando-se em tantos campos diferentes sugere que a era moderna tem testemunhado um ressurgimento dessa heresia na cultura ocidental e política.

quinta-feira, fevereiro 04, 2010

"Somos Todos Um": o totalitarismo por trás do humanismo New Age

Somos Todos Um (One: The Movie, 2005) sob a aparência humanista do Espiritualismo, New Age e Auto-Conhecimento perpetua a liquidação do indivíduo lá onde pretende acabar com todos os dualismos.
“Se o sentido da vida existisse não estaríamos formulando essa pergunta”(T. Adorno)
“Às 6:45 A.M. em 13 de Abril de 2002 um pai de meia idade de três filhos do centro-oeste dos Estados Unidos desperta de um sono profundo com uma estranha idéia de fazer um filme independente explorando a questão do sentido da vida”. Assim inicia o documentário “Somos Todos Um”. Com o apoio da esposa Diane e a e a participação de alguns amigos, Ward Powers organizou um questionário com "as maiores perguntas relativas à vida, a todo tipo de pessoas" (perguntas como “para onde vamos quando morremos?”, Por que estamos aqui? etc.) com o grandioso objetivo de demonstrar a "unicidade da humanidade".

O que começou como brincadeira logo ganhou força, com a participação de líderes religiosos, arquitetos sociais, místicos, monges, ateus, nobres e filósofos, representando uma gama completa de tradições espirituais, num amálgama de opiniões que se fundiam às do povo nas ruas. Todos receberam 20 perguntas sobre questões profundas como o sentido da vida, o conceito de Deus, o motivo do sofrimento e a justificativa da guerra.

A questão que inicia e sustenta todo o documentário (qual o sentido da vida) lembra a fala de Theodor Adorno: “Se o sentido da vida existisse não estaríamos formulando essa pergunta”. Essa resposta de Adorno no seu livro Dialética Negativa é mais do que uma afirmação irônica ou retórica. Há um sério pressuposto crítico nessa afirmação: a imanência desse discurso que pretende se perguntar sobre o sentido da existência. Isto é, essa pergunta não é “desinteressada” ou neutra, mas parte de uma ideologia historicamente determinada. A pergunta já contém em si a resposta que procura.

A questão sobre o sentido da vida parte do pressuposto de todos os discursos totalizantes e totalitários: quem formula a questão ignora o sentido da vida. Sua ignorância decorre do fato de o emissor ser um simples indivíduo, sendo que a verdade lhe escapa, pois está no TODO. Desgraçadamente pelo fato do indivíduo ser uma pequena parte, nunca apreenderá a verdade pois ela está além do particular, está na totalidade. Portanto, essa questão reproduz as velhas dualidades da Teologia, matriz tanto da Religião quando da Ciência: parte/todo, particular/universal, matéria/espírito e assim por diante.

Se a Verdade está no Todo (Absoluto, Espírito, Infinito etc.) o indivíduo só pode ser ignorante por não conseguir apreender as conexões em torno dele. O documentário “Somos Todos Um” bate exaustivamente nessa mesma tecla: a experiência individual é a fonte dos erros e conflitos (medo, egoísmo, materialismo) que impedem a paz mundial e a revelação da Unidade. O pressuposto teológico é que essa insuficiência individual decorre ou pela imersão do espírito na matéria (pecado) ou pela ignorância das conexões do todo, somente esclarecidas por um discurso “técnico” (espiritualista ou científico).

O desprezo pelo indivíduo e o potencial perigosamente totalitário pode ser percebido em frases do documentário como essa: “Qual o sentido da vida? Você começa a lembrar e começa a ver...as nebulosas do pensamento, moléculas e átomos nascendo...essa teia dourada da vida. É silencioso, é eterno, é cintilante. Você e eu não passamos de uma tapeçaria de sonhos.” 

Nessas afirmações parece haver o esforço de construir um novo paradigma de união entre Religião e Ciência que acabaria com todos os dualismos (afinal, o discurso utiliza termos científicos como “nebulosas”, “moléculas” e “átomos” ao lado de termos místicos como “eterno”, “cintilante”), mas o problema é falso. Ciência e Religião secretamente já estão unidas há muito tempo a partir da mesma matriz teológica que liquida a experiência individual como fonte de erro, insuficiência ou pecado.
O momento de verdade

Mas, parafraseando Adorno, em toda ideologia há um momento de verdade. Essa angústia pelo sentido da vida é real. Se a pergunta é formulada é porque a percepção de um sentido desapareceu ou nunca existiu. Tal angústia é um sintoma da dor e do sofrimento que essa totalidade (social, histórica ou espiritual) impõe ao indivíduo, e não o contrário – pelo anseio por uma transcendência à totalidade.

O mal-estar do indivíduo nesse mundo é desprezado por esse discurso espiritualista (na verdade uma teologia secularizada) como medos que limitam o potencial espiritual. É a mensagem de todos os vídeos de auto-ajuda ou espiritualistas: liberte-se de si mesmo e venha para o TODO. Dessa forma é descrito como se inicia uma jornada espiritual pelo padre Thomas Keating, líder do Movimento Interdenominacional para revitalizar a prática contemplativa cristã:
“O início da jornada espiritual é o reconhecimento...não apenas a informação, mas a real convicção interior..de que há uma força superior, ou Deus. Ou, para facilitar ao máximo para todos...de que há um Outro, com "O" maiúsculo. Segundo passo: tentar se tornar o Outro. Ainda com "O" maiúsculo. E finalmente, o reconhecimento de que não há Outro. Você e o Outro são um só. Sempre foram. Sempre serão.Você simplesmente acha que não é.”

À dor e sofrimento concretos nesse mundo, esse discurso oferece a racionalização e o desprezo pela percepção individual: você com sua dor não existem! Venha para o Todo e esqueça seus problemas mesquinhos!

Porém esse todo não é algo tão rarefeito ou metafísico. Tem uma identidade bem concreta: é o meio corporativo por trás da Globalização política e financeira, os principais consumidores interessados por esses tipos de vídeo, para aplicar em estratégias motivacionais em grupos de dirigentes a vendas. Tal como Deepak Chopra (entrevistado em “Somos Todos Um”): de místico e filósofo a um dos principais palestrantes motivacionais em organizações nos EUA.

Somente uma Dialética ou Teologia negativas podem se contrapor a essa teologia secularizada: fazer justiça à verdade da dor e sofrimento do indivíduo ao conseguir inverter o sentido da transcendência – não é do todo para a parte. Ao contrário, é a carne, a parte, o singular que aspiram à transcendência. Ou, como conclui emblematicamente Adorno, “ O que há de doloroso na dialética é a dor em relação a este mundo, elevada ao âmbito do conceito"

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segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Duncan Jones escreve e dirige filme com atmosfera gnóstica

Escrito e dirigido por Duncan Jones, "Lunar" constitui-se num dos poucos filmes europeus com temática inspirada na mitologia do Gnosticismo.

***
O diretor Duncan Jones tem motivos para dirigir um filme que respira uma atmosfera gnóstica. Seu pai, o artista multimídia David Bowie, tem sua obra fortemente assentada nos referenciais míticos do Gnosticismo, como demonstra o artigo de Peter-R. Koenig “The Laughing Gnostic: David Bowie and the Occult”

A estória narrada em "Lunar" lembra, em certos aspectos, o filme O Pagamento (Paychek, 2003) ao lidar com as questões da identidade, memória e a corrupção corporativa.

Sam Bell (Sam Rockwell) tem um contrato de três anos de trabalhos para a Lunar Industries Ltd. Por toda a duração do contrato, ele é o único empregado na estação lunar. Sua responsabilidade principal é a colheita e, periodicamente,o envio para a Terra de foguetes com remessas de hélio-3, o combustível limpo e abundante usado na Terra. Por não haver mais comunicação direta com a Terra por problemas técnicos com um satélite, a única interação em tempo real passa a ser com Gerty, o computador inteligente, cuja função é atender às suas necessidades do dia a dia. Tudo o que ele quer é retornar à Terra e à sua esposa Tess e sua jovem filha Eva, que nasceu pouco antes de sua partida para este trabalho. Faltando duas semanas para retornar, envolve-se em um acidente com uma das colheitadeiras mecânicas e fica inconsciente. Acorda na enfermaria sem saber como chegou lá. Após sua recuperação, contraria as ordens de Gerty e sai da nave para consertar a colheitadeira danificada onde faz uma descoberta inesperada: encontra no veículo acidentado quem, supostamente, seria seu clone. Por isso começa a duvidar de sua sanidade mental e da sua verdadeira identidade. Qual é o verdadeiro Sam Bell? E se ambos forem clones, onde está o Sam original. Qual o envolvimento dos interesses corporativos da Lunar Industries LTD nisso tudo?

Embora não aborde temas religiosos ou metafísicos, a atmosfera de um filme gnóstico está lá: a solidez a da realidade e das memórias aos poucas vai se diluindo ao ponto do protagonista não conseguir mais distinguir o real das projeções psíquicas; o protagonista que encarna o personagem gnóstico do “detetive” (a solução do enigma conduz ao questionamento radical de si mesmo, da própria identidade); a perda da memória e, simultaneamente, o roubo das memórias por um Demiurgo (a Lunar Industries Ltd) para a manipulação ao seu bel prazer e a paranóia crescente do protagonista como o estado alterado de consciência que rompe com a regularidade e constância que o computador Gerty (sempre com um Smile no seu monitor) tenta manter na base lunar (à pergunta que ambos fazem ao computador sobre quem é, afinal, o clone, Gerty responde inabalável: alguém está com fome?).

O clima de conspiração e paranóia predomina com a presença do logo e do nome da empresa Lunar Industries Ltd em todos os detalhes da base lunar. Mas é justamente aí que o filme se mostra incompleto: este clima poderia ser melhor desenvolvido por meio de uma narrativa ambígua e irônica, que aprofundasse a incerteza do protagonista e do próprio espectador - será que Sam dialoga com um clone ou com um alter-ego criado por alucinações de alguém que está há três anos solitário numa base no lado escuro da Lua? O filme até ensaia criar essa incerteza, mas desiste e retorna a uma narrativa convencional.

Apesar da narrativa convencional, os personagens e temas se inserem no paradigma dos filmes gnósticos: O Demiurgo representado pela corporação Lunar Industries Ltd., o Arconte o computador Gerty, Sophia a esposa Tess (ela é o elan para Sam lutar contra o Demiurgo e desmascarar a trama corporativa).

Ficha Técnica

Diretor: Duncan Jones
Elenco: Sam Rockwell, Kevin Spacey, Dominique McElligott, Rosie Shaw, Adrienne Shaw, Kaya Scodelario, Malcolm Stewart, Robin Chalk.
Produção: Stuart Fenegan, Trudie Styler
Roteiro: Nathan Parker, Duncan Jones
Fotografia: Gary Shaw
Trilha Sonora: Clint Mansell
Duração: 97 min.
Ano: 2009
País: Reino Unido
Gênero: Ficção Científica
Cor: Colorido
Distribuidora: Sony Pictures Home Entertainment
Estúdio: Liberty Films UK


Trailer do filme "Lunar"



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Um "Homem Sério" perdido num mundo aparentemente sem Deus

O que acontece quando Ciência e Religião falham como instrumentos de explicação ou conforto para um homem comum imerso em uma sequência de desgraças que peversamente se sincronizam? Onde falham a Ciência e a Religião ao tentar dar conta da presença do Mal no cotidiano? Esses são os temas centrais do intrigante e provocativo mais recente filme dos irmãos Coen “Um Homem Sério” cuja estréia nos cinemas brasileiros está prevista para este mês.

O protagonista do filme, Larry Gopnik, é um homem decente. Mas ele é também um homem incerto. Ele deseja ser "um homem sério", mas parece incapaz de encontrar a certeza espiritual necessária. Quanto mais ele procura esta certeza, mais evasivo ela se torna, criando uma série de situações tragicômicas.

Larry é um professor de Física que depois de receber um suborno de um aluno insatisfeito pela reprovação nas provas descobre que sua esposa infeliz faz planos de deixá-lo. Sua casa está sobrecarregada pela presença do irmão de Larry, Arthur, que, quando não escreve espécies de algoritmos em um caderno, laboriosamente drena um quisto sebáceo de seu pescoço. Os dois filhos de Gopnik são auto-absorvidos e sem inspiração, para dizer o mínimo, e Larry está sofrendo crescentes despesas por conta dos adolescentes. A saúde e carreira de Larry estão em perigo. E, no cúmulo da injustiça, Larry se vê obrigado a pagar as despesas do funeral do amante da sua esposa, falecido num acidente automobilístico.

É a história do homem moderno a procura de sentido em um universo indiferente, aparentemente ausente de Deus.

A miséria de Larry é dividida em três capítulos que correspondem às três tentativas tragicômicas de encontros com rabinos para buscar um significado divino para tudo que lhe acontece. Mas a Larry é sistematicamente negado o acesso final aos contos sem sentido que os rabinos narram como uma metáfora da inacessibilidade de uma experiência religiosa esclarecedora.

Ao mesmo tempo a Ciência de Larry (Física e Matemática) é paradoxal e frustrante. Larry informa aos alunos, após fazer em um enorme quadro negro a longa demonstração matemática do Princípio da Incerteza de Heisenberg, que a única coisa que podemos ter certeza é a incerteza.

Dybuk e o Mal


O filme faz um paralelo entre o prólogo que abre o filme (a história de um homem judeu passada a cem anos atrás que convida inadvertidamente o Mal – um Dybuk ou demônio - para entrar na sua casa) e as desventuras de Larry que por estar imerso em suas elocubrações matemáticas não consegue dar conta do progressivo desarranjo que invade sua vida (“mas eu não fiz nada”, tenta sempre justificar Larry).

Tanto a Ciência como a Religião partem de uma mesma matriz Teológica: a certeza de que a Totalidade (seja divina ou científica) é perfeita e de que o homem é a parte mais fraca, ou pelo pecado ou pela ignorância. O Mal, portanto, só pode estar presente no homem.

O que o filme dos irmãos Coen nos apresenta através de um humor negro é a falsidade das perguntas sobre o sentido da vida, o propósito ou o sentido para o cotidiano. Quanto mais o protagonista busca uma totalidade que dê sentido ao particular, mais ele se depara com a presença do Mal, isto é, com o imperfeito, o precário, o inefável, aquilo que escapa a qualquer racionalidade ou fé.

Imperfeição marcada simbolicamente na sequência em que, após uma longa demonstração matemática em um imenso quadro negro, Larry conclui que a única certeza de que dispomos é a de que tudo é incerto (a confirmação por meio do Princípio da Incerteza de Heisenberg da velha suspeita do Gnosticismo de que o Universo é corrompido nas suas origens). Ou as evasivas tragicômicas dos rabinos através de contos sem desfechos, como a analogia que o rabino Junior faz da vida com o estacionamento lotado de carros.

O protagonista não consegue contrapor a essa Teologia Positiva uma" "negatividade": procurar não a Totalidade, mas, ao contrário, encontrar a iluminação ou a experiência do Sagrado no particular, no precário, no efêmero, no cotidiano. O Sagrado não está numa suposta conexão com uma Totalidade que, repentinamente, descobriríamos em um momento místico ou de fé. A aspiração pelo Absoluto talvez encontra-se nas experiências mais banais, rotineiras e enfadonhas, como na sequência em que Larry sobe no telhado para consertar a antena (aliás, imagem emblemática do próprio pôster promocional do filme). Do alto do telhado, o protagonista, em contraste com um profundo céu azul, se detém por alguns momentos e contempla a banal beleza da vizinhança com seus prosaicos personagens e extensas áreas de grama em um típico subúrbio norte-americano. Ele parece se deter diante de uma beleza que nunca tinha dado conta. Mas uma beleza não conformista: o belo que de tão pequeno, mísero e precário somente pode aspirar a algo totalmente outro, a transcendência. Não é a Totalidade que detém o Absoluto, mas o singular que aspira ao transcendente.

Por isso a excelente epígrafe que abre o filme escrita a centenas de anos pelo rabino medieval Rashi: “Receba com simplicidade tudo o que acontecer com você”.

Ficha Técnica

Um Homem Sério (A Serious Man)
Diretor: Joel Coen, Ethan Coen
Elenco: Michael Stuhlbarg, Sari Lennick, Richard Kind, Fred Melamed, Aaron Wolff, Jessica McManus, Adam Arkin, Simon Helberg, Adam Arkin, George Wyner, Katherine Borowitz.
Produção: Joel Coen, Ethan Coen
Roteiro: Joel Coen, Ethan Coen
Fotografia: Roger Deakins
Trilha Sonora: Carter Burwell
Duração: 105 min.
Ano: 2009
País: EUA

Trailer do filme "Um Homem Sério"

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quarta-feira, janeiro 27, 2010

Código Da Vinci é Gnóstico? Algumas confusões conceituais


Muito se fala sobre o Gnosticismo em O Código Da Vinci (The Da Vinci Code, 2006) por apresentar uma versão heterodoxa ou mística de Jesus Cristo, supostamente próxima dos evangelhos apócrifos do gnosticismo. Mas certamente o seu “gnosticismo” é menos pelo conteúdo religioso e muito mais pelos estereótipos pop em torno do tema (sociedades secretas, teorias conspiratórias etc.).

Rotular o filme como “gnóstico” ou “religioso” revela uma generalização conceitual existente entre o filme gnóstico, filme religioso ou sobre o sagrado e filme sobre religião.

Filmes sobre religião seriam aqueles cujo tema religiosidade, religião, organizações religiosas, igrejas etc. são meros pretextos ou pano de fundo para o exercício dos clichês ou convenções de um determinado gênero (policial, thriller, suspense, histórico etc.). O Código Da Vinci se enquadraria facilmente nessa categoria ao fazer um pastiche de elementos históricos e religiosos, reais e ficcionais, tudo mesclado numa narrativa clássica hollywoodiana (que possibilita a identificação com os protagonistas e a forte esquematização entre bem/mal, danação/salvação). Filmes sobre religião não têm a menor pretensão em representar experiência do sagrado, iluminação ou transcendência que envolva seja o protagonista ou seja o espectador. Por possuir uma narrativa sem ambigüidades e fortemente esquemática, não permite nenhuma tensão entre forma e conteúdo que permitiria vazios ou interstícios através dos quais poderia surgir uma experiência de transcendência ou transformação.

Já o filme religioso ou sobre o sagrado já trás o problema do conteúdo e da forma. Por procurar formas imagéticas que procurem se aproximar das experiências de transcendência, seja mística ou religiosa, já experimentam o princípio da tensão entre forma e conteúdo, como coloca Lemos Filho:


“O filme religioso traz problema de conteúdo e de forma. Lumiére desejou simplesmente a realidade sem nenhuma preocupação formal. Meliées, ao contrário, preocupou-se demais com as estruturas formais. De então para cá, o filme religioso tem se inclinado ora para um ora para outro . Determinados elementos formais podem modificar o sentido do conteúdo religioso. Às vezes, a qualidade da obra sob o ponto de vista religioso depende muito menos de seu conteúdo estrito do que de sua forma. A correlação entre valores estéticos e valores religiosos é de fundamental importância para se analisar um filme e encontrar nele a evocação do sagrado”. (LEMOS FILHO, Arnaldo Cinema e o sagrado. IN Comunicarte, v.7/8, n.13/14, p. 6-20. 1990).



É o exemplo de um filme como Diário de um Padre (Journal d’um Cure de Campagne, 1951) de Robert Bresson que nos fala sobre experiências religiosas por meio de um viés realista que imprime banalidade e sensualidade bruta aos objetos e rotinas para revelar, através deles, inesperadas experiências de transcendência (“não importa, tudo é graça”, afirma o protagonista no final). Podemos denominar essa teoria cinematográfica como “realismo espiritual”.

Outra corrente é aquela que podemos denominar como de “formalismo espiritual”, inspirada na possibilidade da exploração das potencialidades formais do cinema tais como a abstração e simbolismo da montagem, do surrealismo e do camp.
Um exemplo dessa vertente está no filme 8 e Meio (8 ½, 1963) de Fellini. Um filme auto-referente: há um filme a ser feito e Oito e meio constrói-se a partir dessa necessidade. Oito e Meio começa com um sonho. Depois, o filme volta a uma estrutura mais coerente, realista, condizente com uma descrição da realidade. Mas trata-se de uma coerência relativa. As situações muitas vezes são verossímeis, porém não são "razoáveis". Há uma confusão constante, um entrar e sair incessante, em meio a imagens quase oníricas. O filme é a exploração de uma estrutura complexa de auto-referencialidades: um filme autobiográfico de Fellini, com uma narrativa sobre a produção de outro filme onde o protagonista embaralha seus sonhos com a realidade. Através de recursos formais como a auto-referencialidade e narrativa ambígua, o filme drena a solidez da realidade para fazer o espectador transcender a realidade dada.

Por sua vez o filme gnóstico experimenta a tensão entre forma e conteúdo por meio da ironia, no sentido dado pelos teóricos do Romantismo literário: procura conferir à narrativa um caráter de ambigüidade através de paradoxos, contradições e negações, pois os recursos formais disponíveis através da linguagem (seja ela fílmica ou literária)são insuficientes para expressar o inominável.

O filme gnóstico detém uma substância esotérica contida em um pacote exotérico, isto é, trabalha com o tema da ilusão da realidade dentro de um produto comercial determinado por uma ilusão: as convenções comerciais do gênero e o próprio caráter ficcional da representação fílmica. Este tipo de filme parece estar consciente dessa condição ao propor, como saída para essa tensão, experiências formais que explodem a expectativa do espectador pelos clichês do gênero.

O filme gnóstico parece seguir o sentido contrário desse prazer cinematográfico. A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem etc., dificultam essa identificação primária.

A Especificidade do filme gnóstico



O primeiro elemento que define o filme gnóstico é o aspecto da gnose que poderia ser sintetizada na seguinte frase: tudo do que o protagonista necessita já está no interior da sua mente. A gnose é apresentada como uma reforma íntima através de uma superação de limites pessoais (medos, traumas, apego aos valores do mundo físico etc.). O processo de transformação é rigorosamente pessoal e interior. O protagonista não necessita de nenhum instrumento exógeno para conseguir a transformação (livros, manuais, técnicas, guias, mentores, Deus, magia etc.) Apenas encontramos personagens que acompanharão o protagonista para ajudá-lo a criar situações que despertem nele a necessidade da reforma íntima.


Em geral, a gnose é iniciada a partir de sensações ou sentimentos íntimos do protagonista (paranóia, melancolia, déjà vus, lapsos temporais, estranhamento etc.). Isto é, a gnose não é episteme. Ela não é iniciada a partir de um conhecimento racional ou sistematizado. A jornada gnóstica deve conduzir à revelação, ao inesperado e, às vezes, a um violento insight que conduz o protagonista à percepção do todo. Muitas vezes a gnose não é uma experiência que o sujeito alcance intencionalmente. Ele é tomado por ela. Isso é que difere os filmes gnósticos de filmes como O Último Portal (The Ninth Gate, 1999) em que o protagonista percorre o caminho em direção à revelação através de conhecimentos ocultistas sistematizados em livros.

O segundo aspecto é de que a jornada pela qual o protagonista percorre não é uma expiação, mas uma “cura”, Em outras palavras, toda a provação não é conseqüência de pecados ou deformações do caráter do protagonista, mas, antes, decorre de uma realidade corrompida que o aprisiona. Todas as dúvidas e sofrimentos não são castigos por alguma transgressão ética ou moral do protagonista. Pelo contrário, é o trajeto mítico gnóstico de Emanação-Queda-Ascensão onde o protagonista é resgatado do cosmos material ao despertar a Luz interior por meio de situações que o ajudam a revelar o véu da ilusão. Isso é o que distingue os filmes gnósticos de filmes como O Advogado do Diabo (The Devil’s Advocate, 1997), onde o protagonista é seduzido pelo diabo por meio do pecado da vaidade. Apesar do discurso final de Milton (o diabo que vem ao mundo sob a forma de um advogado performado por Al Pacino) tentando convencer o protagonista Kevin (Kaenu Reeves) a ser seu sucessor ter um sabor gnóstico, o drama do protagonista centrado em um recorrente pecado da vaidade configura um típico filme de temática religiosa conservadora. O protagonista é punido pelo seu pecado capital.

O terceiro aspecto é uma decorrência do segundo: nos filmes gnósticos o protagonista não é punido pela transgressão da ordem. Ao contrário das exigências decorrentes dos gêneros comerciais onde o clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-ordem é dominante, no filme gnóstico a quebra da ordem não é punida, isto é, não há um restabelecimento da ordem (seja social, política, institucional, familiar, moral ou pessoal) com a punição das pretensões de ruptura das ilusões da realidade material. Isso distingue, por exemplo, o salto final em filmes como Telma e Louise (Thelma e Louise, 1991) com o do filme Vidas em Jogo. Se no primeiro filme todo o processo de questionamento da sociedade machista pelas protagonistas é punido pela morte com o salto final no abismo, em Vidas em Jogo o salto no vazio do protagonista é a quebra da ordem, o resultado da jornada do Viajante cujo processo de reforma íntima significa a quebra de toda uma ordem de papéis sociais. Ou ainda, a diferença de desfecho em um filme como Click (Click, 2006). Apesar do sabor temático gnóstico, apresenta um protagonista punido pela sua ambição materialista (workholic cujo objetivo é o de tornar-se sócio de uma empresa) e um final que restabelece a ordem familiar quebrada pelo pecado.

segunda-feira, janeiro 25, 2010

"Quem Somos Nós": a estupidez da Auto-Ajuda em uma teologia secularizada



O documentário “Quem Somos Nós” (What the Bleep, 2005) sob o pretenso objetivo de unir Ciência e Religião, nada mais faz do que perpetuar o pior de ambas (a liquidação do particular e do indivíduo pela Totalidade) na secularização da Teologia por meio do discurso do espiritualismo e auto-ajuda.


Se no documentário O Segredo (The Secret, 2006) tínhamos uma abordagem mais direta ou grosseira do velho tema da auto-ajuda sobre o poder da mente (com esse poder você seria capaz, por exemplo, de fazer chegar até cheques pelo correio!), pelo menos em "Quem Somos Nós" a abordagem é “filosófica” ao tomar, como ponto de partida, a discussão da união Ciência e Religião por meio da Física Quântica, Neurologia e Neurofisiologia. As perguntas clichês de uma teologia secularizada estão presentes: de onde viemos? Quem somos nós? Para onde vamos? Qual o propósito da nossa existência?... e assim por diante. Mas o ponto de chegada é o mesmo: pérolas motivacionais especialmente elaboradas para o mundo corporativo e de vendas (no final, os grandes consumidores deste tipo de vídeo para motivar equipes de vendas, gerencias e chefias), noções filosóficas e científicas fragmentadas e arbitrariamente associadas ao temas de auto-ajuda etc.

Muitos fóruns, blogs ou sites (como, por exemplo, http://gnosticteachings.org/forum/index.php?showtopic=716&mode=threaded ou http://www.religionnewsblog.com/14722) acabam se impressionando com a pretensa discussão filosófica do vídeo e acabam associando-o ao Gnosticismo, principalmente pelas críticas à religião. Puro engano, pois “Quem Somos Nós” perpetua o pior tanto da Ciência quanto da Religião: o esmagamento da importância do indivíduo diante de uma totalidade (seja natural ou divina). Ou seja, vai num sentido oposto do Gnosticismo.

Se não, vejamos. O filme parte do princípio que a cisão entre Ciência e Religião parte de uma percepção limitada do indivíduo. Os sentidos são fonte de erros porque a nossa consciência é a ínfima parte das informções que o cérebro processa (analogia do cérebro com o computador). Partindo da física quântica descobrimos que a nossa percepção cotidiana é falsa: não há matéria (grande parte do átomo é composto de vazio), objetos e eventos não estão isolados no tempo e no espaço, mas conectados entre si numa rede de interferências, da qual o Observador faz parte.

Por isso, o indivíduo é limitado por não conseguir se conectar com o “Ser Abstrato Puro”, com a “Consciência Abstrata Pura”, com o “Ser Transpersonal Único”. A consciência seria limitada por ser “um subproduto do Espírito quando entra na Matéria”. As velhas dualidades teológicas são atualizadas, até chegar a liquidação total do indivíduo: a secularização do pecado. Essa limitação do Espírito confinado na Matéria propicia a limitação da percepção e do pensamento, preso que está a esquemas viciosos (melancolia, depressão, tristeza e “negatividades” em geral). Esquemas que produzem fracasso, derrota etc.
A verdade está no Todo e jamais no indivíduo, persistentemente limitado e em queda numa nova forma de pecado: a do desconhecimento da “Consciência Abstrata Pura”. Seu pecado é o da ignorância.

O documentário não consegue superar a dualidade Ciência/Religião por estar presa a uma Teologia Positiva que, afinal, é a matriz epistemológica de ambas: o sacrifício ritual do indivíduo diante do Absoluto e o Infinito. Mas, e se esta melancolia, depressão e tristeza do indivíduo forem estados críticos de consciência contra esta Totalidade? Em outras palavras, e se for a Totalidade Natural, Divina ou Social (no final, todas a mesma coisa) a fonte do sofrimento individual?
Este é o caminho de uma Teologia Negativa ou “Herética” como fala T. Adorno: a verdade esta no particular, no indivíduo, no singular diante de uma Totalidade autoritária, origem de toda dor. Toda a literatura e videografia Espiritualista ou de Auto-ajuda nada mais faz do que atualizar este ritual cotidiano de sacrifício da parte pelo Todo.

Há uma sequência no filme Beleza Americana (American Beauty, 1999) que sintetiza essa problemática da Teologia Positiva na Auto-Ajuda. É quando Carolynn (corretora de imóveis e voraz consumidora de literatura motivacional para negócios), frustrada por não ter conseguido vencer naquele dia uma casa após uma exaustiva maratona de clientes, encosta na parede e reprime o choro e a frustração, batendo a mão no próprio rosto: “Cale-se. Pare, sua fraca, infantil!” (veja a sequência abaixo). É a repetição de um mantra dessa espiritualidade que reprime o momento de verdade contida na dor individual em nome de uma Totalidade da qual ela se origina.
Teologia Positiva como
Tecnologias do Espírito
Esta secularização teológica surge no século passado através daquilo que Lucien Sfez (Veja o livro "Crítica da Comunicação" da editora Loyola) chama de “Tecnologias do Espírito”, um discurso científico sintetizado pelos seguintes conceitos: Rede, Paradoxo, Simulação e Interação. É o modelo das ciências computacionais aplicados autoritariamente ao Espírito: indivíduo, cérebro, percepção, sentidos etc., funcionam de forma análoga aos computadores no sentido mais paradoxal e interativo.

Como nos informa “Quem Somos Nós,” a realidade não existe (tal informação confere um ar “espiritualizado” e “místico” à teologia da Auto-Ajuda). Ela nada mais é do que conceito, informação, idéias processadas pelo nosso cérebro. Se, então, isso for verdade, confere um surpreendente livre-arbítrio para o indivíduo (negado até hoje pelas religiões): a realidade é aquilo que queremos que seja, é a força do nosso pensamento (concentração, meditação). E como alcançar essa liberdade? Abandonando “vícios, medos e limitações” (os novos pecados) para, assim, entrarmos no reino da “Consciência Abstrata Pura”.
Diante desse híbrido de Ciência e Religião devemos confrontar uma Teologia Negativa que encontra na dor individual os elementos críticos da Transcendência. É a ressureição da carne: o que anseia o Absoluto não é o Espírito, mas a Carne com toda a sua dor e sofrimento impingidos pela História.
Filme Beleza Americana (American Beauty, 1999)

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