Ao abordar o Sagrado, o Cinema explicita sua dialética: de um lado a possibilidade regressiva de fixar a mística na imagem e, por outro, liberá-la através do conceito e do simbólico.
A origem dessa postagem se deu em um leitura de férias, em um sítio em Cotia, São Paulo: a leitura de uma longa e densa tese de doutorado de Eduardo Gerreiro Losso, "Teologia Negativa e Theodor Adorno - a secularização da mística na arte moderna", tese defendida no Programa de Ciência da Literatura da UFRJ em 2007. Ao longo das suas 342 páginas, o autor destrincha a obra, correspondências e arquivos pessoais de Adorno em busca das referências teológicas do seu pensamento, principalmente no seu principal legado filosófico: a Dialética Negativa.
É impossível nesse espaço discutir essa obra fundamental, mas podemos traçar alguns insights que a discussão sobre Teologia, Mística, Razão e Fé podem trazer para o tema Sagrado e Cinema.
Como destaca Losso, o principal conceito da Teologia é o da "negatividade". Como Adorno localizou nos chamados teólogos heréticos, essa negatividade é a essência da mística: a união entre pensamento e experiência. O conceito de "negatividade" deriva do fato de que a busca de Deus ou do Sagrado não se localiza no mundo das idéias do pensamento ou nas abstrações que tentam compreender o infinito, mas na materialidade da experiência particular, no ínfimo, no precário. É a Metafísica em queda.
Ao contrário, o mito procura conciliar esses dois extremos (particular/universal, matéria/espírito, experiência/pensamento) através da imagem. A imagem do mito conterá o germe do conceito do pensamento racional do Iluminismo que liquida a experiência do particular em nome do Universal (Deus, Logos, Infinito, Devir etc.). A imagem de Cristo, dentro do sistema religioso do cristianismo, é um exemplo de remitologização da mística ao longo da história. A proibição na nomeação da palavra que designa Deus entre os judeus ou os avisos sobre a idolatria das imagens no Velho Testamento bíblico são alertas para o perigo regressivo das imagens. O conceito na Razão Instrumental, como alertam Adorno e Horkheimer na "Dialética do Esclarecimento", retorna ao perigo da imagem ao querer fazer coincidir o conceito com o objeto por meio da metodologia científica que almeja coincidir sujeito e objeto para a dominação instrumental do mundo.
A imagem, assim como o conceito, querem coincidir com a Verdade como se o signo (imagético ou científico) fosse a própria coisa, como se o mapa fosse o próprio território. Congela e sacrifica a experiência em nome de uma totalidade instrumental e abstrata (sistema religioso, sistema mercantil etc.). O resultado é a idolatria religiosa ou o autoritarismo tecnocrático e mercantil que impõem sofrimento e mal-estar.
O momento negativo da Teologia que a metafísica moderna deve incorporar, como defende Adorno, é o mergulho na experiência, mas não reduzindo-se à pequenez do particular. Por que nele está a abertura para o transcendente. É a busca de uma espécie de empirismo transcedental. Na impossibilidade de apreender no objeto, o inominável, o transcendente somente poderá se revelar pela mística. É o momento progressista da Razão e do pensamento simbólico: a linguagem se recusa a fixar-se em imagens para, por meio da própria abstração que revela a distância entre sujeito e objeto, liberar o inominável.
A mística, portanto, é o momento do encontro entre pensamento e experiência: de um lado o pensamento (abstração) e por outro a fugidia e inapreensível experiência particular do sensível. O que é essa dimensão mística para Adorno? Embora seja atraído por nomes da "teologia herética" associados a filosofias e práticas místicas e gnósticas (Novalis, Eckhart, etc), ele interessa-se menos pela viagens espirituais ou experiências místicas e muito mais pelo potencial crítico: desafio às autoridades instituídas (religiosas ou sociais) ao propor a possibilidade de uma realidade "totalmente outra". Principalmente a Estética e a Arte ocupariam, na modernidade, esse papel de uma teologia negativa.
O filme gnóstico, por exemplo, ao abordar seus temas místicos (gnose, ilusão da realidade etc.) evita uma remitologização do Sagrado por meio das imagens ao seguir o sentido contrário desse prazer voyeurístico da narrativa clássica. A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem etc., dificultam a identificação primária com a imagem.