Um filme europeu com sabor de gnosticismo alquímico.
Andreas chega a uma estranha cidade sem lembrar-se de como parou lá. É dado para ele um trabalho, um apartamento e até mesmo uma esposa. Mas algo parece errado. As pessoas ao redor parecem vazias de emoções e conversam apenas sobre superficialidades. Percebemos que há uma espécie de “governança” nessa cidade onde autômatos funcionários públicos certificam-se de que tudo está funcionando bem: pessoas acidentadas, mortas ou que, simplesmente, estejam disfuncionais ao ambiente são recolhidas para um carro e levadas para um lugar não identificado.
Definitivamente, Andreas não consegue adaptar-se: é o único que aspira a emoções e sabores (na cidade os alimentos estranhamente não têm sabor, as bebidas alcoólicas não embriagam etc). Ela trás aspirações que remetem a uma outra existência da qual não consegue lembrar. Tenta escapar da cidade, mas logo descobre ser impossível. Andreas acaba encontrando uma outro pessoa com as mesmas aspirações (Hugo). Ambos descobrem, num porão de um prédio, uma rachadura na parede de onde sai uma estranha e maravilhosa música. O que há do outro lado? Começam a escavar na parede na última e desesperada tentativa de encontrar uma outra realidade além daquela.
Esta é a sinopse desse perturbador filme O Homem que Incomoda (Den Brysomme Mannen, 2006) ganhador do prêmio ACID – Agência de Difusão do Cinema Independente – em Cannes). Dentro da categorização que Eric Wilson apresenta no seu livro sobre gnosticismo no cinema (Secret Cinema: gnosticism in film), esse filme é daqueles que têm um “sabor gnóstico”: não apresenta propriamente simbolismos, iconografias ou narrativas explicitas de elementos do gnosticismo, como o fazem filmes como Matrix (Matrix, 199), A passagem (Stay, 2005) ou Show de Truman (The Truman Show, 1998). Mas possui o ponto de partida da “atmosfera gnóstica”: a desconfiança de que a realidade é falsa, um mero “constructo”. Essa desconfiança vai levar o protagonista aos estados de paranóia, melancolia ou suspensão, condições psicológicas que propiciam a gnose.
O Homem que incomoda trás uma novidade: é um dos raros filmes europeus (o filme é uma co-produção Islândia/Noruega) a abordar essa temática metafísica. Em geral no cenário cinematográfico europeu ou temos uma crítica social ou política ou filmes sobre o “humano, demasiado humano” (narrativas que versam sobre impasses éticos, morais ou dúvidas existenciais sobre “o sentido da vida”). Ao contrário, temos neste filme uma verdadeira crítica metafísica: a realidade é negada “in totum” e, a única forma de escapar é negá-la (no filme representado pela possibilidade por meio de uma fresta na parede do porão.
O curioso no filme é como é apresentada a possibilidade da transcendência. O filme trás um profundo simbolismo alquímico: a transcendência não é procurada nos céus, correndo até o fim do mundo ou se matando mas ... cavando, numa parede em um porão! A fresta aberta é um contato para um mundo paralelo onde as coisas têm cor e sabor. O processo alquímico clássico envolve a dissolução de elementos até o caos para, por meio desse estado, separar massas indiferenciadas em espírito e matéria, unindo essas oposições em uma espécie de casamento alquímico – do qual surge a pedra filosofal. Essa atividade alquímica reencenaria a atividade de Deus que separou o caos em elementos distintos para, mais tarde, reunificar essas antinomias na Revelação. Estes aspectos simbolizariam o processo através do qual o adepto consegue refinar a sua alma.
- Ficha Técnica:
Direção: Jens Lien
Ano: 2006
País: Islândia, Noruega
Duração: 95 min/cor
Título Original: Den Brysomme Mannen
Título em Inglês: The Bothersome Man
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