O documentário “Quem Somos Nós” (What the Bleep, 2005) sob o pretenso objetivo de unir Ciência e Religião, nada mais faz do que perpetuar o pior de ambas (a liquidação do particular e do indivíduo pela Totalidade) na secularização da Teologia por meio do discurso do espiritualismo e auto-ajuda.
Se não, vejamos. O filme parte do princípio que a cisão entre Ciência e Religião parte de uma percepção limitada do indivíduo. Os sentidos são fonte de erros porque a nossa consciência é a ínfima parte das informções que o cérebro processa (analogia do cérebro com o computador). Partindo da física quântica descobrimos que a nossa percepção cotidiana é falsa: não há matéria (grande parte do átomo é composto de vazio), objetos e eventos não estão isolados no tempo e no espaço, mas conectados entre si numa rede de interferências, da qual o Observador faz parte.
Por isso, o indivíduo é limitado por não conseguir se conectar com o “Ser Abstrato Puro”, com a “Consciência Abstrata Pura”, com o “Ser Transpersonal Único”. A consciência seria limitada por ser “um subproduto do Espírito quando entra na Matéria”. As velhas dualidades teológicas são atualizadas, até chegar a liquidação total do indivíduo: a secularização do pecado. Essa limitação do Espírito confinado na Matéria propicia a limitação da percepção e do pensamento, preso que está a esquemas viciosos (melancolia, depressão, tristeza e “negatividades” em geral). Esquemas que produzem fracasso, derrota etc.
O documentário não consegue superar a dualidade Ciência/Religião por estar presa a uma Teologia Positiva que, afinal, é a matriz epistemológica de ambas: o sacrifício ritual do indivíduo diante do Absoluto e o Infinito. Mas, e se esta melancolia, depressão e tristeza do indivíduo forem estados críticos de consciência contra esta Totalidade? Em outras palavras, e se for a Totalidade Natural, Divina ou Social (no final, todas a mesma coisa) a fonte do sofrimento individual?
Há uma sequência no filme Beleza Americana (American Beauty, 1999) que sintetiza essa problemática da Teologia Positiva na Auto-Ajuda. É quando Carolynn (corretora de imóveis e voraz consumidora de literatura motivacional para negócios), frustrada por não ter conseguido vencer naquele dia uma casa após uma exaustiva maratona de clientes, encosta na parede e reprime o choro e a frustração, batendo a mão no próprio rosto: “Cale-se. Pare, sua fraca, infantil!” (veja a sequência abaixo). É a repetição de um mantra dessa espiritualidade que reprime o momento de verdade contida na dor individual em nome de uma Totalidade da qual ela se origina.
Teologia Positiva como
Tecnologias do Espírito
Como nos informa “Quem Somos Nós,” a realidade não existe (tal informação confere um ar “espiritualizado” e “místico” à teologia da Auto-Ajuda). Ela nada mais é do que conceito, informação, idéias processadas pelo nosso cérebro. Se, então, isso for verdade, confere um surpreendente livre-arbítrio para o indivíduo (negado até hoje pelas religiões): a realidade é aquilo que queremos que seja, é a força do nosso pensamento (concentração, meditação). E como alcançar essa liberdade? Abandonando “vícios, medos e limitações” (os novos pecados) para, assim, entrarmos no reino da “Consciência Abstrata Pura”.
Filme Beleza Americana (American Beauty, 1999)