Um drama de
Romeo e Julieta pós-moderno. Um amor impossível entre um espantalho e um robô
em meio a um festival de música eletrônica em uma zona rural qualquer. Esse é o
curta “Robot and Scarecrow”, 2017) de Kibwe Tavares, conhecido por produções
onde os efeitos digitais se fundem organicamente com “live action” – um robô
programado para performar um show musical se apaixona por um espantalho
despertado pelas bicadas dos corvos. Se misturam na multidão e tentam viver uma
improvável história de amor. O curta é um dos exemplos mais diretos de como o
fascínio pelos simulacros humanos (androides, robôs, fantoches, bonecos etc.)
no cinema funcionaria como um espelho da própria condição humana. Naquele
festival de música a condição tanto das estrelas pop quanto do público -
controlados pela indústria do entretenimento, programados como um robô ou
espetados em um mastro como um espantalho.
Robôs,
fantoches, replicantes, bonecos, brinquedos e toda sorte de simulacros humanos
ao mesmo tempo que nos amedrontam, também nos fascinam – para além do medo, vemos
neles algo de nós mesmos: a suspeita de que nós vivemos uma condição parecida
com a deles, prisioneiro de algum “mestre das marionetes” e manipulado por
algum Demiurgo.
Desde clássicos
como Gabinete do Dr. Caligari (1920)
e Frankenstein (1931), passando por O Planeta Proibido (1956) até novos
clássicos como Blade Runner (1982) e Robocop (1987), está presente esse
fascínio. Porém, sempre em mundos futuros ou fábulas góticas. Tudo ainda é
muito oblíquo e simbólico – Caligari seria um simbolismo da Alemanha
pré-ascensão do nazismo, Blade Runner
e a simbólica relação do androide replicante Roy com seu criador Tyrrel e assim
por diante.
Mas no curta Robot and Scarecrow (“Robô e Espantalho”,
2017) essa analogia dos simulacros humanos com a própria condição humana é
explícita, direta, nessa história de um robô e um espantalho que se encontram e
se apaixonam em um festival de verão de música eletrônica.
Dirigido por Kibwe Tavares (com roteiro de
Christopher O’Rilley e Ursula Sarma) é conhecido por trabalhos nos quais funde live action com futurísticos efeitos em
CGI como no seu trabalho anterior Robots
of Brixton (2011).
A inspiração
para produzir o curta veio em um momento em que o diretor preparava-se para
filmar um vídeo musical com Katy Perry: “Estava fazendo uma pesquisa sobre a
Katy, assistia seus vídeo clips e um documentário que acompanhou a sua turnê
por um ano. Havia uma cena em que Katy tinha acabado de romper com seu namorado
Russel Brand, mas mesmo assim teve que atuar em show como nada tivesse
acontecido”.
Para Tavares,
havia algo de robótico nisso, como se as estrelas pop fossem commodities, bem
recompensadas financeiramente, mas ao custo da própria liberdade.
O Curta
No
curta vemos os bastidores de um festival de verão de música eletrônica. A
estrela é um robô feminino que irá performar um set musical e está sendo
montada por técnicos. Uma máquina dependente da fonte de alimentação de sua
bateria – ao que parece, a bateria é instável, com capacidade de guardar energia
apenas para o tempo de um show.
Ao mesmo tempo,
as bicadas de um corvo faz despertar um espantalho em uma fazenda nos arredores
– interessante o simbolismo da dor que faz despertar: no robô, o incômodo das
ferramentas que batem nela; e paralelo a isso as bicadas insistentes do corvo
no espantalho.
Despertado, o
espantalho sai andando até conseguir entrar na área do festival. Mistura-se com
a multidão de jovens e gosta do som e agitação: passa a dançar e acompanhar o
público.
Do outro lado
da cerca de segurança que separa o palco, a robô vê o espantalho e fica curiosa
em conhece-lo. Mas primeiro tem que fazer o show, para depois fugir dos
seguranças e se encontrar com o espantalho e se apaixonar.
Tavares vê a
multidão do show como uma massa caótica, em catarse descontrolada e à beira da
violência: o pobre espantalho é despedaçado pela multidão alucinada em frente a
um show de rock. A apaixonada robô pega os pedaços dele e leva para uma tenda
de espécie neo-hippies em uma das tendas do festival. O espantalho então será novamente costurado e
revivido.
A dupla
passeia, brinca e dança pela área do festival, cada vez mais apaixonados. Mas
lembre-se... a bateria da pobre robô é instável...
Robô e espantalho: espelhos de nós mesmos
É evidente no curta
a condição robótica e programada das estrelas pop, dependentes da “fonte de
alimentação” – financeira ou prestígio. Essa foi a inspiração inicial de Kibwe
Tavares baseado no drama pessoal de Katy Parry.
Mas há algo mais e
incômodo: tanto o espantalho como o robô se misturaram na multidão dos shows
e... ninguém percebeu aquelas duas estranhas figuras, simulacros humanos que
ganharam vida e passeiam numa história de amor impossível entre os humanos.
Não há medo, terror
ou surpresa. Todos parecem indiferentes. A situação lembra outra produção
inglesa Todo Mundo Quase Morto (Shaun of the Dead, 2004) no qual um
funcionário de uma loja e seu amigo não percebem que Londres está sendo tomada
por zumbis. Afinal, os londrinos normalmente já têm aparência e comportamento
de zumbis.
Esse irônico humor
negro também está presente em Robot &
Scarecrow: o robô e o espantalho imitam os gestos humanos e as pessoas vêm
neles personagens tão “exóticos” como eles próprios em um festival de música
pop.
O robô controlado
pelos programadores dos bastidores da cena musical e o espantalho espetado em
um mastro por um fazendeiro são representações diretas da condição de todos
naquele festival: a indústria do entretenimento que controla tanto as estrelas
quanto o público – canaliza tanto a alegria e catarse quanto a violência que
explode sobre o pobre espantalho.
Um homem feito de
palha e um garota com feições de androide em um festival de música parecem o
espelho do próprio público que pula e dança enlouquecido.
Porém Kibwe Tavares
delimita uma diferença importante: tal qual como em Blade Runner, onde os replicantes adquirem mais amor pela vida do
que os próprios seres humanos que os criaram, no curta o robô e o espantalho
aspiram pelo amor e a liberdade. Bem diferente dos humanos.
Os humanos apenas se
contentam em consumir as commodities expostas no palco do festival e ter o seu
comportamento tão direcionado tanto quando o do próprio espantalho e da
apaixonada robô. Mas pelo menos os simulacros humanos aspiram por algo mais: um
mundo que vai além dos muros de seguranças que cercam aquele festival.
Ficha Técnica |
Título: Robot and
Scarecrow
|
Diretor:
Kibwe Tavares
|
Roteiro: Christopher O’Reilley, Ursula
Sarma
|
Elenco: Jack O’Connell, Holliday Grainger,
Daniel Kaluuya
|
Produção: DMC Films, Factory Fifteen, Nexus
Studios
|
Distribuição:
Vimeo
|
Ano: 2017
|
País: Reino Unido
|
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