Um filme para
os cinéfilos amantes do surreal e do estranho. “Wool 100%” (“100% Lã, 2006) do
escritor/diretor japonês Mai Tominaga é uma curiosa comédia que combina a fábula
gótica e fantástica com o humor negro repleto de simbolismos: duas irmãs idosas
passam os seus dias acumulando objetos e sucatas em seu casarão, recolhidos e
catalogados diariamente em uma pequena cidade japonesa. Até que encontram um
cesto cheio de novelos de lã vermelha. Do emaranhando de fios surge uma jovem
que tricota sem parar o próprio suéter que veste, para depois desfiar e recomeçar tudo de novo. A jovem intrusa dará início a
uma complexa simbologia de transformação alquímica envolvendo a cor vermelha,
tricô, infância, sexo e amor – simbolismo de libertação das protagonistas
presas nas memórias do casarão, como fosse a cartografia das suas próprias
mentes.
Como o leitor
do Cinegnose pode ter percebido, o
conceito de filme gnóstico muitas vezes tangencia com os “weird movies”,
“filmes estranhos” – a combinação das ideias do maravilhoso e do fantástico com
aquilo que é excêntrico, estranho ou incomum. Filmes que fogem na narrativa
realista (verossimilhança) e que muitas vezes fundem live action, animações e iconografias surreais.
Enquanto o
filme gnóstico mostra protagonistas em situações nas quais a familiaridades do
cotidiano comum repentinamente se transforma em algo não-familiar, estranho e
hostil, mostrando que por trás da conformidade cotidiana existe a paranoia e
forças que não nos amam. Por isso, muitas vezes elementos do “estranho” (o
maravilhoso, o fantásticos, o surreal e o bizarro) se cruzam com a ilusão que
esconde a verdade.
O filme japonês
Wool 100% (“100% Lã”, 2006) do
escritor e diretor Mai Tominaga é um bom exemplo desses momentos de tangência
entre o estranho e o gnóstico – uma impressionante e intrincada sequência de live action, animações e marionetes com
desconcertantes efeitos, além de explorar elementos arquetípicos do gnosticismo
alquímico.
Enquanto filmes
gnósticos como Beleza Americana
(1999) exploram simbolismos alquímicos dentro de uma narrativa realista (sobre
o filme clique aqui), Wool 100% também explora essa simbologia, mas combinada com uma
narrativa e visual mágico, surreal e muitas vezes bizarro.
Duas irmãs
idosas vivem em uma mansão que mais parece uma casa de bonecas de um conto de
fadas. Cada quarto transborda de tanto lixo e objetos que diariamente as
velhinhas pacientemente colecionam – saem todos os dias para inspecionar os
lixos das casas da localidade, selecionam e limpam meticulosamente os objetos
para depois serem catalogados, um a um, em livros de contabilidade ilustrados.
O visual e
atmosfera transitam entre o conto de fadas, o gótico, o fantástico e a comédia.
Se Tim Burton fosse japonês, certamente faria um filme assim.
Até que em um
belo dia, encontram uma cesta com novelos de lã vermelha e levam para casa. A
partir daí, inicia-se a série de simbolismos alquímicos que transformará para
sempre a vida daquelas irmãs.
Wool 100% é o típico filme para cinéfilos que amam o estranho e surreal.
Além de somente ser encontrado em arquivos torrentes na Internet,
principalmente em sites japoneses como o Xiepp. E legendas em inglês no site OpenSubtitles.com
O Filme
As irmãs idosas Ume-san (Kyôko
Kishida) e Kame-san (Kazuko Yoshiyuki) vivem sozinhas desde pequenas quando a
mãe as abandonou. Desde então, passam os dias acumulando no casarão onde moram
objetos de toda sorte: relógios de parede, bonecos, abajures, futons e tudo o
que se possa imaginar.
O filme abre com poucos
diálogos, mostrando o cotidiano das irmãs: saem com carrinhos de feira e
caminham pelas ruas, vielas e becos remexendo o lixo em busca de objetos
significativos, interessantes ou raros. Levam para casa, limpam e pacientemente
catalogam cada objeto numa espécie de livros-catálogo ilustrados onde desenham
cada item encontrado.
A paz da rotina das
velhinhas acaba quando levam para casa um cesto com vários novelos de lã
vermelha. Repentinamente, em meio ao emaranhado dos fios, surge uma jovem
mulher (Ayu Kitaura), tricotando um suéter. Desapontada com o resultado, dá um
assustador grito, reclamando que terá que tricotar novamente: impacientemente
desfia o suéter e começa a tricotar de novo diante das irmãs incrédulas.
Dão para a jovem o singelo
nome de “Tricotar-Novamente”. Ela passa os dias tricotando sem parar. Ele a
veste o próprio suéter que tricota, como se tricotasse a si mesma em um
infinito ciclo vicioso.
Quem é ela? Um fantasma? Uma
garota perdida em busca de refúgio? Algo sinistro? Muitas ambiguidades marcam o
início do filme – suspeitamos que até as próprias irmãs possam ser fantasmas
presos naquele casarão em uma rotina compulsiva.
Tudo o que podemos saber é
que a chegada dela naquele casarão desencadeia uma série de flashbacks para as
irmãs que têm seus próprios obscuros segredos envolvendo a mãe que as abandonou
e um jovem por quem se apaixonaram na juventude.
Esses segredos foram
profundamente enterrados naquele casarão desordenado. Será que a montanha de
objetos e lixo acumulados foi uma forma das irmãs tentarem soterrar os traumas
do passado?
Simbolismo PsicoGnóstico
Wool
100% vive inteiramente
em um mundo de metáforas e simbolismos complicados. O tricô conecta a temas do
sexo e do amor. Na infância ouviam falar que quando uma mulher faz tricô está
invocando uma gravidez. Em um dos vários flashbacks vemos as irmãs se
confrontando com a realidade biológica do sexo ao ler um livro que acham,
solitárias após o abandono da mãe, no casarão.
O choque em saberem que a
pequena história do tricô era uma mentira, faz elas viverem solitárias e soterradas
por objetos na esperança da volta do jovem amado – na verdade ele era um
negociante de objetos antigos porta-a-porta. Ele nunca mais voltou
(provavelmente porque foi convocado a lutar na Segunda Guerra Mundial). Por
isso, na esperança de um dia o jovem voltar, recolhem sucatas no lixo da
localidade.
Solitárias e vivendo em uma
rotina viciosa e compulsiva, o filme apresenta o casarão como fosse o próprio
psiquismo das irmãs: estão presas dentro das suas próprias mentes, em seus
traumas. Nesse aspecto, Wool 100%
desenvolve esse elemento PsicoGnóstico:
o protagonista prisioneiro em uma realidade criada pela própria mente.
Aliás, em muitos momentos o
filme sugere que na verdade as velhas irmãs são uma dupla de fantasmas
prisioneiras em um limbo entre a vida e a morte, presas em seus traumas e
frustrações que não conseguem deixar para trás.
Transformação alquímica
O fio de lã e o suéter
vermelho da jovem intrusa chamada “Tricotar-Novamente” é o simbolismo alquímico
de transformação, assim como as pétalas vermelhas e o sangue no filme Beleza Americana indutoras da transformação
espiritual do protagonista Lester – Kevin Spacey.
As etapas da transformação
(transmutação alquímica: Nigredo, Albedo
e Rubedo) estão evidente em Wool 100%.
Nigredo (enegrecimento) é o caos
primordial e a melancolia trazidas pelos flashbacks da v infância das irmãs – o
abandono inexplicável da mãe e a destruição da mitologia do tricô em torno do
amor e sexualidade.
Albedo (embranquecimento): sob a
influência da Lua o caos é imobilizado na rotina diária compulsiva de recolher
objetos e sucatas para se amontoarem no casarão. Há uma calma e serenidade
aparentes – o casarão torna-se uma metáfora dos seus psiquismos. Estão presas e
imobilizadas em suas próprias mentes.
Rubedo (enrubescimento): nesse
estado ideal e congelado é injetado o calor, o Sol e o sangue. Assim como na
Alquimia na qual o mercúrio é o simbolismo do dissolvente universal – “fogo
aquoso”, “água ígnea”, “água da vida ou da morte” etc. Os fios e novelos de lã vermelhos que dominam
a iconografia do filme é o simbolismo máximo do Rubedo que irá destruir o
estado de imobilidade em que vivem as velhas irmãs.
A cena final de uma
infinidade de fios vermelhos seguindo o fluxo de um rio é altamente simbólica:
sexo, sangue menstrual e toda uma realidade que foi denegada por montanhas de
objetos e detritos (físicos e mentais) acumulados em uma vida inteira.
Os temas abordados podem
parecer trágicos e pesados, mas são conduzidos com leveza por um tom de comédia
e non-sense pelo diretor Mai
Tominaga. E as pequenas animações fazem o contraponto com a histórias das irmãs
e a jovem tricoteira intrusa. Criam uma atmosfera geral de delicadeza e
elegância, como uma gravura da arte japonesa.
Ficha Técnica |
Título: Wool 100%
|
Diretor:
Mai Tominaga
|
Roteiro: Mai Tominaga
|
Elenco: Kyôko Kishida, Kazuko Yoshiyuki,
Ayu Kitaura
|
Produção: Pyramid Film, The Klockworx
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Distribuição:
Cinema Epoch
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Ano: 2006
|
País: Japão
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