Subir numa
escavadeira para posar para as câmeras em demolições na Cracolândia, qualificar
como “bobagem” quando questionado sobre as ameaças de agressão física do
secretario André Sturm contra agentes culturais, o humilhante vídeo demitindo
uma secretária de governo análogo à estética visual dos vídeos do ISIS,
qualificar as ruas de São Paulo como “lixo humano” e pulverizar e despachar a
Virada Cultural para lugares distantes entre si. Arrogante? “João Noia?” O
gênio do prefeito João Doria Jr. é saber que foi eleito pela e para a mídia
corporativa e que “opinião pública” resume-se a câmera e teleprompter. Sabe que
nada deve ao respeitado público já que é uma experiência de vanguarda de um
projeto no qual São Paulo é o laboratório. Por isso, de forma atávica, repete
como farsa o roteiro do assalto nazifascista ao poder e guerra contra a
sociedade: começa pelo banimento da “arte degenerada”, passando pela
desautorização e humilhação das opiniões contrárias, terminando com a “Nova
Berlim” paulistana na Cracolândia e “sacar revólveres” quando ouve falar em
cultura.
Locomotiva da
nação, São Paulo sempre esteve na vanguarda: Semana de Arte Moderna de 1922, a
Revolução Constitucionalista de 1932 contra Getúlio Vargas, a primeira emissora
de TV da América Latina inaugurada em 1950 (a TV Tupi), a primeira rede de
metro do País, o berço da indústria automobilística nacional entre outros
pioneirismos.
Muitos dizem
que São Paulo é um enclave conservador, porque resistente a medidas
civilizatórias globais como ciclovias e redução da velocidade dos carros.
Mas temos que
admitir: São Paulo sempre esteve na vanguarda e, na atualidade, é um
laboratório para o “brave new world” que nos aguarda. Desde a simbólica
inauguração da Praça Victor Civita (símbolo de um projeto de sustentabilidade -
por meio do sucateamento deliberado do
Estado, tornar escasso todos os bens tidos como universais (água, educação,
energia etc.) para, depois, serem entregues à regulação do mercado como simples
mercadorias – clique aqui) até a primeira posse de um prefeito midiático – João
Dória Jr.
Como este Cinegnose anteviu em 2015, a cidade que
pariu o conservadorismo populista do “rouba-mas-faz” de Ademar de Barros e
Maluf, seria o laboratório para a primeira experiência de um candidato
eleito pela e para a grande mídia – o velho conservadorismo renovado
eletronicamente – clique aqui.
Na época, o
apresentador da Band José Luiz Datena era assediado a se candidatar ao pleito
municipal, enquanto o apresentador do programa Show Business, Doria Jr., junto
com Celso Russomano (que fez carreira na TV como suposto defensor do
consumidor) eram nomes confirmados.
Berlusconi no vácuo da "Operações Mãos Limpas" |
Vácuo político
Para analistas,
nomes que surgiram na esteira do “vácuo político” resultante da judicialização da
política feita pela Operação Lava Jato e congêneres em diária exposição
televisiva de políticos e empresários conduzidos por policiais federais.
Repetindo o mesmo roteiro da Operação Mãos Limpas na Itália que destruiu o
sistema político partidário e abriu caminho para o empresário midiático Silvio
Berlusconi nos anos 1990.
Depois do
incansável trabalho diário em desmoralizar não só a figura do político, mas a
própria instituição da representatividade na Política, a grande mídia entrou na
fase decisiva do seu projeto histórico: chega de intermediários! Cansada de
levar a reboque a Política, agora a mídia corporativa quer “gestores” que
saibam ler um teleprompter, consigam se posicionar bem diante das câmeras e entendam
a logística da grande mídia.
O resultado
dessa experiência vanguardista pudemos acompanhar nesses primeiros cinco meses
desse prefeito que representa a quintessência do imaginário conservador
paulistano (“vencedor”, “empreendedor”, “gestor eficiente”): bravatas,
agressões, predisposição a humilhar os outros, solene desprezo pela alteridade,
arrogância e nenhuma disposição para diálogo – a não ser com membros de uma
elite empresarial “parceira” na gestão municipal.
Vemos quase
diariamente nos noticiários secretários esbaforidos e gaguejantes diante das
câmeras na urgência de apagar algum incêndio provocado por decisões intempestivas
do prefeito, na sua ansiedade diária de ocupar o noticiário e redes sociais com
factoides e notícias sobre decisões de súbito e, muitas vezes, projetos que nem
saíram do papel.
Começou com a blitzkrieg da tinta cinza sobre os
painéis de grafismos em avenidas da cidade dentro do programa “Cidade Linda” e
a sua cruzada pelo embelezamento urbano mediante a caça policial de pichadores,
repentinamente transformados em urgentes inimigos públicos.
Depois, a humilhante
exposição da secretária Soninha Francine sendo demitida em vídeo por Doria Jr.
Os dois, lado a lado, com uma estética audiovisual parecida com aqueles vídeos
do ISIS no qual vemos um jihadista gritando alguma coisa como “Allahu Akbar”,
enquanto o refém espera ser decapitado ao vivo.
“Bobagem!”
Depois de jogar
flores de uma ciclista no chão, passar com escavadeiras e policiais sobre a
Cracolândia numa manhã de domingo (vitimando até moradores e trabalhadores que
dormiam nas suas casas) e, com mais escavadeiras, tentar derrubar muros para
colocar contêineres para atender dependentes químicos da região sob protestos
de moradores que sequer foram consultados, ocorreu o episódio que é uma síntese
do modus operandi Doria Jr.
O secretario da
cultura André Sturm em uma reunião com agentes culturais de uma Casa da Cultura
de Ermelino Matarazzo, Zona Leste da Capital, ameaçou diversas vezes “quebrar a
cara” de um dos interlocutores em visível descontrole emocional.
Questionado
pelos jornalistas sobre o acontecimento, o prefeito desdenhou: “bobagem!”.
Para além de
secretários visivelmente estressados pela urgência em produzir acontecimentos
para a mídia e ter que limpar os efeito colaterais para debaixo do tapete, a
resposta lacônica e indiferente do prefeito (“bobagem!”) é sintomática: Doria
Jr. sabe que não tem qualquer compromisso com alguma coisa chamada “opinião
pública” – ele foi eleito pela mídia corporativa e somente a ela deve
satisfações, fora do enquadramento da câmera e nos bastidores.
indignação dura apenas 24 horas
Para o midiático
prefeito, “opinião pública” é a câmera e o teleprompter. E “gestão pública” é a
produção de factoides onde o efeito estético é mais importante do que
implementações reais.
Estoicamente,
Doria Jr. aposta na blindagem do “jornalismo snapchat” da grande mídia:
apresentadores e comentaristas chegam a demonstrar uma leve indignação e até
mesmo o áudio ameaçador do secretario Sturm foi ao ar em tom de denúncia.
Porém, passada
a manchete e mantida a aparência de “imparcialidade”, nos dias posteriores não
vemos mais atualizações nos telejornais e tudo fica por isso mesmo.
Porém, isso
ainda não é o suficiente. Nenhuma experiência política (e até supostamente
apolítica como a do campeão paulistano da “gestão”, “eficiência” e das
“parcerias”) se realiza sem a exploração do psiquismo e do imaginário.
E talvez
involuntariamente, de forma atávica como se revivesse como farsa algum
inconsciente coletivo histórico, Doria Jr. nesses pouco mais de cinco meses
seguiu o roteiro clássico do assalto nazifascista ao poder e declaração de
guerra à sociedade.
Alguns “clichês”
desse roteiro:
(a) Arte degenerada
Assim como o
regime nazista tachou toda a arte moderna de “degenerada” e de natureza
“judia-bolchevique” banindo-a da Alemanha e limitando sua exposição em lugares
restritos (a “Mostra Arte Degenerada”), o programa Cidade Linda seguiu o mesmo
ímpeto – o prefeito apagou, pessoalmente fantasiado como gari, grafites e
pichações do imenso painel na avenida 23 de Maio.
“Pintei com
enorme prazer”, desafiou Doria Jr., enquanto falava em restringir os grafites a
lugares pré-definidos e isolados. Afastar os grafites do ambiente urbano e
restringi-los a guetos é a própria repetição do conceito de “embelezamento do
mundo” por meio de assepsias e “soluções finais”.
(b) Humilhação
O vídeo da
humilhante demissão da secretaria Soninha mostra como o prefeito está
organicamente ligado à vida psíquica da “locomotiva da nação”: humilhação é o
cotidiano de estagiários, trainees e demais aspirantes a um lugar ao Sol na
profissão. É aceita como uma espécie de síndrome de Estocolmo – “esporros e
gritos são para o meu bem... aprendo com eles”.
Mais tarde, se
chegar lá em cima, de forma reflexa vai descontar seu ressentimento dos
estagiários e trainees da vez. Theodor Adorno chamava esse fenômeno de “correia
de transmissão”, a dinâmica psíquica da chamada personalidade autoritária –
“aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo com os demais”.
Personalidades
autoritárias ficam eufóricas com coisas como “Operação Cracolândia” – é a versão
standard da “solução final” de Auschwitz e Treblinka. Será que o inacreditável
vídeo de imolação da Soninha foi a preparação subliminar para a “megaoperação
de combate às drogas” na Cracolândia?
(c) Arquitetura da destruição
Em postagem
anterior esse humilde blogueiro apontava a semelhança entre a concepção
urbanística do projeto “Nova Berlim” de Hitler e Albert Speer com o projeto
Nova Luz, motivação de especulação imobiliária da megaoperação na Cracolândia - clique aqui.
Faz parte desse
roteiro a política de terra arrasada ou Problema-Reação-Solução (P-R-S),
técnica de engenharia de opinião pública no qual problemas são fabricados
(false flags, não-acontecimentos, factoides etc.) para estimular uma crise que
faça o público gritar: “Algo precisa ser feito!”.
Do incêndio no
Reichstag em 1933 (evento crucial para o estabelecimento da Alemanha nazista) à
tragédia humana da megaoperação Cracolândia, como sempre cria-se a terra
arrasada para se impor a conveniente solução.
No documentário
Arquitetura da Destruição (Peter
Cohen, 1989), vemos Hitler e Speer chamando isso de “princípio das ruínas” – as
ruínas de uma Alemanha arrasada pela guerra inspirariam as gerações futuras...
e parece que eles tinham razão.
(d) “Quando ouço falar em cultura saco o meu revólver”
Frase de uma
peça antinazista de Hanns Jost de 1933 (ano que os nazistas assumiram o poder)
e depois atribuída ao chefe da Gestapo Herman Göring, a cultura sempre levantou
suspeitas para a personalidade autoritária – dos fantasmas de artistas
comunistas e petistas se lambuzando de dinheiro com a Lei Rouanet ao terror
pelos “pancadões funk” como fenômeno policial numa cidade ocupada por “lixo
humano”, como descreveu certa vez Doria Jr.
Mais do que destempero
emocional sintoma das pressões do insone prefeito, as ameaças do secretário da
Cultura Sturm contra agentes culturais de um bairro periférico (“Vou quebrar
sua cara!”) é uma pequena amostra de como a Cultura é encarada nesse roteiro
nazifascista: um objeto suspeito de repressão policial.
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