O filme
“Matrix” (1999) dos Wachowskis já foi
dissecado e virado do avesso pela filosofia, misticisismo, esoterismo,
religião, inspirando até a Física sobre a possibilidade de o Universo ser,
afinal, uma gigantesca simulação computadorizada finita. Mas muito pouco ainda
se falou sobre o ponto de vista da Semiótica. O que é surpreendente, já que
Matrix parte de um pressuposto da ciência dos signos: não percebemos o real,
mas signos mentais da realidade. “Matrix” foi muito mais do que mais uma ficção
científica distópica. Na verdade os Wachowskis propuseram aos espectadores um
enigma, uma “narrativa em abismo”: a emoção e empatia do
público com o drama da Resistência na luta contra as máquinas é tirada da
própria experiência do espectador com o seu mundo atual: já vivemos situações
análogas, quando olhamos para o mundo real e o avaliamos não a partir dele
mesmo, mas a partir dos signos que já foram feitos anteriormente desse próprio
mundo. “Speed Racer” (2008), produção posterior à Trilogia Matrix, apenas confirmou
esse propósito da dupla de diretores.
Muito já se
falou, discutiu e escreveu sobre o filme dos Wachowskis, Matrix, de 1999. Coincidindo com o final do século XX, esse filme
representou o ápice do Gnosticismo Pop com o subgênero CosmoGnóstico – ao lado
de Clube da Luta, eXistenZ, 13o
Andar (todos lançados no mesmo ano), foi o auge de narrativas que
especificamente questionavam o modo como compreendemos e operamos a realidade.
A partir de Amnésia (2000) e Vanilla Sky (2001), o século XXI tendeu para narrativas PsicoGnósticas e
CronoGnósticas – o questionamento agora passa para as realidades interiores
(mentais, psíquicas etc.), tão mortais e perigosas como as matrix tecnológicas.
Matrix já foi analisado pelos pontos de vista filosófico, místico,
religioso, esotérico, neoplatônico e até da Física – é plausível pensar a
realidade como uma Matrix? Poderia o universo ser concebido como um gigantesco
game de computador ou uma simulação computacional finita? – sobre isso clique aqui.
Surpreendentemente,
poucas análises do ponto de vista da Semiótica se aventuraram em discutir o
filme, apesar na narrativa partir de um pressuposto bem ao gosto da ciência dos
signos: o que percebemos através dos nosso cinco sentidos não é a realidade,
mas signos do que entendemos por “realidade”.
"Não existe a colher. Só você" |
O signo da realidade
Se duas pessoas
olham para uma cadeira, cada uma criará um “interpretante” (a imagem mental ou
signo) diferente. Imagens mentais criadas a partir dos pontos de vistas
originados dos espaços distintos de onde cada um observa o objeto. Se isso for
verdade, a realidade seria uma “ilusão consensual” – ambos têm que admitir que
estão diante de um objeto, mesmo criando interpretante diferentes. Portanto, a
“ilusão consensual” será a Gestalt do signo /cadeira/.
Esse sentido da
realidade como fosse “ilusão consensual” é corroborado com a análise que Slavoj
Zizek faz de filmes CosmoGnósticos como Show
de Truman e Matrix: e se a
própria vida social real de alguma forma adquirir traços de uma farsa encenada,
com nossos vizinhos e conhecidos participando como figurantes em uma grande
ilusão consensual? – leia ZIZEK, Slajov. “Matrix: ou os dois lados da
perversão” In: IRWIN, William (org.) Matrix
– Bem vindo ao deserto do real, Madras, 2002.
Esse humilde
blogueiro crê que Matrix foi
supervalorizado em seu aspecto metafísico no qual toda a realidade seria
colocada sob suspeita (tudo é gerado pela Matrix!) – se tudo é Matrix, nada é
Matrix.
Slajov Zizek: "E se a própria vida social for uma farsa?" |
O “assassinato do real”
Ora, na época
os irmãos Wachowski convidaram o pensador francês Jean Baudrillard (1929-2007 -
o maior teórico da simulação) para assessorar o roteiro do filme. Como um bom
intelectual francês, declinou do convite vindo de uma produção hollywoodiana –
sobre isso clique aqui.
Baudrillard foi
um pesquisador que teorizava, principalmente, o que chamava de “crime perfeito”
ou “assassinato do real” – o real substituído pelo simulacro, transformando-se
em hiper-realidade. E isso não era nenhuma especulação filosófica, mística ou
esotérica: esse “crime” já estaria entre
nós através dos não-acontecimentos, mídia, Las Vegas, Hollywood etc. Toda uma
virtualidade que já molda a realidade do nosso cotidiano.
A pretensão dos
Wachowskis em Matrix, mais tarde
confirmado com o filme Speed Racer
(2008), era justamente construir fábulas dessa destruição do real pela
hiper-realidade – em Matrix, um mundo
virtual que aprisiona corpo e mente da humanidade; e em Speed Racer, herói do mundo da ficção (desenhos animados japoneses)
transposto para a tela em live action
como fosse uma animação 3D, resultando numa explosiva hiper-realidade, quase
uma estética em “realidade aumentada”.
"Speed Racer" (2008) |
Matrix
constrói uma verdadeira semiótica da percepção: por que Neo e toda a humanidade
que restou, escravizada pelas máquinas para suprir de energia todo o sistema,
percebia o seu mundo como “real”? A mesma pergunta poderia ser feita a Truman,
prisioneiro do gigantesco reality show
de Seaheaven.
Semiótica da percepção em Matrix
Na semiótica de
Charles S. Peirce (1839-1914), percepção e a abstração do mundo pelos signos
funcionaria através de uma tricotomia: primeiridade
(o fluxo sinestésico, a percepção direta das qualidades do mundo: cores,
textura, dimensão, escala, tonalidades, forma etc.); segundidade (a criação do signo que nomeia essas percepções:
agradável/desagradável, prazer/dor, perto/longe etc.); e terceiridade (a interpretação do mundo através de justaposições,
metáforas, analogias etc.).
O contraste visual através da fotografia,
matiz e resolução que o filme faz entre o mundo virtual e o “deserto do real” é
essencial para compreendermos esse plano da primeiridade – na Matrix, fica
evidente que a matiz dominante é o verde. O que é um elemento de sinalização
para o espectador (a Matrix é mortal): na psicologia das cores essa cor é
dotada de um simbolismo ambíguo – dependendo do contexto, pode simbolizar
relaxamento, natureza, pureza; mas, por outro lado, perigo, veneno,
contaminação.
Outro detalhe da
fotografia é a “limpeza” das texturas: Morpheus, Trinity, Cypher e toda a trupe
da nave da Resistência, dentro da Matrix, parecem suas versões melhoradas –
pele mais lisa, cabelos mais compostos, o elegante figurino (overcoats pretos
de couro, blasers de bom corte, gravata (verde), óculos escuros, roupa colant
de couro preto).
Nas ruas e
interiores, calçadas, paredes, tetos são cleans. Em nível de segundidade, os
signos são claros: remetem aos cânones da estética do gênero fílmico noir, ciberpunk,
animes japonesas e das HQs Marvel e DC Comics.
Ao contrário, no
“deserto do real”, fora da Matrix, vemos versões visualmente “pioradas” dos
protagonistas na qual a fotografia salienta a textura das roupas e rostos mais
duras e imperfeitas.
O que é a Matrix?
A questão “o que é a
Matrix?” necessariamente passa pela questão que também está em Show de Truman: por que Truman ou a
humanidade em Matrix acreditavam que
o mundo em que viviam era real? Se um dia acordássemos e víssemos um mundo em
estética noir-cyberpunk-HQ e no
espelho olhássemos para uma versão melhorada e ficcional de nós mesmos,
acharíamos tudo muito estranho. Seriam como “anomalias”.
Em Show de Truman, o protagonista
acostumou-se com as anomalias porque, afinal, praticamente nasceu no reality show da cidade-estúdio Seaheaven
– anomalia ótica (o horizonte do mar de Seaheaven parece muito mais próximo do
que o do mundo real); anomalia estética (tudo é clean, em tons pasteis e
superfícies suaves); anomalia narrativa (de repente, alguém fazia um
merchandising diante de Truman) etc.
Em Matrix, a anomalia da primeiridade é um
mundo “real” que parece ser cópia da cópia da imagerie da cultura pop – a Matrix construída pelas máquinas para
os humanos parece um gigantesco museu pulp
fiction, um parque temático da Gotham City das HQs, assim como uma
Disneylândia em estilo underground.
Da cultura pop chega
até à história da arte: a sequência em que vemos Neo/Anderson em seu escritório
de trabalho na Matrix é alusivo aos visual hiper-real dos quadros do pintor
norte-americano Edward Hopper - veja imagens acima.
Aqui chegamos à terceiridade: os humanos aceitam o real
a partir da analogia e justaposição daquele mundo com suas memórias atávicas da
antiga indústria do entretenimento do mundo humano que despareceu. Por isso o
simulacro (cópia da cópia, signo de outro signo) substitui o real: temos,
portanto, o hiper-real.
Mais tarde, Vanilla Sky (2001) exploraria esse
argumento: o protagonista David Aymes (Tom Cruise) vive em um sonho lúcido
construído por uma empresa a partir das lembranças afetivas da cultura pop que
sua mente guardava – capas de discos, vídeo-clips etc.
Dessa maneira, o
principal objetivo dos irmãs Wachowski naquele época foi criar no espectador de
Matrix um nível meta da própria cultura pop das memórias do público – para nós,
a Matrix é, de fato, ficcional porque nos faz lembrar centenas de referencias
dos mundos ficcionais criados pela indústria do entretenimento.
Campos do Jordão: uma Matrix brasileira? |
Narrativa em abismo
Em outras palavras,
os Wachowskis criaram uma espécie de narrativa em abismo: o espectador vê uma
Matrix reconhecendo signos (ou simulacros) da própria Matrix que vive no real
ao consumir a cultura pop.
A emoção e empatia
do público com o drama da Resistência na luta contra as máquinas é tirada da
própria experiência do espectador com o seu mundo atual: já vivemos situações
análogas, quando olhamos para o mundo real e o avaliamos a partir dos signos
que já foram feitos anteriormente desse próprio mundo.
Por exemplo, quando
entramos numa cidade como Campos do Jordão, vemos uma cenografia construída a
partir das imagens publicitárias sobre a imagerie
europeia, e não a partir da Europa real. Assim como numa feira livre vemos uma
maçã tão vermelha e suculenta que achamos que é de plástico. Duvidamos da sua
“realidade” e temos a compulsão de apertá-la para nos certificar. Tomamos a
maçã não a partir dela mesma, mas a partir de imagens já feitas anteriormente
da própria existência da fruta.
Nesse sentido,
Matrix supera as narrativas distópicas como 1984,
Farenheit 451, THX 1138 ou Rollerball. Ao contrário, Matrix é um filme hipo-utópico
– filmes que projetam de forma surrealista e expressionista no futuro
mazelas já existentes no presente.
Os Wachowskis
queriam nos fazer refletir sobre a possibilidade de a Matrix já estar entre nós.
Mais tarde, com o filme Speed Racer,
a dupla de diretores colou finalmente o futuro no presente, a realidade na
ficção: o herói de uma animação japonesa se materializando em um filme no qual
efeitos digitais se fundem com performances em live action.
Ficha Técnica |
Título: Matrix
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Diretor:
Irmãos Wachowski
|
Roteiro: Irmãos Wachowski
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Elenco: Keanu Reeves,
Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving
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Produção: Warner Bros, Village Roadshow Pictures
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Distribuição:
Warner Bros
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Ano: 1999
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País: EUA
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