segunda-feira, março 11, 2024

40 anos de 'Chaves': Commedia Dell'Arte, astrologia e pecados capitais, por Claudio Siqueira


Como dito pelo humilde blogueiro deste Cinegnose, estão fazendo 40 anos da estreia da série mexicana “Chaves” no Brasil, e nada mais justo do que homenagearmos alguns dos comediantes mais queridos da criançada latino-americana. Por incrível que pareça, nem mesmo essa comédia infantil deixa de ter suas eminências pardas ocultas. O Cinegnose vem falar mais um pouquinho sobre El Chavo del 8, a influência da Commedia Dell’Arte na confecção de seus personagens e como cada personagem representa um astro, sendo 7 cada um dos Pecados Capitais.

O seriado Chaves foi exibido de 1971 a 1979 no México e só aportou em terras brasileiras em 1984. Fez tanto sucesso por aqui que chegou a ganhar toda uma linha colecionável e a Globo teve que se render ao sucesso vislumbrado pelo SBT, lançando, em setembro de 1990, a HQ Chaves e Chapolin, pela Editora Globo, que chegou a 32 edições. O sucesso da série foi tanto que, após inúmeras repetições, o SBT lançou uma vinheta de abertura com a música Aí vem o Chaves, primeira faixa do álbum do seriado, produzido por Mário Lúcio de Freitas.



O álbum foi uma versão brasileira do álbum mexicano Así Cantamos y Vacilamos en la Vencidad del Chavo(Assim Cantamos e Vacilamos na Vizinhança do Moleque). Houve também um álbum de figurinhas com o mesmo ilustrador dos quadrinhos e mais dois, um com a caracterização do desenho animado (2006 a 2014), chamado Xavier em Portugal. Chespirito (como era chamado, em comparação a Shakespeare) chegou a lançar sua própria linha de quadrinhos com seus personagens, na publicação Chespirito presenta…, ainda na década de 1970. 

De qualquer forma, Chaves ou Xavier não existem. El Chavo del 8 significa tão somente “O Moleque do 8”, sendo “menino”, niño; garoto, chico e “chaves”, algo similar a “moleque” e também algo de pouco valor, que “não vale nada”, num triplo sentido: Chaves é um moleque de rua, sem nenhum dinheiro e traquinas (“não vale nada”). 

Os Personagens e a Commedia Dell’Arte

Commedia Dell’Arte foi um movimento de teatro itinerante da Itália, comum entre os séculos XVI e XVIII e foi a eminência parda de vários seriados como o Sai de BaixoFriends e o desenho animado Jovens Titãs em Ação



Os personagens seguem o modelo arquetípico dos personagens da Commedia, não no sentido arquetípico “tradicional”, mas no sentido de seguirem os modelos propostos e postulados pela Commedia, muitas vezes mesclando um ou mais arquétipos; outras, dividindo ou “trividindo” ou mesmo multifacetando um mesmo modelo de personagem em vários como convém às obras dramatúrgicas em geral. 

Commedia Dell’Arte foi também uma das influências estéticas do nosso carnaval e os personagens usavam máscaras ou os atores deveriam ter uma rica expressão facial e capacidade de mímica para determinados personagens. 

Os personagens e os 7 Pecados Capitais

E com o Chaves não foi diferente. Seus personagens mesclam alguns da Commedia Dell’Arte com as características de cada um dos 7 Pecados Capitais. Sendo cada Pecado, assim como cada Sacramento, equivalente a um planeta da astrologia, temos ainda mais 3 personagens que representam os três últimos planetas, chamados transpessoais ou transaturninos. Vamos tratar dos astros (já que o sol e a lua não são planetas e Plutão foi destituído do cargo) em sua ordem astronômica a partir do Sol e descartar alguns personagens e os sacramentos, já que eles não condizem com a concepção dos personagens.

Professor Girafales (Sol/Vaidade/Il Dottore)

O namorado de Dona Florinda é também o professor das crianças da vila (ou da vizinhança como se chamam na língua original do seriado) e o quadro esporádico onde aparece lecionando deu origem à Escolinha do Professor Raimundo, de Chico Anysio, e a outras Escolinhas que vieram depois. Girafales, cujo motivo do nome é bem óbvio, já que é o ator e personagem mais alto, é vaidoso e se gaba o tempo todo de seu conhecimento. Sua frase síntese é: “Só uma vez eu errei: quando pensei estar errado.”



Na Astrologia o astro concernente à Vaidade é o Sol. Talvez o personagem mais semelhante a ele na Commedia seja O Doutor (Il Dottore), não por ser um médico charlatão, mas por se gabar de sua intelectualidade.

Quico (Mercúrio/Inveja/Brighella)

O filho de Dona Florinda é o menino “riquinho” da vila, o “dono da bola“, que Chaves tanto almeja. Ele se diverte despertando a Inveja de Chaves e ao mesmo tempo inveja Nhonho e queria ser tão abonado quanto o comilão. O personagem que mais se assemelha a ele é o Brighella. Pouco conhecido mundialmente, ele derivou para o Fígaro, mais conhecido devido a ópera O Barbeiro de Sevilha



Brighella é malandro, sempre faz pouco daqueles que estão abaixo de si na escala social (como Quico faz com Chaves) e é briguento. Quico sempre tira Chaves do sério, mas sempre sai no prejuízo e quando alguém o contraria, recorre ao vitimismo: “Você não vai com a minha cara?”. Sempre dá um jeito de se dar bem e olha pra nós, através do recurso da 4ª parede, rindo malandramente, dada a sua iminente artimanha. Em um dos episódios, sua mãe lhe pergunta, decepcionada: “O que ganhou com isso, Tesouro?” ao que ele responde: “Uma graninha!”, retirando os trocados do bolso. 

Seu planeta é Mercúrio, o regente de Gêmeos e Virgem. Na mitologia grega é o deus Hermes, deus dos viajantes, da medicina, da comunicação e dos ladrões(!). Como já falei em diversos artigos aqui, cada arcano maior do Tarô, caminho da Cabalá e letra do alfabeto hebraico são associados a elementos, astros e signos do zodíaco.

Mercúrio é associado à letra Yod e, segundo Eliphas Levi em Dogma e Ritual da Alta Magia, sua atribuição é “(...) demonstrar a quadratura do círculo.” Por isso Quico está sempre atrás da “bola quadrada”, da mesma forma que os alquimistas buscavam a Pedra Filosofal e os magos de Mago: A Ascensão, a Décima Esfera e ainda falarei desse RPG em um artigo.

Dona Florinda (Vênus/Luxúria/Ill Namorati)

A eterna namorada de Professor Girafales e mãe do enfadonho Quico é dona de um restaurante e por isso a pessoa com melhor condição financeira da vila. Sempre que ela e Girafales se veem pela primeira vez em cada episódio ficam atônitos e, timidamente, ela o convida para entrar e tomar uma chícara de café, ao que ele responde, invariavelmente: “Não seria muito incômodo?” após tirar o chapéu em reverência à amada.



O casal faz alusão aos personagens Innamorati. na Commedia, eles também são exagerados embora sinceros em seu amor e também possuem posição social mais elevada que os demais personagens. Mas, ao contrário do casal da vila, são sempre muito jovens e inexperientes e seu amor é impossível devido à desaprovação dos pais. 

Um dos nomes da personagem na Commedia é Florinda e mesmo o namorado pode, por vezes, se chamar Florindo. As flores são um dos símbolos de Vênus, a deusa do amor na mitologia romana (correlata à Afrodite na grega) e o Pecado concernente a este planeta é a Luxúria. Fala sério! Vocês acham que ela convidava o Professor Girafales apenas pra uma xícara de café?

Jaiminho (Lua/Preguiça/Tartaglia)

O preguiçoso carteiro sempre chegava cansado com sua bicicleta, não por pedalar, mas por carregá-la, já que não sabia andar de bicicleta. Dispensava sua bolsa de cartas em alguma mesa e incitava o destinatário a procurar sua carta no meio de todas as outras. Quando questionado sobre sua conduta, rebatia: “É que eu quero evitar a fadiga…”.



Os personagens que o inspiraram são Tartaglia e Scaramuccia (ou Scaramouche), que embora também fosse um zanni (personagem da plebe), tinha alguns atributos d’O Capitão (Il Capitano) ou o próprio Capitão, não por ser um covarde disfarçado de valentão, mas por contar vantagem em relação à sua terra natal: Tangamandápio, que ele dizia ter uma população quase tão numerosa quanto a de Nova York.



O personagem que mais se assemelha a ele, no entanto, é o Tartaglia. Com espesso bigode e chapéu, podia ter vários ofícios, como oficial de justiça ou tabelião. Seu Pecado é a Preguiça, associada à Lua. A Lua rege o signo de Câncer correlacionado à carta O Carro, no Tarô; no caso, o Carro é representado pela bicicleta de Jaiminho.    

Seu Madruga (Marte/Ira/Pedrolino)

O estressado Seu Madruga está sempre devendo o aluguel para Seu Barriga, agredindo Chaves, beliscando Quico e apanhando de Dona Florinda. Seu personagem talvez seja Pedrolino (Pedrinho em italiano), um zanni, um dos arquétipos servis e, por vezes, não muito inteligente, da Commedia. Ele é astuto no que diz respeito a enrolar o pagamento do aluguel a Seu Barriga, mas ingênuo em relação às artimanhas da filha, Chiquinha, que vez por outra o engana e o tira do sério.



Seu nome no original é o mesmo do ator, Don Ramón e o nome é de origem germânica e significa algo como Guardião do Conselho. Embora não faça parte de nenhum conselho, o nome remete ao planeta Marte, já que a figura do guardião suscita a possibilidade de violência. Seu Pecado é a Ira, pois está sempre bravo com Chaves, Quico, Chiquinha ou com o fato de não ter dinheiro e precisar trabalhar.

Nhonho (Júpiter/Gula/Polichinelo)

O filho gordo do Seu Barriga (cujo nome já enuncia tudo) é guloso e ainda mais mimado por ser (realmente) mais rico do que Quico. Seu personagem mais próximo é o Polichinelo (Pulcinella), de onde, provavelmente, deriva o nome do exercício físico e por ser o mais próximo dos instintos primitivos (fome), além de sua barriga, herdada de seu pai. 



Seu planeta é Júpiter, o regente de Sagitário e corregente de Peixes. Júpiter é expansão, sorte, fortuna e Nhonho é o filho afortunado do dono de todas as casas do cortiço. Seu Pecado é a Gula e a cor de suas roupas também evidencia a relação com o planeta Júpiter.

Seu Barriga (Saturno/Avareza/Pantaleão)

O gordo pai de Nhonho é o dono de todas as casas do cortiço e frequentemente vai até a vila para cobrar os aluguéis, mas sempre é recebido por uma bolada de Chaves. Tanto que uma vez ou outra entra de fininho, colocando sua maleta primeiro, com medo da porrada certeira que vai tomar. Mas isso só não acontece quando Chaves está fora da vila, trabalhando no restaurante de Dona Florinda.



Seu personagem é o avarento Pantaleão, abonado e que despreza os mais pobres. Na Commedia, a jornada dos zanni frequentemente começa incitada pelo Pantaleão, o que ocorre no seriado com Seu Madruga, se desdobrando em peripécias para conseguir dinheiro para pagar o aluguel; ou ao menos para arrumar uma desculpa para dever mais um mês.

Seu Planeta é Saturno, o que fica evidente por sua postura taciturna e seu terno preto e seu Pecado é a Avareza. Se bem que, mesmo Eliphas Levi alterna os pecados da Gula e da Avareza entre Saturno e Júpiter. Sendo Júpiter, a letra correspondente no alfabeto hebraico é o Kaph, que significa “Palma da mão”. Não por acaso se lê a sorte (a fortuna) na palma da mão na Quiromancia. Seu Barriga sempre estende a mão com a palma pra cima ao intimidar seu inquilino caloteiro: “Seu Madruga, pague o aluguel!

Os Transaturninos:
Chaves (Urano/Diógenes de Sinope/Pierrot)

Chaves do 8, o protagonista do seriado que leva seu nome é ingênuo, atrapalhado, simplório e sonhador. Foi abandonado por sua mãe aos 4 anos de idade e foi viver na vila no único lugar que lhe coube: o barril(!).  Como não tem brinquedos, lança mão de todo o tipo de artefato mambembe como uma vassoura, que equilibra com maestria. 

Às vezes, brinca com os brinquedos de Quico, que fica sovinamente extorquindo Chaves, fazendo pouco dele e levando embora a bola quando algo ocorre como não lhe convém. Tanto Quico quanto Chiquinha muitas vezes ludibriam o ingênuo Chaves, que agride Quico, apanha de Seu Madruga e aterroriza Seu Barriga em sua chegada.



Embora se pareça com o Pierrot, dada a sua ingenuidade, seu personagem é inspirado no filósofo grego Diógenes de Sinope, que morava em um barril. Filho do cunhador de moedas, seu pai foi preso por cunhar moedas falsas e Diógenes expulso da cidade. Passou a vagar por Atenas na companhia de cachorros, de onde deriva seu epíteto “Cínico” (kynikós, “o que é relativo a cão”, kynos) que era também o título de sua Escola (o Cinismo), fundada por seu mestre Antístenes, o Cão Original

Antes de chegar a Atenas, Diógenes foi consultar o Oráculo de Delfos e perguntou o que fazer para adquirir reputação, já que estava sem eira e nem beira. Como todo bom oráculo, respondeu o que mais se adequava à sua personalidade: “Descaracterize a moeda vigente. Desfigure sua imagem”. 

Tal qual o Coringa borra os quadros no 1º filme de Batman de 1989, a ideia de desfigurar a imagem da moeda vigente representa a detonação do status quo. As moedas costumam ou costumavam ter um rosto em seu verso, a tradicional “cara” em relação à “coroa”. Essa cara era chamada Efígie e não por acaso o personagem Duas-Caras, também de Batman, possui uma das efígies de sua moeda riscada, já que também satiriza o status quo sendo um ex-advogado criminalista que virou bandido.

Seu Planeta é Urano, o regente de Aquário. Urano possui uma estranha órbita deitada, de modo que seu pólo norte está voltado para fora da galáxia e seu pólo sul, para o centro, em direção ao sol. O número 8 era o número do canal mexicano onde o seriado era inicialmente exibido, mas depois passou a designar a suposta moradia de Chaves, que não existe.



O 8 deitado tal qual a órbita de Urano se torna a lemniscata, símbolo do infinito. O 8 é relativo ao Planeta Mercúrio e à Carta d’O Mago, que, no tarô de Raider-Waite, possui a lemniscata sobre sua cabeça. Chaves também se assemelha em muito com O Louco do Tarô, que em inglês é chamado The FoolO Bobo, já que Chaves é tanto ingênuo quanto o Bufão, o Bobo da Corte (ou, no caso, da Vila). Sua “casa”, o barril, lembra em muito a letra de A Casa, de Vinícius de Morais, que se situa na Rua dos Bobos, nº 0.

Chiquinha (Netuno/Scapino)

A filha traquinas e pirracenta de Seu Madruga é sonsa e escapista e frequentemente faz de bobos seu pai, Chaves, Quico, Nhonho e qualquer um que precise pra conseguir seu intento momentâneo. Se algo a frustra ou se descobrem seus planos, Chiquinha abre o berreiro em seu choro característico. 



Seu Planeta é Netuno, regente de Peixes e, embora seja malandra, ela também é capaz de apaziguar os ânimos, “botar panos quentes” ou “passar pano” e até a dar os conselhos mais salutares, já que Netuno é o planeta do inconsciente.

Seu personagem é Escapino, também um zanni da Commedia que se tornou protagonista da peça de MolièreLes Fourberies de Scapin (As Trapaças de Scapino), que ganhou o título de As Artimanhas de Scapino, de Carlos Drummond de Andrade.

Dona Clotilde, a “Bruxa do 71” (Plutão/Colombina) 

A viúva apaixonada por Seu Madruga tem o apelido nada lisonjeiro de Bruxa do Setenta e Um pela criançada da vila. Dona Clotilde busca seduzir Seu Madruga de todas as formas, tem ciúmes dele, é possessiva com uma relação que não tem mas exerce uma certa autoridade por ser a moradora mais velha da vila. 



Seu personagem mais próximo seria a Colombina, embora esta seja uma jovem na Commedia, é dada a intrigas e fofocas e apaixonada por Arlequim, da mesma forma que Clotilde é por Seu Madruga.

Seu Planeta portanto, é Plutão, o regente de Escorpião, que também é corregido por Marte (Seu Madruga), o que dá a tônica do (quase) casal. Dona Clotilde tenta dominar Seu Madruga, que não se deixa dominar. A dominação é uma característica de Escorpião e seu epíteto “Bruxa” tem muito a ver com o signo. Plutão é Hades na mitologia grega, o regente do submundo, o inferno, e não por acaso o nome de seu gato preto é Satanás.

Claudio Siqueira é Bacharel em Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.  


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