Chegamos a mais um carnaval, a famigerada “Festa da Carne”, embora a
etimologia não seja bem essa. Sagrado para os foliões e profano para os
carolas, as origens de tal festa possuem raízes gnósticas como não poderia deixar de
ser. Se “a voz do povo é a voz de Deus”, no Carnaval não poderia ser diferente;
ainda que esse deus fosse Dionísio. Embora pouco conhecido pela metafísica do
inconsciente coletivo nacional, o maior ritual hedonista brasileiro tem muito a
ver com essa antiga divindade grega, que em Roma atendia por Baco. Duvida?
Basta reparar no gordo Rei Momo que preside essa folia. Sim, senhoras e
senhores! Os arquétipos sempre se repaginam, e o maior ébrio do Olimpo não ia
ficar de fora da Saturnália dos trópicos. O "Cinegnose" disseca a história do carnaval,
sem se esquecer da Sétima Arte, que o retratou com maestria.
O carnaval brasileiro no cinema
Em 1933, A Voz do
Carnaval lançava Carmen Miranda e Oscarito; a primeira, como atriz-cantora
do assim chamado “Ciclo Musicarnavalesco”; o segundo, como um dos mais
antológicos comediantes das chanchadas nacionais. Com direção de Humberto Mauro
e Adhemar Gonzaga, a primeira produção sonora da Cinédia inaugurava, sem saber,
uma safra de filmes do gênero. Por ironia do destino, a novela O Ébrio foi uma de seus maiores
sucessos. Não falei que tinha dedo de Dionísio nisso?
No embalo de A Voz
do Carnaval, Carmem Miranda e Oscarito, já estrelas, despontam em Alô, Alô Carnaval, em 1935. Nessa época,
as marchinhas eram lançadas primeiramente nos filmes, caindo automaticamente no
gosto popular.
Último dia de filmagem de "Alô, Alô, Carnaval". Ao centro, o diretor Adhemar Gonzaga; Carmem Miranda à esquerda e sua irmã, Aurora Miranda, à direita. |
Em 1949, a comédia musical Carnaval no Fogo traz a dupla Grande Otelo e Oscarito, além do
consagrado ator gaúcho José Lewgoy e marca a estreia de Jece Valadão.
Já na década de setenta, o cinema em torno do carnaval já
não apelava apenas para o humor e a imagem estereotipada de um Brasil
paradisíaco. Em 1972, sob a estética do Cinema Novo, Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues, traz Chico Buarque, Nara
Leão e Maria Bethânia como protagonistas e até Elke Maravilha, no papel de uma
atriz francesa. No mesmo ano, Amor, Carnaval e Sonhos, de
Paulo César Saraceni, último filme estrelado pela lendária Leila Diniz.
Como será visto mais adiante, toda a pré-história do
Carnaval trabalha a inversão de papeis sociais. E ainda que desconhecida pelos
produtores nacionais, o inconsciente coletivo não brinca em serviço.
Grécia e Roma – A Saturnália
Começando no dia 17 de dezembro e com o intuito de celebrar o
Solstício de Inverno, os gregos e, posteriormente, os romanos celebravam um
evento que deu origem tanto ao nosso Natal quanto ao Carnaval. Tratava-se da
celebração a Cronos, ou, Saturno, daí o nome do “evento”.
Expulso do Olimpo após ter sido derrotado por Zeus, Cronos
encontrou refúgio no Monte Capitolino ou Capitólio, a mais baixa das Sete
Colinas de Roma e possui dois picos separados por uma depressão. Foi acolhido
por Juno, o deus dúbio das decisões, regente dos inícios e fins, e da região de
Lácio. Seu período de regência foi conhecido como “Idade do Ouro”, devido à
prosperidade que a população alcançou.
Saturno devorando um filho. Tela de Francisco Goya, 1823 |
No
início, as festividades duravam quatro dias, mas Augusto, fundador do Império
Romano decidiu cortar o barato da galera reduzindo a festa para apenas três
dias, para que não comprometesse o andamento da vida política e jurídica da pólis. Calígula – claro – decidiu
ampliar para cinco dias, como é festejado até hoje.
Durante
a Saturnália, que, em sua abertura, contava com banquetes e sacrifícios, a
saudação comum era “Io Saturnalia!” e
os “foliões” da época trocavam presentes como é feito hoje em dia no Natal.
Ninguém trabalhava e os escravos eram soltos, podendo fazer o que bem
entendessem, sendo, inclusive, servidos por seus amos.
Essa
subversão total de valores era tanta que chegava a ser escolhido, a esmo, um
“rei” para essa folia: o Princeps,
que, simbolizando Cronos, ironizava o Princeps
Senatus, uma espécie de Primeiro Ministro do Senado Romano. Vestindo uma
máscara espalhafatosa de cor vermelha, esse personagem da divina comédia social
talvez tenha sido o embrião tanto do Rei
Momo quanto do Arlequim.
Também
uma espécie de carro alegórico percorria as ruas da cidade: tratava-se do Carrum Navalis, onde as pessoas desfilavam seminuas vestindo máscaras e do
qual, segundo alguns deriva a etimologia do termo que dá nome à festa. Pode não
ser verdade, mas é inegável a influência deste aos atuais carros alegóricos que
desfilam com as escolas de samba.
Babilônia – As Saceias
Na
Babilônia, dois procedimentos ritualísticos antagônicos, porém complementares,
fundamentavam as Saceias: um
prisioneiro ou escravo assumia o papel do rei durante alguns dias. Vestia-se de
rei, degustava de suas iguarias e tinha acesso às suas esposas. Ao término do
período era chicoteado e depois enforcado ou mesmo empalado. O rei por sua vez era
encaminhado ao templo de Marduk, que,
na mitologia babilônica, matara Ti’âmat,
tal qual o nosso São Jorge e seu Dragão, como já elucidado neste blog (clique aqui). Lá, era “destituído” do cargo ao perder suas insígnias e
surrado na frente de todos para só então reassumir o trono.
Tal
feito era repetido por Luis IX, rei de França, coroado em 30 de novembro de
1226 com apenas 12 anos de idade devido ao falecimento de seu pai, Luis VIII.
Já adulto, quando se confessava, exigia do padre que o açoitasse com um
azorrague trazido por ele mesmo, não desejando ser tratado por “Sua Majestade”.
A Quaresma e a oficialização do Carnaval
Como todas as adorações pagãs, tais ritos marcavam
passagens tais como os equinócios e solstícios. As saturnálias precediam a
primavera e eram uma maneira do povo inflar-se de esperanças para as colheitas
vindouras. Tais ritualísticas estavam perfeitamente vinculadas aos ciclos naturais
e dificilmente seriam suprimidas por tradições impostas.
Com esse pensamento em mente, a Igreja Católica decidiu
oficializar o Carnaval, alegando que seria oportuno um período de expurgo para
mais tarde a população dedicar-se a um momento de reclusão e consequente
devoção. A partir dessa ideia, surge o Carnem
Levare, a atitude de “suspender ou suprimir a carne”, e tida como
etimologia mais aceita para o nome da festa.
Kemp Zwischen Fasching Und Fasten (A Batalha entre o Carnaval e a Quaresma), 1559 |
Foi então que, em 1091, a Igreja Católica criou a Quaresma, um período de 40 dias entre a Quarta-feira
de Cinzas e o Domingo de Páscoa. Não por acaso, a palavra Páscoa significa
“passagem” e deriva do verbo Hebraico Pasah,
“passar sobre”, já que, segundo o Velho Testamento, Jeová teria passado sobre
os primogênitos egípcios. Também o substantivo Pesach, celebrava a fuga dos hebreus do Egito, relatada no Êxodo.
Tal palavra derivou para o Grego Paskha,
que se tornou Pascha, em Latim.
“Católico”, por sua vez, vem de Katholou,
“universal”, sendo Kata “totalmente”
e Holos, “todo”; logo, “Católico”
significa “universal” e realmente a Igreja universalizou todos os cultos pagãos
à sua imagem e semelhança.
Passeios históricos e etimológicos à parte, do final do
século XI ao século XVII, diversas festividades eram promovidas pelo baixo
clero tais como a Festa dos Loucos, a
Festa do Burro (onde os participantes
imitavam o dito animal) e a Festa dos
Inocentes. Em 1645, mendigos, cozinheiros, jardineiros e leigos se reuniram
em uma igreja franciscana vestindo as roupas do avesso e usando cascas de
laranja como óculos. Sopravam cinza de incenso na cara uns dos outros e
recitavam a liturgia balbuciando-a de forma ininteligível. A Festa dos Loucos
deu origem às Companhias dos Loucos,
que talvez tenham sido o embrião da Commedia
dell’Arte.
A Terça-Feira Gorda
Como todos sabem, o último dia de Carnaval é comemorado
sempre numa terça-feira, um dia antes da Quarta-feira de Cinzas. Tudo começou
com a Terça-feira Gorda.
Vitale Michiel II, dodge
(ou simplesmente presidente) de Veneza, governou o lugar entre 1156 a 1172. Em
1162, o então patriarca da região de Aquileia, Ulrico II, recusou-se a doar a
Dalmácia ao Patriarcado de Grado. Tal concessão havia sido feita pelo papa da
época, Adriano IV. Indignado com a decisão do pontífice, Ulrico II decidiu
invadir a cidade de Grado, mas foi interceptado pelo exército veneziano, sob o
comando de Vitale Michiel II.
Aprisionado, acabou por regressar à
Aquileia após a derrota, tendo sido libertado sob uma condição: pagar um
tributo anual que consistia em um touro, doze porcos e uma determinada
quantidade de pães a serem distribuídos ao povo de Veneza na terça-feira, numa
celebração à vitória sobre a Aquileia. Já o touro tinha sua cabeça cortada e
exibida pelas ruas. A festividade ganhou o nome de Terça-feira Gorda; em
italiano, Giovedi Grasso, que derivou
para o francês, Mardi Gras.
A Comedia Dell’arte, O Carnaval de Veneza e o Mardi Gras
De saco cheio das peças eruditas apresentadas nos teatros
italianos desde o século XI, surgira na Itália um movimento que ficaria
conhecido como Commedia Dell’Arte.
Artistas itinerantes armavam palcos no meio da rua e apresentavam seus
pastiches em meio ao público. Assim como no Carrum Navalis Também aí
reside a origem dos carros alegóricos, pois tais companhias às vezes se
apresentavam em carros ornamentados chamados de trionfi.
Todos os personagens representados (tanto pelas indumentárias
quanto pelos trejeitos dos atores que os encarnavam) aludiam a estereótipos
sociais, como era de se esperar.
Assim, Arlequim, Pierrot, Columbina, Pantaleão, Doutor e até
o estranho e soturno Médico da Peste passaram a ornamentar os bailes e as ruas
durante o Carnaval de Veneza.
Assim como o rei babilônico era destituído do poder por um
curto período de tempo, havia um procedimento semelhante a “malhar o Judas”.
Tratava-se da Queima do Pantaleão. Ao
fim do carnaval, na Quarta-feira de Cinzas, uma réplica do personagem, em
tamanho gigante, era colocada entre duas colunas na Praça de São Marcos. Aos
gritos de “El va! El Carnevale el va!”
(Acabou! O Carnaval acabou!), ateava-se fogo ao boneco enquanto badalavam
sinos. É que o Pantaleão representava o comerciante avarento e o povo
regozijava-se em destruir simbolicamente a figura do burguês.
A Gnaga – o Primeiro Bloco Das Piranhas
Uma das indumentárias da época era a Gnaga. Usada apenas por homens, os trajes femininos, juntamente a
uma máscara que representava uma mulher feia maquiada, a fantasia tinha função
semelhante à de “piranha” nos dias atuais, já que seus usuários também cantavam
homens que não estivessem fantasiados como eles.
Homossexuais também aproveitavam pra “soltar a franga, já
que, embora tolerada, não era polido que a pederastia fosse ostentada em
público. O nome da fantasia vem de gnao,
equivalente ao nosso “miau”; onomatopeia que representa o miado do gato.
O Mattaccino e o Entrudo
Outra figura pouco conhecida desse panteão mambembe era o Mattaccino, também conhecido como Frombalatore. Esse “bloco” consistia em
um grupo de homens que praticava o Gioco
della Ova. Literalmente, o Jogo dos Ovos, pois arremessavam ovos enchidos
com água de flores nas casas das moças que cortejavam.
Não sabemos como tal tradição migrou para as terras lusitanas
ou mesmo se isso chegou a acontecer. O fato é que, de Portugal, semelhante
brincadeira migrou para o Brasil no século XVII: o Entrudo. As populares “Guerras de Água” não eram regadas só à água,
com o perdão da infâmia, mas com lama, laranjas, limões de cheiro, ovos,
farinha de trigo e bolas de cera encharcadas.
A partir da independência do Brasil em 1822, numa tentativa
de romper com o vínculo colonial, a prática começou a ser vista como algo
primitivo e entrou em declínio em 1954 com repressão policial. Intelectuais e
artistas, embasados pela Imprensa começaram a importar o modelo carnavalesco de
Itália e França, dando origem aos moldes que vemos até hoje.
Claudio Siqueira é Estudante de Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como os panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.
Postagens Relacionadas |