domingo, fevereiro 07, 2016

Adeus à carne: uma história gnóstica do Carnaval, por Claudio Siqueira


Chegamos a mais um carnaval, a famigerada “Festa da Carne”, embora a etimologia não seja bem essa. Sagrado para os foliões e profano para os carolas, as origens de tal festa possuem  raízes gnósticas como não poderia deixar de ser. Se “a voz do povo é a voz de Deus”, no Carnaval não poderia ser diferente; ainda que esse deus fosse Dionísio. Embora pouco conhecido pela metafísica do inconsciente coletivo nacional, o maior ritual hedonista brasileiro tem muito a ver com essa antiga divindade grega, que em Roma atendia por Baco. Duvida? Basta reparar no gordo Rei Momo que preside essa folia. Sim, senhoras e senhores! Os arquétipos sempre se repaginam, e o maior ébrio do Olimpo não ia ficar de fora da Saturnália dos trópicos. O "Cinegnose" disseca a história do carnaval, sem se esquecer da Sétima Arte, que o retratou com maestria.

O carnaval brasileiro no cinema


Em 1933, A Voz do Carnaval lançava Carmen Miranda e Oscarito; a primeira, como atriz-cantora do assim chamado “Ciclo Musicarnavalesco”; o segundo, como um dos mais antológicos comediantes das chanchadas nacionais. Com direção de Humberto Mauro e Adhemar Gonzaga, a primeira produção sonora da Cinédia inaugurava, sem saber, uma safra de filmes do gênero. Por ironia do destino, a novela O Ébrio foi uma de seus maiores sucessos. Não falei que tinha dedo de Dionísio nisso?

No embalo de A Voz do Carnaval, Carmem Miranda e Oscarito, já estrelas, despontam em Alô, Alô Carnaval, em 1935. Nessa época, as marchinhas eram lançadas primeiramente nos filmes, caindo automaticamente no gosto popular.

Último dia de filmagem de "Alô, Alô, Carnaval". Ao centro, o diretor Adhemar Gonzaga; Carmem Miranda à esquerda e sua irmã, Aurora Miranda, à direita.

Em 1949, a comédia musical Carnaval no Fogo traz a dupla Grande Otelo e Oscarito, além do consagrado ator gaúcho José Lewgoy e marca a estreia de Jece Valadão.

Já na década de setenta, o cinema em torno do carnaval já não apelava apenas para o humor e a imagem estereotipada de um Brasil paradisíaco. Em 1972, sob a estética do Cinema Novo, Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues, traz Chico Buarque, Nara Leão e Maria Bethânia como protagonistas e até Elke Maravilha, no papel de uma atriz francesa. No mesmo ano, Amor, Carnaval e Sonhos, de Paulo César Saraceni, último filme estrelado pela lendária Leila Diniz.


Como será visto mais adiante, toda a pré-história do Carnaval trabalha a inversão de papeis sociais. E ainda que desconhecida pelos produtores nacionais, o inconsciente coletivo não brinca em serviço.


Grécia e Roma – A Saturnália


Começando no dia 17 de dezembro e com o intuito de celebrar o Solstício de Inverno, os gregos e, posteriormente, os romanos celebravam um evento que deu origem tanto ao nosso Natal quanto ao Carnaval. Tratava-se da celebração a Cronos, ou, Saturno, daí o nome do “evento”.

Expulso do Olimpo após ter sido derrotado por Zeus, Cronos encontrou refúgio no Monte Capitolino ou Capitólio, a mais baixa das Sete Colinas de Roma e possui dois picos separados por uma depressão. Foi acolhido por Juno, o deus dúbio das decisões, regente dos inícios e fins, e da região de Lácio. Seu período de regência foi conhecido como “Idade do Ouro”, devido à prosperidade que a população alcançou.

Saturno devorando um filho.
Tela de Francisco Goya, 1823
         Cronos deu continuidade à obra do deus ensinando a agricultura aos homens. Lembremos que Saturno é o regente de Capricórnio, signo da perseverança e do elemento Terra, assim como Touro (o animal que puxa os arados) e Virgem, o que separa o joio do trigo e semeia as plantações.

No início, as festividades duravam quatro dias, mas Augusto, fundador do Império Romano decidiu cortar o barato da galera reduzindo a festa para apenas três dias, para que não comprometesse o andamento da vida política e jurídica da pólis. Calígula – claro – decidiu ampliar para cinco dias, como é festejado até hoje.

Durante a Saturnália, que, em sua abertura, contava com banquetes e sacrifícios, a saudação comum era “Io Saturnalia!” e os “foliões” da época trocavam presentes como é feito hoje em dia no Natal. Ninguém trabalhava e os escravos eram soltos, podendo fazer o que bem entendessem, sendo, inclusive, servidos por seus amos.

Essa subversão total de valores era tanta que chegava a ser escolhido, a esmo, um “rei” para essa folia: o Princeps, que, simbolizando Cronos, ironizava o Princeps Senatus, uma espécie de Primeiro Ministro do Senado Romano. Vestindo uma máscara espalhafatosa de cor vermelha, esse personagem da divina comédia social talvez tenha sido o embrião tanto do Rei Momo quanto do Arlequim.


Também uma espécie de carro alegórico percorria as ruas da cidade: tratava-se do Carrum Navalis, onde as pessoas desfilavam seminuas vestindo máscaras e do qual, segundo alguns deriva a etimologia do termo que dá nome à festa. Pode não ser verdade, mas é inegável a influência deste aos atuais carros alegóricos que desfilam com as escolas de samba.

Babilônia – As Saceias


Na Babilônia, dois procedimentos ritualísticos antagônicos, porém complementares, fundamentavam as Saceias: um prisioneiro ou escravo assumia o papel do rei durante alguns dias. Vestia-se de rei, degustava de suas iguarias e tinha acesso às suas esposas. Ao término do período era chicoteado e depois enforcado ou mesmo empalado. O rei por sua vez era encaminhado ao templo de Marduk, que, na mitologia babilônica, matara Ti’âmat, tal qual o nosso São Jorge e seu Dragão, como já elucidado neste blog (clique aqui). Lá, era “destituído” do cargo ao perder suas insígnias e surrado na frente de todos para só então reassumir o trono.

Tal feito era repetido por Luis IX, rei de França, coroado em 30 de novembro de 1226 com apenas 12 anos de idade devido ao falecimento de seu pai, Luis VIII. Já adulto, quando se confessava, exigia do padre que o açoitasse com um azorrague trazido por ele mesmo, não desejando ser tratado por “Sua Majestade”.

A Quaresma e a oficialização do Carnaval


Como todas as adorações pagãs, tais ritos marcavam passagens tais como os equinócios e solstícios. As saturnálias precediam a primavera e eram uma maneira do povo inflar-se de esperanças para as colheitas vindouras. Tais ritualísticas estavam perfeitamente vinculadas aos ciclos naturais e dificilmente seriam suprimidas por tradições impostas.

               Com esse pensamento em mente, a Igreja Católica decidiu oficializar o Carnaval, alegando que seria oportuno um período de expurgo para mais tarde a população dedicar-se a um momento de reclusão e consequente devoção. A partir dessa ideia, surge o Carnem Levare, a atitude de “suspender ou suprimir a carne”, e tida como etimologia mais aceita para o nome da festa.


Kemp Zwischen Fasching Und Fasten (A Batalha entre o Carnaval e a Quaresma), 1559

Foi então que, em 1091, a Igreja Católica criou a Quaresma, um período de 40 dias entre a Quarta-feira de Cinzas e o Domingo de Páscoa. Não por acaso, a palavra Páscoa significa “passagem” e deriva do verbo Hebraico Pasah, “passar sobre”, já que, segundo o Velho Testamento, Jeová teria passado sobre os primogênitos egípcios. Também o substantivo Pesach, celebrava a fuga dos hebreus do Egito, relatada no Êxodo. Tal palavra derivou para o Grego Paskha, que se tornou Pascha, em Latim. “Católico”, por sua vez, vem de Katholou, “universal”, sendo Kata “totalmente” e Holos, “todo”; logo, “Católico” significa “universal” e realmente a Igreja universalizou todos os cultos pagãos à sua imagem e semelhança.

Passeios históricos e etimológicos à parte, do final do século XI ao século XVII, diversas festividades eram promovidas pelo baixo clero tais como a Festa dos Loucos, a Festa do Burro (onde os participantes imitavam o dito animal) e a Festa dos Inocentes. Em 1645, mendigos, cozinheiros, jardineiros e leigos se reuniram em uma igreja franciscana vestindo as roupas do avesso e usando cascas de laranja como óculos. Sopravam cinza de incenso na cara uns dos outros e recitavam a liturgia balbuciando-a de forma ininteligível. A Festa dos Loucos deu origem às Companhias dos Loucos, que talvez tenham sido o embrião da Commedia dell’Arte.

A Terça-Feira Gorda


Como todos sabem, o último dia de Carnaval é comemorado sempre numa terça-feira, um dia antes da Quarta-feira de Cinzas. Tudo começou com a Terça-feira Gorda.

Vitale Michiel II, dodge (ou simplesmente presidente) de Veneza, governou o lugar entre 1156 a 1172. Em 1162, o então patriarca da região de Aquileia, Ulrico II, recusou-se a doar a Dalmácia ao Patriarcado de Grado. Tal concessão havia sido feita pelo papa da época, Adriano IV. Indignado com a decisão do pontífice, Ulrico II decidiu invadir a cidade de Grado, mas foi interceptado pelo exército veneziano, sob o comando de Vitale Michiel II.

Aprisionado, acabou por regressar à Aquileia após a derrota, tendo sido libertado sob uma condição: pagar um tributo anual que consistia em um touro, doze porcos e uma determinada quantidade de pães a serem distribuídos ao povo de Veneza na terça-feira, numa celebração à vitória sobre a Aquileia. Já o touro tinha sua cabeça cortada e exibida pelas ruas. A festividade ganhou o nome de Terça-feira Gorda; em italiano, Giovedi Grasso, que derivou para o francês, Mardi Gras.

A Comedia Dell’arte, O Carnaval de Veneza e o Mardi Gras


De saco cheio das peças eruditas apresentadas nos teatros italianos desde o século XI, surgira na Itália um movimento que ficaria conhecido como Commedia Dell’Arte. Artistas itinerantes armavam palcos no meio da rua e apresentavam seus pastiches em meio ao público. Assim como no Carrum Navalis Também aí reside a origem dos carros alegóricos, pois tais companhias às vezes se apresentavam em carros ornamentados chamados de trionfi.


Todos os personagens representados (tanto pelas indumentárias quanto pelos trejeitos dos atores que os encarnavam) aludiam a estereótipos sociais, como era de se esperar.

Assim, Arlequim, Pierrot, Columbina, Pantaleão, Doutor e até o estranho e soturno Médico da Peste passaram a ornamentar os bailes e as ruas durante o Carnaval de Veneza.

Assim como o rei babilônico era destituído do poder por um curto período de tempo, havia um procedimento semelhante a “malhar o Judas”. Tratava-se da Queima do Pantaleão. Ao fim do carnaval, na Quarta-feira de Cinzas, uma réplica do personagem, em tamanho gigante, era colocada entre duas colunas na Praça de São Marcos. Aos gritos de “El va! El Carnevale el va!” (Acabou! O Carnaval acabou!), ateava-se fogo ao boneco enquanto badalavam sinos. É que o Pantaleão representava o comerciante avarento e o povo regozijava-se em destruir simbolicamente a figura do burguês.

A Gnaga – o Primeiro Bloco Das Piranhas


Uma das indumentárias da época era a Gnaga. Usada apenas por homens, os trajes femininos, juntamente a uma máscara que representava uma mulher feia maquiada, a fantasia tinha função semelhante à de “piranha” nos dias atuais, já que seus usuários também cantavam homens que não estivessem fantasiados como eles.


Homossexuais também aproveitavam pra “soltar a franga, já que, embora tolerada, não era polido que a pederastia fosse ostentada em público. O nome da fantasia vem de gnao, equivalente ao nosso “miau”; onomatopeia que representa o miado do gato.

O Mattaccino e o Entrudo 


Outra figura pouco conhecida desse panteão mambembe era o Mattaccino, também conhecido como Frombalatore. Esse “bloco” consistia em um grupo de homens que praticava o Gioco della Ova. Literalmente, o Jogo dos Ovos, pois arremessavam ovos enchidos com água de flores nas casas das moças que cortejavam.

Não sabemos como tal tradição migrou para as terras lusitanas ou mesmo se isso chegou a acontecer. O fato é que, de Portugal, semelhante brincadeira migrou para o Brasil no século XVII: o Entrudo. As populares “Guerras de Água” não eram regadas só à água, com o perdão da infâmia, mas com lama, laranjas, limões de cheiro, ovos, farinha de trigo e bolas de cera encharcadas.

A partir da independência do Brasil em 1822, numa tentativa de romper com o vínculo colonial, a prática começou a ser vista como algo primitivo e entrou em declínio em 1954 com repressão policial. Intelectuais e artistas, embasados pela Imprensa começaram a importar o modelo carnavalesco de Itália e França, dando origem aos moldes que vemos até hoje.
  
Claudio Siqueira é Estudante de Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como os panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.

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