Mestres do Universo: Salvando Eternia, a continuação do antigo desenho que animou a infância dos anos 1980, deu o que falar na primeira temporada e angariou reclamações. Ante a iminente segunda temporada, o Cinegnose vem mostrar a principal eminência parda por trás da animação, independentemente da original ou atual: Os chamados Caminho da Mão Direita e Caminho da Mão Esquerda – Cabalá Hermética, esoterismo e Tarô, muito além do que as lições de moral dadas ao final por personagens loiros apolíneos.
A maioria desses desenhos dos anos 1980 era criada por empresas de action figures, carinhosamente apelidadas por nós brasileiros de “bonequinhos”. Diz-se comumente que o intuito dessas criações era única e exclusivamente “vender bonequinho”, mas o intuito de tudo no sistema capitalista é a venda e o lucro.
Mas seria simplório dizer que seja apenas essa a intenção. Ao menos, não podemos negligenciar o trabalho dos escritores e roteiristas que se esmeraram em criar excelentes narrativas para servir de lastro e pano de fundo. Afinal, nem compramos muitos desses bonecos mas nos divertimos com esses desenhos (e quadrinhos).
Dizer que se gosta de He-Man costuma despertar o escárnio como assumir que curte Legião Urbana ou Paulo Coelho, mas tanto Mestres do Universo (o nome original da animação oitentista) quanto She-Ra: A Princesa do Poder (porque ambos são uma única história) têm um subtexto interessante além de apenas dois loiros apolíneos dando lições de moral no fim do desenho.
Enquanto Eternia era governada por um regime monarquista justo e honesto, algo realmente platônico e romântico, Eterea era dominada pela Horda, que explorava e vilipendiava os camponeses e as populações ribeirinhas... algo muito próximo do que vivemos hoje. Adora (She-Ra) foi criada para reprimir o povo e, quando percebe o que está fazendo e desperta para o seu destino, abandona a mordomia no reino do mal e vai curtir um hakuna matata com a “turma do gueto”.
Masters of the Universe Vol 2 #1 (2013) - DC Comics
O episódio She-Ra: O Segredo da Espada IV - Reencontros narra, enfim, a história, casando as duas sagas e contando a origem dos dois irmãos. Durante uma batalha entre a Horda, a estranha força militar mágico-mística (repararam a semelhança com o nazismo?) e as forças de Eternia, Hordak entrou no quarto dos principezinhos mas foi surpreendido por Mentor. “Deu o pinote” pela janela, levando apenas uma das crianças e escafedeu-se com a maior parte de sua tropa para Etérea. O restante que ficou pra trás se tornou o séquito de Esqueleto, que até então era um mero lacaio de Hordak, embora poderosíssimo feiticeiro.
O Caminho da Mão Direita e o Caminho da Mão Esquerda
Quem não é versado nas picaretagens esquisotéricas nunca ouviu falar dos Caminhos da Mão Direita e Esquerda. O primeiro, o da Espada Flamejante (Netzach Gladius), representado pela espada de He-man e o segundo, o da Serpente da Sabedoria (Esqueleto e sua trupe moravam na Montanha da Serpente). No episódio 72 da 2ª temporada, O Mistério dos Livros, Esqueleto dá um esporro em Homem-Fera: "Livros são os verdadeiros tesouros do mundo!". O único conselho do desenho que eu não esqueci foi o do Esqueleto.
Batros e a biblioteca de Eternia surrupiada |
Todas ou quase todas as ordens esotéricas têm como base de seus estudos e hierarquia dos graus que as compõem a Cabalá (‘Etz Chayim). E me reservo o direito de escrever “Cabalá” em oxítona pois traduz melhor sua pronúncia do que a versão oficializada no Brasil, “Cabala”.
A Descida da Força
A ideia de Mão Direita e Mão Esquerda vem do Kaulācāra Tantra (Tantra da Mão Direita) e do VāmācāraTantra (Tantra da Mão Esquerda) e na Cabalá diz respeito ao fluxo que percorre a Árvore da Vida (outra forma como a Cabalá é chamada). Por “fluxo”, me refiro a como a “força divina” percorre da primeira sephirah (Kether) à décima (Malkuth).
A tal força divina ou força de criação advém de antes de Kether, dos Três Véus da Existência Negativa: Ain, Ain Soph e Ain Soph Aur. Kether é a primeira manifestação, assim como Chochmah, a 2ª sephirah, ainda sem forma. A forma manifesta só começa em Binah, a 3ª sephirah. No diagrama da Árvore da Vida, essa emanação se dá de uma sephirah para a outra, na ordem crescente dos números, passando por apenas 8 dos 22 caminhos. A esse trajeto, dá-se o nome de A Descida da Força.
Uma das teorias é de que a árvore presente no Jardim do Éden é uma representação mítica da Cabalá. “E no meio do jardim estavam a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal” – Gênesis 2:9. O “fruto proibido” seria, na verdade, a 6ª sephirah, Tiphareth, a mediadora entre o macrocosmo e o microcosmo; também o receptáculo do ego. Ao comerem o fruto proibido, Adão e Eva se reconheceram lacanianamente cada um como um “eu” em relação ao todo e foram “expulsos do paraíso”.
Árvore da Morte
Por outro lado, notemos que o versículo 9 cita duas árvores: a da Vida e a do Conhecimento. Da mesma forma que temos a Árvore da Vida, há também a Árvore da Morte. No lugar das sephiroth (plural de sephirah) da Árvore da Vida, há as qliphoth (plural de qliphah, que significa “casca”) da Árvore da Morte. No lugar dos 22 Caminhos de Thoth, há os 22 Túneis de Seth.
Em hebraico, a palavra “Verdade” é Emét (אמת) (Aleph, Mem e Tav). Essa palavra era escrita na testa dos golens. Cada letra hebraica, hermeticamente falando, diz respeito a um elemento (com exceção da Terra), um astro da Astrologia Tradicional e um signo. As três letras-mãe, Aleph, Mem e Shin, dizem respeito aos elementos Ar, Água e Fogo, respectivamente. Apagando-se o Aleph, o golem perdia o Ar, sopro divino de vida e, não por acaso, o vilão Golem, da série inglesa Sherlock mata através de asfixia.
Apagando-se a letra Aleph, a palavra Emét se converte em Mét מת (Morto). A Árvore da Morte é também aÁrvore do Conhecimento e por isso a Serpente é chamada A Serpente da Sabedoria, embora o Caminho da Serpente não passe necessariamente pela Árvore da Morte, mas também pela da Vida, pelos 22 caminhos da Cabalá.
Também em Gênesis 2:16-17, temos: “E o senhor Deus ordenou ao homem: “Coma livremente de qualquer árvore do jardim, (...) mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente morrerá.”.
“Agora o Homem se tornou como um de nós, conhecendo o bem e o mal. Não devemos, pois, permitir que também tome do fruto da Árvore da Vida e o coma, e viva para sempre.” – Gênesis 3:22, mais uma vez corroborando para que o fruto comido tenha sido o da Árvore da Morte, não da Vida.
Significado do nome de Adam
Adam, o príncipe, é herdeiro de uma tradição e receptáculo da Descida da Força, o que fica claro em sua célebre frase: “Eu tenho a Força!”. Quando Adam (Aleph, Daleth, Mem, ,אדם “Homem” em hebraico) recebe a Descida da Força se torna Ele, o Homem! A palavra ʼādām também significa “Ser humano”, “Indivíduo”, “Alguém”, “Humanidade”, “Gente” e também “Quem” ou “Aquele que” – He-Man.
Também בני איש (ḇə·nê-’îš) significa “plebeu”, enquanto בני אדם (ḇə·nê-ʼādām), nobre. Adam é o príncipe de Eternia. Na Babilônia, “Adam” significa “Um número de homens” ou “Comunidade”, o que fica claro desde a 1ª temporada da nova série, onde vários já foram avatares da Força. Na série original, o símbolo no peito de He-Man é uma cruz templária.
Adam, Feiticeira e os "They-Men" antecessores |
As correlações com o Tarô
Tanto Adam quanto sua irmã gêmea Adora erguem suas espadas para servirem de para-raio da Força e encarnar seus respectivos avatares. O gesto de erguer a espada ao céu torna ambos muito próximos da figura d’O Mago do Tarô de Raider-Waite.
O Mago, no tarô, equivale ao planeta Mercúrio, que rege os signos de Gêmeos e Virgem. Os gêmeos são representados por Adam e Adora. Virgem no tarô é o Eremita e a letra hebraica Yod, o “Dedo de Deus”, cuja atribuição, segundo Eliphas Levi em Dogma e Ritual da Alta Magia é “Demonstrar a quadratura do Círculo.”.
Gorpo possui um círculo estampado em sua roupa e frequentemente aparece com o dedo indicador levantado, como a imagem de São Tomé, na Santa Ceia de Da Vinci. No quadro, cada apóstolo representa um signo do zodíaco e Tomé é o de Virgem, mas isso é assunto pra outro artigo.
Gorpo pode muito bem significar O Mago. Em um determinado episódio, Hordak tenta ler sua mente através de uma máquina e percebe que sua linha de raciocínio é incognoscível e se dá na forma de uma lemniscata (o símbolo do infinito) e está presente acima da cabeça d’O Mago, também no Tarô de Raider-Waite.
A mente ilegível de Gorpo |
Ao receber a Descida da Força, Adam, agora transformado em He-Man, aponta a espada para Pacato, dispersando o excesso de energia no animal para transformá-lo no Gato Guerreiro. A Força no Tarô é representada pela figura de uma mulher domando um leão e, no Tarô de Raider-Waite, também possui uma lemniscata sobre a cabeça. Embora seja um tigre, Pacato/Gato Guerreiro representa A Força. She-ra faz o mesmo procedimento com um cavalo, que se torna um unicórnio-pégaso, mas falaremos disso mais adiante.
She-Ra e Ventania
She-Ra é um caso curioso, pois sua espada possui uma pedra. No episódio A Pedra da Espada, a pedra é quebrada e Adora não pode mais se transformar e recorre aos elementais do Fogo para que a consertem.
A espada é um símbolo fálico e, no caso de Adora, possui um elemento extra que representa um traço feminino: a pedra representa o clitóris. A Força que ambos os irmãos encarnam não é necessariamente a força física, mas a Libido ou o Orgone reichiano, tanto que, no Tarô de Thoth, A Força se chama A Luxúria ou O Tesão, dependendo da tradução (The Lust, no original).
Seu codinome, She-Ra, “Ela-Rá” , diz muito sobre a personagem. Rá é um deus egípcio que já teve vários nomes como Amon-Ra, Atum-Ra, Ra-Horakhty, entre outros e representa o Sol, da mesma forma que Hórus e até Sobek, dependendo da região do Egito antigo.
Sendo o Sol um arquétipo masculino, She-Ra é uma mulher Sol, uma mulher empoderada, com características ígneas. A personagem Heloísa, vivida por Cláudia Abreu em Anos Rebeldes tem esse nome também por isso, sendo Heloísa uma variação de Hélio, Sol em grego. “Rá!” é a exclamação que Atum faz estendendo a mão como no sinal de “Pare!” ao perceber-se único e individual em relação ao resto do mundo e, não por acaso, Rita Lee repetia o gesto exclamando “Rá!” em seus shows.
O Sol é o regente do signo de Leão, o mais egocêntrico e, na Cabalá Hermética, diz respeito à 6ª sephirah, Tiphareth. Se colocarmos o diagrama da Árvore da Vida sobre uma ilustração do corpo humano, veremos que Tiphareth se situa exatamente na região do Plexo Solar, onde se situa o Ego, tanto que, ao nos referirmos a nós mesmos “Eu?”, apontamos para o peito e não para nosso rosto.
Adora, ao se transformar, tem a figura da lemniscata também sobre sua cabeça e redireciona o excesso de energia para um cavalo, que se torna um unicórnio-pégaso. Embora sejam criaturas diferentes, a união de ambos, mais suas cores, dizem muito sobre ele.
O Pégaso é o cavalo alado da mitologia grega que serve de montaria ao herói Belerofonte para que mate o monstro Quimera e esse é um dos mitos que serve de eminência parda para o nosso São Jorge. Já o Unicórnio está presente em várias mitologias e somente uma mulher com pureza d’alma poderia se aproximar dele, o que diz muito sobre Adora.
Adora significa “a que honra a Deus por meio de devoção”, o que fica claro em seu brado: “Pela honra de Grayskull!” Ventania tem as cores do arco-íris. Em A Cabala Mística, Dion Fortune relata que o arco-íris é um halo em torno da 9ª sephirah, Yesod, chamado Qesheth. Sendo a união das letras ק Qoph, ש Shin e ת Tav, as 3 equivalem aos 3 caminhos partindo da 10ª sephirah, Malkuth e envolvendo Yesod. Yesod diz respeito à Lua, um arquétipo feminino. Sei que é o mote de outra franquia, cinegnósticos, mas, que a Força esteja com vocês!
Claudio Siqueira é Bacharel em Jornalismo, escritor, poeta, pesquisador de Etimologia, Astrologia e Religião Comparada. Considera os personagens de quadrinhos, games e cartoons como panteões atuais; ou ao menos arquétipos repaginados.