sábado, janeiro 06, 2024

Culpa e fúria nos 40 anos da série 'Chaves' no Brasil



Está fazendo 40 anos da estreia da série mexicana “Chaves” (El Chavo Del Ocho) aqui no Brasil Criado por Roberto Gómez Bolaños, falecido em 2014, era apelidado de Chespirito - “Pequeno Shakespeare”. Mas ele sempre esteve muito mais próximo de Stephen King e do escritor francês Camus. Se King dizia que o inferno era a repetição e Camus via no homem moderno atualização do mito de Sísifo, Bolaños vai mixar esses insights em uma pequena vila de pobres e remediados em algum lugar no Distrito Federal do México. Uma galeria de personagens que parecem condenados a repetir seus pecados na eternidade, assim como Sísifo rolava uma pedra montanha acima numa tragédia sem fim. Mas se fosse apenas isso, “Chaves” não seria tão cultuado por tantas gerações. Há algo mais: se por um lado a série revela um sentido auto moralizante onde cada personagem repete "ad aeternum" seus pecados mortais, do outro ninguém demonstra o menor respeito pela Ordem, seja a de Deus ou a do Diabo. A receita de um cult: a ambígua da mistura da culpa com a fúria.

Foi durante mais uma reprise de um episódio da série Chaves em novembro de 2014 no SBT que foi anunciada a morte do ator Roberto Gómez Bolaños, criador e protagonista da série humorística mexicana. De tanto a emissora de Silvio Santos reprisar e explorar a série como uma espécie de tapa-buracos na  programação por décadas, era estatisticamente provável que a morte de seu criador fosse anunciada no meio de mais um episódio. 

Pelo menos três gerações se divertiram com uma produção dos anos 1970 da Televisa com explícita falta de recurso e com um humor hoje considerado politicamente incorreto – por exemplo, professor Girafales fumava charuto em uma sala de aula de crianças e os personagens da pequena vila se esbofeteavam com tal frequência que um dos episódios chegou a ter a exibição vetada.

     Ator, escritor, diretor e roteirista Bolaños era apelidado de “Chespirito” ou “Pequeno Shakespeare”. Mas as aventuras e desventuras daquela pequena vila da série Chaves (El Chavo Del Ocho, 1972-92), localizada em algum lugar do Distrito Federal do México, parecem muito mais com uma versão latina da interpretação que o escritor francês Camus fez do mito grego de Sísifo. Assim como o personagem condenado a repetir sempre a mesma tarefa de empurrar uma pedra até o topo de uma montanha, para rolar abaixo e recomeçar tudo do zero, Chespirito criou uma visão do cotidiano de personagens que parecem estar também condenados ao tormento do eterno retorno.



Chaves é um microcosmo do Inferno?

Como bem observou Ademir Luiz em Pecados, Demônios e Tentações em Chaves, Bolaños teria criado uma sutil representação do inferno onde cada um dos personagens estaria condenado a repetir na eternidade seus pecados em um ambiente claustrofóbico. Em Chaves o inferno não é o outro, mas a repetição, como diria o mestre do horror Stephen King.

Mas ao mesmo tempo, Chaves se filia a um tipo de humor esquecido pelas décadas posteriores: o non sense e o humor negro pelos perdedores e inadaptados ao sistema social, a metéria-prima do chamado “cinema slapstick” da década de 1920 dos EUA. Não é à toa que Bolaños começou com pequenos esquetes com paródias de Chaplin e O Gordo e o Magro em Los Supergenios de la Mesa Cuadrada (1968-70).

Essencialmente é um tipo de humor anárquico onde nada fica de pé: a autoridade, espaços, papéis e a própria linguagem são subvertidos para tudo terminar em guerra de tortas jogadas na cara uns dos outros. No caso de Chaves, tudo terminava em tabefes, pauladas, escorregões e grandes acidentes.

     Se tudo isso for verdade, teríamos em Chaves a principal qualidade que o fez se tornar um programa de TV cultuado por gerações: a ambiguidade – se por um lado a série revela um sentido auto moralizante onde cada personagem repete ad aeternum seus pecados capitais, do outro ninguém demonstra o menor respeito pela Ordem, seja de Deus ou do Diabo: invariavelmente quando o Seu Barriga vem cobrar os aluguéis ele é atingido por alguma coisa. Ou quando Dona Florinda diz que somente com estudo poderão ficar igual ao seu amado, o Professor Girafales, as crianças imediatamente fecham os livros que estavam lendo.

Fenômeno cult, a ambiguidade é que faz os espectadores experimentarem o estranhamento de ao mesmo tempo terem a sensação de estar assistindo a um programa de humor aparentemente tosco, leve e ingênuo, mas também a suspeita de que poderia haver algum sentido ou simbolismo mais profundo ou até mesmo subliminar. 



Não é também à toa que por isso Chaves acabou proporcionando uma série de lendas urbanas como, por exemplo, os supostos simbolismos subliminares iluminatis, nazistas ou antissionistas inseridos em cenários e linhas de diálogo ou interpretações de que na verdade Dona Florinda, Seu Madruga, Chaves etc. já estariam mortos e a vila seria um pequeno purgatório onde viveriam o inferno da repetição.     

Moralização e anarquia, culpa e fúria parecem ser os polos contraditórios que levaram a série Chaves a essa condição atemporal e universal. Vamos aprofundar cada um deles.

Culpa: os pecados capitais

 Chaves é o moleque que está sempre faminto. Sua preferência pelo sanduíche de presunto lida com esse simbolismo do porco do excesso/opulência e sujeira/teimosia. Os partidários da tese de que a vila é um purgatório pós vida argumentam que Chaves foi glutão, e agora é condenado à fome.

Seu Madruga seria consumido pela preguiça. Notório pelo trabalho que tem em continuar sem trabalhar e fugir constantemente das cobranças de aluguel do Seu Barriga. “Não existe trabalho ruim. Ruim é ter que trabalhar”, diz melancolicamente. Mas ao mesmo tempo tem arroubos moralizantes como “A virtude do bem viver está nos princípios morais”.

A ganância em cobrir diariamente o aluguel mensal está evidente no Seu Barriga. Sempre vítima dos golpes de Chaves, armadilhas, acidentes e desventuras todas as vezes em que se atreve a entrar na vila com sua indefectível pasta de documentos.

Já o núcleo formado por Quico, Dona Florinda e Professor Girafales estão dominados pelos pecados da luxúria, inveja e orgulho. Representantes de uma classe média que não quer se confundir com os pobres (seja pela cultura livresca ou pela posse de mercadorias), Quico acalenta o orgulho (ele tem os melhores brinquedos para não se confundir com a “gentalha”), mas em muitos momentos inveja os pobres vizinhos que conseguem ser feliz com seus surrados brinquedos.



Enquanto isso, Professor Girafales e Dona Florinda se consomem no desejo nunca satisfeito. Os teóricos do purgatório falam que eles teriam sido libertinos em vida, e agora são condenados à abstinência sexual por toda eternidade: seus encontros nunca se consumam. E para piorar tomam infindáveis xícaras de café, um estimulante que aguça ainda mais o sofrimento da mente que arde de desejo e o corpo que não quer acompanhar.

A vaidade é o pecado do qual padece a Dona Clotilde, a “bruxa do 71”, cujo gato de estimação chamava-se “Satanás” (visto somente em um dos devaneios delirantes de Chaves), para fazer a delícia dos teóricos da conspiração. Personagem ironicamente feito por uma ex-miss, a espanhola Angelina Férnandez, com sua peruca azul e vestido longo.

Enquanto isso, Chiquinha padece da ira com seus chiliques e choros compulsivos ao ter consciência da sua impotência. Intolerante e raivosa, atropela pés e brinquedos com seu triciclo: uma alma de pit bull encerrada eternamente em um corpo franzino de criança como punição purgatorial.

Fúria: a linguagem da desordem

          Há em Chaves uma ordem social marcada por ódios, perfídias, ressentimentos, orgulhos e desdém que circula de um personagem para outro. São como espelhos que refletem o que cada um não quer ser, mas que, no entanto, são: pobres, incultos e com poucas possibilidades de reverter o destino. Os adultos têm condutas pré-fixadas em estereótipos sociais: a autoritária dona de casa, a velha fofoqueira, o professor vaidoso, o bêbado preguiçoso etc.



Chaves é o personagem que quebra essa continuidade de condutas pré-fixadas, provocando desordem nessa monstruosa cadeia de heranças. Como ele faz isso? Ele não é um menino rebelde, nem ressentido e tampouco um idiota (embora muitas vezes pareça). A desordem que Chaves detona é sutil, através da linguagem.

Chaves lê mal e sempre tem problemas com seus livros de História e contos. Isso porque ele tem uma compreensão literal das palavras, provocando uma interrupção nos discursos dos outros, obrigando-os a recomeçar. Chaves desarma qualquer tentativa de racionalidade que encontra pela frente.

Por exemplo, durante uma aula de História o Professor Girafales pergunta a Chaves o que os Astecas tiveram que fazer após os espanhóis se apropriarem de suas terras. Com entusiasmo, Chaves pega seu livro e lê: “Tiveram que pegar bruto!”. Surpreendido e furioso, Girafales corrige soletrando as palavras: “Tiveram que pagar tri-bu-to”.

Os trocadilhos involuntários feitos a partir da compreensão literal da linguagem faz Chaves involuntariamente (ou “sem querer querendo”, como dizia, como fosse um chiste freudiano) desmascarar o caráter arbitrário das palavras. 

Chaves tinha a habilidade involuntária de sempre colocar em suspenso o sentido da comunicação, criando situações de onde só se pode fugir por meio de gritos, cacetadas ou pelo absurdo. O que produz violência e o célebre bordão: “ninguém tem paciência comigo...”.

Com isso Bolaños paga tributo às gags anárquicas do humor slapstick de O Gordo e o Magro e Os Três Patetas: como Sísifos modernos, seus personagens estão condenados a rolar eternamente a pedra de seus pecados montanha acima. Mas nunca parecem dispostos a respeitar autoridades, seja a de Deus ou do Diabo.

 

Ficha Técnica

 

Título: Chaves (série)

Criador: Roberto Gómez Bolaños

Roteiro:  Roberto Gómez Bolaños

Elenco: Maria Antonieta De Las Neves, Ramón Valdéz, Florinda Meza, Carlos Villagrán, Roberto Gómez Bolaños, Edgar Vivar, Angelines Fernandez

Produção: Televisa

Distribuição: Marcella Public Relations (DVD)

Ano: 1972-1992

País: México

 

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