O criador da série “Chaves” (El Chavo Del Ocho, 1972-92), Roberto Gómez Bolaños, falecido em 2014, era apelidado de Chespirito - “Pequeno Shakespeare”. Mas ele sempre esteve muito mais próximo de Stephen King e do escritor francês Camus. Se King dizia que o inferno era a repetição e Camus via o mito de Sísifo no homem moderno, Bolaños vai materializar essas intuições em uma pequena vila de pobres e remediados em algum lugar no Distrito Federal do México. Uma galeria de personagens que parecem condenados a repetir seus pecados na eternidade, assim como Sísifo rolava uma pedra montanha acima numa tragédia sem fim. Mas se fosse apenas isso, Chavez não seria tão cultuado por tantas gerações. Há algo mais: se por um lado a série revela um sentido auto-moralizante onde cada personagem repete "ad eternum" seus pecados mortais, do outro ninguém demonstra o menor respeito pela Ordem, seja a de Deus ou do Diabo. A receita de um cult: a ambiguidade da culpa misturada com a fúria.
Foi durante mais
uma reprise de um episódio da série Chaves em novembro de 2014 no SBT que anunciada a morte do ator Roberto Gómez Bolaños, criador e protagonista da série
humorística mexicana. De tanto a emissora de Silvio Santos reprisar e explorar
a série nesses últimos 30 anos, era estatisticamente provável que a morte de
seu criador fosse anunciada no meio de mais um episódio.
Pelo menos
três gerações se divertiram com uma produção dos anos 1970 da Televisa com
explícita falta de recurso e com um humor hoje considerado politicamente
incorreto – por exemplo, professor Girafales fumava charuto em uma sala de aula
de crianças e os personagens da pequena vila se esbofeteavam com tal frequência
que um dos episódios chegou a ter a exibição vetada - veja o episódio abaixo.
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Chaves
é um microcosmo do Inferno?
Como bem observou Ademir
Luiz em Pecados,
Demônios e Tentações em Chaves, Bolaños teria criado uma sutil
representação do inferno onde cada um dos personagens estaria condenado a
repetir na eternidade seus pecados em um ambiente claustrofóbico. Em Chaves o inferno não é o outro, mas a
repetição, como diria o mestre do horror Stephen King.
Mas ao mesmo tempo, Chaves se filia a um tipo de humor
esquecido pelas décadas posteriores: o non
sense e o humor negro pelos perdedores e inadaptados ao sistema social, a
metéria-prima do chamado “cinema slapstick”
da década de 1920 dos EUA. Não é à toa que Bolaños começou com pequenos
sketches com paródias de Chaplin e O Gordo e o Magro em Los Supergenios de la Mesa Cuadrada (1968-70).
Essencialmente é um tipo de
humor anárquico onde nada fica de pé: a autoridade, espaços, papéis e a própria
linguagem são subvertidos para tudo terminar em guerra de tortas jogadas na
cara uns dos outros. No caso de Chaves, tudo terminava em tabefes, pauladas,
escorregões e grandes acidentes.
Se tudo isso for verdade,
teríamos em Chaves a principal qualidade que o fez se tornar um programa de TV
cultuado por gerações: a ambiguidade – se por um lado a série revela um sentido
auto-moralizante onde cada personagem repete ad eternum seus pecados capitais, do outro ninguém demonstra o menor
respeito pela Ordem, seja de Deus ou do Diabo: invariavelmente quando o Seu
Barriga vem cobrar os alugueis ele é atingido por alguma coisa. Ou quando Dona
Florinda diz que somente com estudo poderão ficar igual ao seu amado, o
Professor Girafales, as crianças imediatamente fecham os livros que estavam
lendo.
Fenômeno cult, a ambiguidade
é que faz os espectadores experimentarem o estranhamento de ao mesmo tempo
terem a sensação de estar assistindo a um programa de humor aparentemente
tosco, leve e ingênuo, mas também a suspeita de que poderia haver algum sentido
ou simbolismo mais profundo ou até mesmo subliminar.
Não é também à toa que por
isso Chaves acabou proporcionando uma série de lendas urbanas como, por exemplo, os supostos simbolismos
subliminares iluminatis, nazistas ou antissionistas inseridos em cenários e
linhas de diálogo ou interpretações de que na verdade Dona Florinda, Seu
Madruga, Chaves etc. já estariam mortos e a vila seria um pequeno purgatório onde
viveriam o inferno da repetição.
Moralização e anarquia,
culpa e fúria parecem ser os polos contraditórios que levaram a série Chaves
a essa condição atemporal e universal. Vamos aprofundar cada um deles.
Culpa: os pecados capitais
Chaves é o moleque que está sempre faminto.
Sua preferencia pelo sanduíche de presunto lida com esse simbolismo do porco do
excesso/opulência e sujeira/teimosia. Os partidários da tese de que a vila é um
purgatório pós vida argumentam que Chaves foi glutão, e agora é condenado à
fome.

A ganância em cobrir
diariamente o aluguel mensal está evidente no Seu Barriga. Sempre vítima dos
golpes de Chaves, armadilhas, acidentes e desventuras todas as vezes em que se
atreve a entrar na vila com sua indefectível pasta de documentos.
Já o núcleo formado por
Quico, Dona Florinda e Professor Girafales estão dominados pelos pecados da
luxúria, inveja e orgulho. Representantes de uma classe média que não quer se
confundir com os pobres (seja pela cultura livresca ou pela posse de
mercadorias), Quico acalenta o orgulho (ele tem os melhores brinquedos para não
se confundir com a “gentalha”), mas em muitos momentos inveja os pobres
vizinhos que conseguem ser feliz com seus surrados brinquedos.
Enquanto isso, Professor
Girafales e Dona Florinda se consomem no desejo nunca satisfeito. Os teóricos
do purgatório falam que eles teriam sido libertinos em vida, e agora são
condenados à abstinência sexual por toda eternidade: seus encontros nunca se
consumam. E para piorar tomam infindáveis xícaras de café, um estimulante que
aguça ainda mais o sofrimento da mente que arde de desejo e o corpo que não
quer acompanhar.
A vaidade é o pecado do qual
padece a Dona Clotilde, a “bruxa do 71”, cujo gato de estimação chamava-se
Satanás (visto somente em um dos devaneios delirantes de Chaves), para fazer a
delícia dos teóricos da conspiração. Personagem ironicamente feito por uma
ex-miss, a espanhola Angelina Férnandez, com sua peruca azul e vestido longo.
Enquanto isso, Chiquinha
padece da ira com seus chiliques e choros compulsivos ao ter consciência da sua
impotência. Intolerante e raivosa, atropela pés e brinquedos com seu triciclo:
uma alma de pit bull encerrada eternamente em um corpo franzino de criança como
punição purgatorial.
Fúria: a linguagem da desordem
Há em Chaves uma ordem
social marcado por ódios, perfídias, ressentimentos, orgulhos e desdém que
circula de um personagem para outro. São como espelhos que refletem o que cada
um não quer ser, mas que no entanto são: pobres, incultos e com poucas
possibilidades de reverter o destino. Os adultos têm condutas pré-fixadas em
estereótipos sociais: a autoritária dona de casa, a velha fofoqueira, o
professor vaidoso, o bêbado preguiçoso etc.
Chaves é o personagem que
quebra essa continuidade de condutas pré-fixadas, provocando desordem nessa
monstruosa cadeia de heranças. Como ele faz isso? Ele não é um menino rebelde,
nem ressentido e tampouco um idiota (embora muitas vezes pareça). A desordem
que Chaves detona é sutil, através da linguagem.
Chaves lê mal e sempre tem
problemas com seus livros de História e contos. Isso porque ele tem uma
compreensão literal das palavras, provocando uma interrupção nos discursos dos
outros, obrigando-os a recomeçar. Chaves desarma qualquer tentativa de
racionalidade que encontra pela frente.
Por exemplo, durante uma
aula de História o Professor Girafales pergunta a Chaves o que os Astecas
tiveram que fazer após os espanhóis se apropriarem de suas terras. Com
entusiasmo, Chaves pega seu livro e lê: “Tiveram que pegar bruto!”.
Surpreendido e furioso, Girafales corrige soletrando as palavras: “Tiveram que
pagar tri-bu-to”.
Os trocadilhos involuntários
feitos a partir da compreensão literal da linguagem faz Chaves
involuntariamente (ou “sem querer querendo”, como dizia, como fosse um chiste
freudiano) desmascarar o caráter arbitrário das palavras.
Chaves tinha a habilidade
involuntária de sempre colocar em suspenso o sentido da comunicação, criando
situações de onde só se pode fugir por meio de gritos, cacetadas ou pelo
absurdo. O que produz violência e o célebre bordão: “ninguém tem paciência
comigo...”.
Com isso Bolaños paga tributo
às gags anárquicas do humor slapstick de O Gordo e o Magro e Os Três
Patetas: como Sísifos modernos, seus personagens estão condenados a rolar
eternamente a pedra de seus pecados montanha acima. Mas nunca parecem dispostos
a respeitar autoridades, seja a de Deus ou do Diabo.
Ficha Técnica |
Título: Chaves
(El Chavo del Ocho)
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Criador:
Roberto Gómez Bolaños
|
Roteiro:
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Elenco: Meria
Antonieta De Las Neves, Ramón Valdéz, Florinda Meza, Carlos Villagrán,
Roberto Gómez Bolaños, Edgar Vivar, Angelines Fernandez
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Produção:
Televisa
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Distribuição:
Marcella Public Relations (DVD)
|
Ano:
1972-1992
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País: México
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